Allannia estava visivelmente embriagada, cambaleante pelas vielas desertas de Iwagakure. Os cabelos bagunçados cobriam-lhe a face corada, e a sua leoa, Rauros, prestava o apoio necessário para impedir uma queda repentina. Seus olhos azulados cintilavam como as estrelas daquela noite de verão, e quando vasculhavam o céu em busca de suas analogias, mantinha as atenções fixas na lua. Embora não fosse um astro, tampouco representasse algo de significante para a prateada, era como se o satélite natural refletisse a essência sublime desta como uma Grey. Distraída e imersa em seus devaneios, ela esbarrou numa figura enigmática, trajando uma longa capa escura e a típica máscara de ANBU. Mesmo entorpecida, a prateada era capaz de recordar das formas deste, tal como a sua enorme espada, sempre armazenada por uma bainha tão negra quanto o coração do sujeito. Genji, naquela ocasião em específico, utilizava a face de um gato preto, e sequer se importou com a silhueta desgastada de Allannia no primeiro contato visual entre ambos.

— A sua vida deve ser muito boa, Allannia-sama. Sempre que eu a reencontro, estás desocupada ou fazendo pouco caso de algo — o mais jovem deu os ombros, gargalhando em voz alta — Quer que eu a acompanhe até a sua oficina?

— Não preciso da sua ajuda, garoto — Allannia torceu a boca, em desprezo, e o olhar desta recaiu para o cinto do ANBU. A espada dele era tão chamativa que sequer conseguia afastar a espreitadela — Deixe-me tocá-la, sempre tive curiosidade — as mãos avançaram até a região, mas o recuo do shinobi fora quase automático — Hm?

— Não. Ela é uma herança do meu pai, o único traço que restante dele em mim. Caso queira mesmo saciar seus ímpetos peculiares, precisará se mostrar mais digna — Genji lançou-lhe uma de suas tantō, e a Grey apanhou a lâmina com certa debilidade, quase permitindo que caísse — Prepare-se, Allannia Grey. Não pegarei leve, mesmo que seja você.









Rauros, a Leoa

HP: 1000/1000
CH: 1000/1000
ST: 00/05

A Grey manuseou a tantō cedida com certa dificuldade, desvencilhando-se de Rauros e resistindo de pé. Os joelhos trêmulos ameaçavam ceder, e o sorriso travesso nos lábios exalavam a sua arrogância característica. Os ombros estava relaxados, e a sua postura, repleta de brechas, a tornavam uma oponente no mínimo duvidosa. As mãos delicadas quase permitiram que a lâmina esvaísse de seus dedos. Mesmo assim, após ser desafiada por um shinobi presunçoso e consideravelmente inferior à própria, descartou a possibilidade de recusa. Se os seus olhos refletiam algum sentimento oculto, apenas a manifestação pura da determinação da prateada era visível.

— Não pense em chorar para a mamãe quando vencer você — Allannia zombou, brandindo a espada na direção de seu aniversário num avanço furioso.

— Ela já recebeu lágrimas o suficiente de mim quando a visitei no túmulo, sua assassina medíocre — Genji aparou o golpe num rápido movimento, rotacionando o corpo tão rapidamente que a lâmina raspou de leve na camiseta dela, atingindo a parte inferior do tronco.

— Pensei que fosse me matar, mas acho que estava apenas tentando me ver nua, de certo.

Seus olhos azulados buscaram a primeira brecha para recomeçar os ataques, desferindo uma sequência de três cortes frontais visando o centro do abdômen do ANBU, aproveitando-se das noções anatômicas para selecionar de forma apropriada o seu alvo. Mais uma vez, a espada longa e serrada dele aparou todos os seus golpes, recuando alguns passos em razão da força utilizada pela ex-Kage. A máscara ocultava as suas feições, mas as risadas, sonoras e repetitivas, reafirmaram o quão divertido estava o confronto. “É como se eu estivesse tentando raspar aço com um palito de dente”, por um instante, Allannia sentiu medo, mas desapareceu tão rapidamente quanto surgiu. Ela repetiu novamente os mesmos golpes, desta vez alternando parte do foco com os centros de articulação principal em ambos os braços do moreno.

Vislumbrou a negativa dele, e teve tempo de recuar a tempo quando o viu balançar a cabeça três vezes, desaprovando suas investidas. Allannia quase tropeçou em seus próprios pés, e a movimentação excessiva estava deixando sua visão turva. Teve de cobrir a boca para conter a queimação que ascendeu de seu estômago. Aproveitando da circunstância, recebeu sua primeira sequência ameaçadora de ataques. Genji era lento, mas poderoso em seus golpes, empurrando a Jōnin para trás com somente uma única estocada. A lâmina quase se partiu em duas após aparar a ofensiva, e teve de desviar aos saltos dos ataques seguintes. Pensou em intentar um contra-ataque, mas o corpo cedeu aos seus esforços, travando inerte sua posição vigente. Então, a montante dele caiu sobre sua tantō, e o aço se partiu em dois. Allannia caiu no chão com a força do impacto, e se não tivesse rolado lateralmente, teria sido atravessada por todo o peso do armamento inimigo. Naquele instante, ela percebeu: ele realmente a queria morta.

— Seu idiota ingrato, o que está tentando fazer?— Allannia pôs-se de pé com um salto, limpando o suor que escorria de sua testa.

— Cale a boca, sua puta — ouviu um rugido furioso vindo dele, e o seu último avanço mortífero decretou de uma vez por todas o destino do confronto.

Allannia tentou pular para trás, mas as costas esbarraram numa parede no primeiro recuo. A embriaguez não a fez perceber que estava num beco, abandonada numa das vielas mais escuras do vilarejo. O sorriso trocista não a abandonou, mesmo diante do fim iminente. Fechou os olhos, e permitiu que a ação fosse consumada do jeito que fosse. Ela sabia que, na condição de um humano, ele tinha todo o direito de guardar rancor por alguém que amava e perdeu por sua culpa. O remorso acometia a todos da espécie tão depreciada pela prateada, e em nenhum momento, esqueceu-se disso.

— Pode me matar, se é isso que você realmente quer.

A espada caiu, carregando consigo uma lufada de ar que balançou ainda mais seus cabelos prateados. O som carne sendo despedaçada veio longo em seguida, e o cheiro da morte permeou o local. Por último, sentiu o sangue cobrir o seu corpo, e a noite fora imersa por um grunhido ensurdecedor. A elfa abriu os olhos vagarosamente, e a visão turva demorou para esclarecer o cenário caótico diante de seus olhos. Rauros estava ensanguentada em sua frente, e a lâmina do algoz, brilhante como o luar, jazia no chão. Ele estava caído, em agonia, com maior parte do tronco em ruínas. Os olhos incrédulos da Grey tentaram compreender, mas ela não soube dizer com certeza o que a fez ser capaz de salvá-la. Genji talvez tenha hesitando por um instante ou dois, ou somente a felina estava a postos para intervir quando necessário, julgando pela curta distância entre as duas. Mas, sabendo disso, Allannia creu veementemente que ele estaria atento para uma reprimenda desta. Não sabia, mais uma vez.

Ela sempre era escrava do destino que os outros escreviam para si.













Rauros, a Leoa

HP: 1000/1000
CH: 1000/1000
ST: 00/05

Boi. Tigre. Boi. Tigre. Os selos ressoaram em sua mente entre cada uma de suas utilizações, conjecturando o “Shōsen no Jutsu” no shinobi caído. A máscara do gato negra, removida para facilitar a respiração do enfermo, estava tingida pelo rubro do sangue intermitente. A hemorragia fluía rapidamente, espalhando-se ao redor do corpo. Allannia não se importou em estar completamente coberta pela hemoglobina de um homem capaz de intentar um homicídio contra ela; preocupava-se mais em não ser mais uma assassina naquele ciclo infinito de matança repetitiva. O brilho esmeraldino das suas palmas refletia num contraste esbelto com a paisagem grotesca, numa reflexão excêntrica do espectro luminoso dourado. Era como se o sol estivesse rodeando seu corpo, e no epicentro daquela operação improvisada, ela batalhava contra os próprios demônios para manter o chakra fluindo entre seus dedos. O álcool engolfava seus sentidos, e o torpor ameaçava cancelar a técnica a qualquer momento, dificultando a sua concentração. Respirou fundo; manteve o foco na sua obrigação e conteve as próprias fragilidades.

— Por que insiste em salvar alguém que tentou tirar a sua vida? Mais uma vez você está sendo estúpida, como de praxe. Qual será a próxima novidade? Pactuar com desertores? — Rauros zombou, mostrando os dentes ensanguentados para a Grey — Estou cansada de precisar salvar a sua vida. Não se envergonha de constantemente depender de terceiros sempre que algum problema surge?

Allannia ignorou as palavras da felina, ciente de que se a respondesse, fracassaria em sua tentativa. A primeira utilização somente fora capaz de estacar o sangramento, ganhando tempo o bastante para o uso seguinte acelerar o processo de cicatrização das feridas. De alguma forma, os órgãos vitais dele não pareciam danificados o bastante para tornar o quadro irreversível, tornando a situação plausível para os seus esforços. Após aproximadamente quinze minutos ajustando as pontas soltas, pôde sentar-se, encostando as costas contra a parede mais próxima. Apoiou a cabeça dele em seu colo, observando o seu semblante pálido com os olhos esbugalhados. Não tardou mais do que alguns poucos minutos para que as primeiras reações fossem visíveis, vagarosamente. Vislumbrou o despertar do moreno após três piscadelas, e então sorriu-lhe, afagando os seus cabelos.

— Achei que fosse me fazer esperar pela noite inteira — Allannia riu, e deixou uma lágrima escapar. Não se recordava o bastante daquela sensação, mas se sentiu grata por ainda ser capaz de sentir algo do tipo, mesmo tão pouco.

— Por que você me salvou? Eu tentei... Matá-la— Genji sentiu uma dor profunda atravessar o seu flanco numa tentativa débil de se erguer. A traqueia fechou-se momentaneamente, e ela o viu tossir algumas gotículas de sangue.

— Shhh...— a Grey levou o dedo aos lábios do colega, poupando seus esforços — Você não está forte o bastante para falar. Não sou nenhuma médica, e precisarei levá-lo para o hospital. Você ainda precisa passar por um pós-operatório, com gente mais capacitada para suas necessidades. Por ora, descanse.

— Eu sou um ninja, não preciso dessas bobagens — o ANBU permitiu a escapadela de um grunhido, fechando os dedos num punho — Leve-me para minha casa, por favor. É o mínimo que você pode fazer por mim... Depois de tudo — Allannia ouviu a sua tosse, e mesmo que o sorriso tenha desaparecido de seus lábios, ela pareceu convicta em concordar com o ninja fragilizado.

— Como queira. Rauros, ajude-me com isso, por favor — a felina simplesmente virou a face para a prateada, e com um suspiro, ela tomou a dianteira — Farei isso sozinha, então.

Allannia ergueu o corpo, e apoiou o moreno, deixando que ele caísse sobre seus ombros. Utilizou sua força titânica para suportar seu peso, e a espada dele, outrora esbelta aos seus olhos, pareceu se despedaçar com a passada do vento. Por algum motivo, a vida útil dela havia terminado. Dispensou explicações para a circunstância, e somente seguiu seu rumo, mesmo imersa em sua embriaguez. Cambaleante, exausta e atordoada, ela manteve o ritmo constante. Recordava-se das ruas e vielas, e mesmo que não fosse capaz de selecionar os seus melhores passos, permitiu que o vento a levasse. Por um instante, acreditou até mesmo ser capaz de visualizar algumas borboletas azuis deixando um rastro de por azul por onde passavam, como se quisessem indicar o melhor caminho.










Rauros, a Leoa

HP: 1000/1000
CH: 1000/1000
ST: 00/05

Genji pressionava o corpo dele contra o seu enquanto era conduzido pelos becos escuros do vilarejo. Ambos estavam imundos e ensanguentados naquele ponto, e o suor escorria num teor desagradável por sua pele. O odor era quase insuportável, e a julgar pelo tanto que ela havia bebido naquela noite, estava prestes a regurgitar. Permitiu-se ser conduzida pelas criaturas aladas, incapaz de discernir se eram reais ou somente fruto de sua imaginação. A resposta não importava. Mesmo que soubesse o significado daquilo, estava a mercê do destino caso quisesse salvar a vida do rival. Tropeçava constantemente nos pedregulhos acidentados de uma via esquecida, mais uma parte da periferia descartada dos planos progressistas de Iwagakure. Alguns poucos delinquentes estavam sentados nas calçadas enquanto cheiravam qualquer coisa excêntrica contidas no interior de garrafas de saquê, e seus olhos a perseguiram num brilho avermelhado quando ela passou por estes. Ouviu um ou dois assobios, mas em nenhum momento os seus passos foram abalados pelas distrações. O semblante tranquilo da Grey parecia estar habituado com circunstâncias do gênero.

Enfim, passou por uma galeria e jurou ter visto uma criatura imensa com longas asas azuladas em seu interior, mas quando coçou os olhos e vislumbrou o ambiente novamente, ela não estava lá. Durante seu delírio espontâneo sequer percebeu a aproximação dos vigilantes em ronda, esbarrando em uma dupla deles enquanto passava apressadamente pelo local. Mesmo estranhando o aspecto desta e do sujeito que carregava consigo, eles deram os ombros e simplesmente seguiram com suas vidas, embora ainda tenha sentido alguns olhares perseguindo suas costas enquanto saía do alcance deles. A caminhada parecia interminável, desbravando todo o ambiente urbano em que estava inserida, sejam eles becos ou ruas sem saída, contornando inúmeros complexos urbanos e elevações no terreno. Percorreu brevemente a Zona Administrativa, observando ao longe o prédio mais alto e imponente da região, esculpido na forma de um castelo fortificado, regido pelo atual Tsuchikage. Aposentada de suas funções, as redondezas pareciam mais nostálgicas e esbeltas do que outrora fora quando precisava fazer ela mesma a própria justiça. Apesar de ter regido e vivido em Iwagakure durante a sua vida inteira, ela se sentia uma turista quando atuava como transeunte, refletindo sobre cada traço arquitetônico como se fosse a primeira vez.

Mas por mais que estivesse embriagada e propensa a devaneios, ela percebeu tardiamente as borboletas rodeando a silhueta de ambos. Eram inúmeras, praticamente incontáveis, mensurando pelo menos uma centenas compondo o panapanã inteiro. Tentou tocar-lhes, mas elas desvencilhavam-se de seus dedos, como se fosse indignas de alcançar suas asas. E, num piscar de olhos, como se nunca estivesse alí, ela desapareceu e não deixou nenhum rastro de sua existência.



“Venha a mim, e eu a mostrarei o verdadeiro caminho”



(...)






Rauros, a Leoa

HP: 1000/1000
CH: 1000/1000
ST: 00/05

Allannia despertou com o som do bater de asas em seus ouvidos, e arrepiou-se ao sentir o toque suave das pequenas patas úmidas percorrendo seu corpo. O odor característico de insetos, geosmina e o cis-3-hexenal do gramado impregnou suas narinas, forçando um espirro repentino. Ergueu-se vagarosamente, revigorada após o seu descanso. As dores fortes acometeram sua cabeça em seguida, e os dentes superiores pressionaram o lábio inferior. Ela estava exalando um aroma desagradável, embora parecesse um atrativo para as borboletas ao redor. A garganta estava seca, e após tanto tempo sem qualquer dose de álcool, ansiava por um gole de sua dependência química. Buscou um odre de vinho gasto escondido em sua roupa, degustando avidamente o remanescente. Não era muito, mas a quantia era satisfatória o bastante para aliviar o seu transtorno por ora.

Vislumbrou o ambiente excêntrico em que estava, tocando suavemente o seio esquerdo em chamas. Seu coração bombardeava seu corpo com sangue, e suas sinapses enviavam epinefrina o bastante para mantê-la em alerta, deduzindo um suposto sequestro. A probabilidade de estar sob o efeito de substâncias alucinógenas era alta, e deduzindo isso, questionou a própria razão e ignorou os chamados por seu nome. A floresta possuía árvores altas, sendo incapaz de enxergar as suas copas, escurecendo a maior parte de sua vista. Alguns feixes luminosos atravessavam as folhas e formavam padrões esbeltos na grama alta em seus pés, mas a maior parte sombreada concedia um aspecto ancestral para o entorno, como se aquela área estivesse intocada por mais tempo do que alguns séculos, incapaz sequer de mensurar um número válido para a informação dúbia em sua mente.

Ela estava sozinha, e reparou nisso somente após alguns instantes, quando olhou para todos os lados e fora incapaz de enxergar nada que não fosse a mesma paisagem. A preocupação irrompeu de sua psiquê, impondo movimento em suas pernas e arrancando além do horizonte que se repetia no alcance de seus olhos. As borboletas voaram para longe após sua arrancada, e pôde ouvir sons baixos vindo das árvores, e a julgar pelo som, até mesmo de sua própria mente. Seus passos pareciam intermináveis, atravessando uma distância de quatro mil e quinhentos pés antes de decidir repousar sobre uma pedra. Não compreendia absolutamente nada do que estava ocorrendo, e todos os seus palpites conduziam para soluções pessimistas em demasiado. As mãos tocaram a virilha, temendo ter sido vitimada por abusadores, mas nenhuma ferimento parecia causar alarme da região. E, se realmente houvesse sido um rapto por humanos, era difícil para a Grey deduzir um cenário que não envolvesse pelo menos uma perda de bens.

Risadas ecoaram. E uma densa nuvem arroxeada formou-se nas árvores em sua lateral, gerando um afunilamento na paisagem que se sucedia num longo trajeto retilíneo. Curiosa, as mãos ameaçaram encostar na substância excêntrica supostamente impedindo seus avanços, mas assim que os dedos estiveram prestes a concluir o contato, uma voz grave a interrompeu num tom retumbante:

“Se quer continuar viva, não iria desejar saber o que acontece a seguir”

As falanges foram retraídas em seguida, e de cenho franzido, ela seguiu o rumo imposto pela figura excêntrica responsável por sua aparição. Sons de asas alçando vôo tornavam-se mais audíveis a cada novo passo direcionado ao destino proposto, e a respiração, cada vez mais ofegante, denunciava os seus receios. Diferentemente do que ela esperava, a travessia pareceu mais curta. As árvores, o gramado e a atmosfera ao seu redor parecia se distanciar quando o seu coração decidiu aceitar qualquer que fosse o destino aguardando-a. Ela se sentiu livre, e elas gostaram disso.








Rauros, a Leoa

HP: 1000/1000
CH: 1000/1000
ST: 00/05

O dia de verão resplandecente, finalmente evidenciado após se afastar da paisagem florestal, enfatizou o sol pendente no alto do céu azulado, descobrindo uma clareira mística, quase tipificada nos contos de fadas. Era um lugar encantado, onde a natureza parecia dançar em harmonia. A entrada da era marcada por um arco de árvores antigas, cujas folhas formavam um dossel verde e sombreado. Ao adentrar a clareira, Allannia ss viu imersa em um mundo de cores e fragrâncias. O chão estava coberto de um tapete macio de flores silvestres, em tons de amarelo, laranja, rosa e roxo. Borboletas de todas as formas e tamanhos dançavam no ar, como pétalas vivas, criando um espetáculo hipnotizante. Seus delicados movimentos enchiam o ar com um zumbido suave e alegre.

No coração da clareira, um imenso lago refletia o céu claro como um espelho de água sereno. Suas margens estavam adornadas com juncos e lírios d’água, criando um cenário de serenidade. A água do lago era cristalina e, ao observá-la, podia-se ver peixes coloridos nadando em sua profundidade. Entretanto, o ponto focal desta cena era uma borboleta gigante que pairava sobre o lago. Era uma criatura espetacular, com asas que mediam mais de três metros de envergadura. Suas asas brilhavam com padrões iridescentes de ônix, azul e anil, como se fossem joias vivas. Enquanto a borboleta gigante batia suas asas lentamente, criava uma brisa suave que balançava as flores ao seu redor. As borboletas menores da clareira pareciam reverenciá-la, formando uma coreografia aérea em torno da majestosa visitante. Era como se a borboleta gigante fosse a rainha daquele reino encantado, e as outras, suas súditas devotas. Seu voo gracioso e lento transmitia uma sensação de serenidade e tranquilidade que contagiava a todos que tinham a sorte de testemunhar esse espetáculo.

As cores vibrantes das borboletas contrastavam com o verde exuberante da vegetação ao redor. As árvores altas e majestosas que cercavam a clareira pareciam tocar o céu, criando uma sensação de isolamento mágico, como se aquele lugar estivesse além do alcance do mundo cotidiano. O canto suave dos pássaros completava a sinfonia da natureza, misturando-se ao zumbido das borboletas. Era como se a própria floresta celebrasse a presença da borboleta gigante e o esplendor da clareira.

Enquanto a Grey observava essa cena hipnotizante, sentiu uma profunda sensação de paz e admiração. Era um daqueles momentos raros em que a beleza da natureza transcende todas as palavras e toca a alma. A clareira repleta de borboletas e o lago sereno recordaram de quando era uma criança, apesar das preocupações e turbulências do mundo, e a natureza ainda guarda segredos e maravilhas que nos conectam com algo maior do que si mesma.

A ex-Tsuchikage tentou se comunicar com a criatura, mas a sua voz parecia ser abafada pela atmosfera local, e o odor característico de uma estranha poeira seduzia suas narinas, conduzindo sua mente para pensamentos destoantes da realidade. Era como se estivesse delirando, vivenciando aspectos de sua vida outrora esquecidos pela sua convivência com os indivíduos do mundo shinobi, cada qual com seus infames problemas comportamentais. À medida que o sol se punha lentamente no horizonte, pintando o céu de tons dourados e alaranjados, a clareira mágica ganhava uma aura ainda mais mística. Ela estava aprisionada em pensamentos repentinamente, inconsciente do que estava vivenciando naquele instante, mas a lembrança daquela cena deslumbrante condicionada a sua mente a batalhar contra os excêntricos delírios. Allannia estava sendo testada, mas não sabia porque e nem como.








Rauros, a Leoa

HP: 1000/1000
CH: 1000/1000
ST: 00/05

A mente entorpecida se viu diante da imensa criatura alada, com sua pose imponente e asas majestosas. Era inconcebível para Allannia Grey tal existência, mas tampouco temeu tais características marcantes, muito menos o tom de voz desta. Convidativo, suave e rouco, seu chamado parecia um agrado para seus ouvidos, como se o ser mais gracioso do planeta quisesse ter uma audiência com ela. A sensação mesclava a importância dada para a sua silhueta com uma satisfação incompreensível, atuando com uma droga em seu organismo. A elfa caminhou em passos suaves na direção da borboleta magnífica, aproximando-se do lago que figurava como centro de seus domínios.

— Acalme-se, criança. Antes, desfrute a essência da natureza. Descarte suas roupas, e venha até mim como veio ao mundo. Os humanos tentem a fugir das próprias origens, e se prender às verdades que criam. Algumas vezes, viver numa mentira parece mais satisfatório do que uma vida honesta em sua plenitude — o inseto voador instalou a reflexão em sua psiquê, forçando a Grey a franzir o cenho como resposta.

— Não gostaria de me mostrar de uma forma tão vergonhosa para um estranho, seja ele um humano ou um inseto — respondeu-lhe cruzando os braços, e mantendo a cabeça erguida — Se quer falar comigo, fale do jeito que estou agora.

— Por que você haveria de ter vergonha do próprio corpo? A nudez não é nada a não ser uma representação de sua essência no mundo físico. Há coisas mais hediondas para serem vistas, cravejadas além das profundezas do coração humano. — a água do lago parecia ondular a cada nova frase, como se a natureza estivesse concordando com seus dizeres.

— Poupe-me de sua filosofia medíocre. Por que me trouxe até aqui? O que eu tenho de tão interessante? Embora eu tenha minhas suspeitas, não percebi nenhuma intenção a mais — Allannia pressionou os seios num abraço solitário, disfarçando o nervosismo. Ela desviava o olhar, e as palavras pareciam quebrar durante sua linha de raciocínio, divergindo entre murmúrios e berros exagerados.

— A sua mente maliciosa, embora protegida por um temperamento casto e meticuloso, não passa despercebido por meus olhos. Apesar de parecer ser somente uma criatura gigantesca, como você mesma conjecturou, eu sou uma entidade antiga. Vi o mundo de incontáveis formas, e tenho certeza absoluta de que o verei por mais tempo, muito além de sua existência finita.

— O que você quer dizer com isso? — Allannia se sentiu humilhada pelo ancião, como se ele quisesse esbanjar sua suposta vida longínqua para inferir algum status elevado em relação à mesma.

— Significa que você é insignificante demais para que eu perca meu tempo enganando-a, elfa. A humanidade destrói as florestas, ferem seus iguais e dedicam uma existência inteira aos prazeres carnais. Não tenho motivo algum para querer ajudar indivíduos assim, e por conta disso, eu e meus iguais permanecemos nessa floresta por tanto tempo, aceitando pouquíssimos contratantes — Allannia ouviu atentamente as suas palavras, mas assim que teve a abertura para retrucar, o fez de imediato:

— Mas se você odeia mesmo os humanos, por qual motivo me chamou aqui? Está se contradizendo, velho.

— Você não é humana, mocinha. Conviveu tanto tempo com eles, o bastante para acabar se esquecendo. A sua essência é diferente de tudo que eu já vi, mesmo após tanto tempo guardando esse local. Seu povo coexistiu por séculos com a natureza, respeitando as belezas do mundo e buscando a felicidade absoluta. Uma espécime pacífica, isolada e orgulhosa. Não há nada em você que me lembre uma humana, mas por qual motivo você quer tanto ser como uma? Humanos mentem, enganam e machucam. Mesmo assim, você ama a humanidade. Por ser tão excêntrica, a trouxe até mim. Quero ouvir de você, elfa, prefere mentir ou morrer?

Allannia pensou cuidadosamente  na sua resposta, ligeiramente assustada com a precisão de suas palavras. Um calafrio percorreu sua espinha, e a mente embargada sequer pôde perscrutar uma solução simples para o questionamento. As mãos inquietas tocaram o próprio corpo, e num ímpeto quase voluptuoso, ela arrancou as próprias roupas, atirando-as no corpo d’água diante de si. Tais criações, impuras, pareceram se desfazer, como se o ambiente fosse ácido, mas quando seus pés tocaram as águas cristalinas, sentiu somente um calor agradável invadindo sua derme. O sorriso confiante esbanjava de seus lábios, e ela caminhou pelas águas até estar mergulhada até o pescoço. A cabeça erguida confrontou a borboleta ancestral, e respondeu-lhe num tom retumbante:

— Eu invejo a humanidade. Eles vivem existências medíocres, atravessando dificuldades e selecionando seus destinos, como se fosse natural atribuir um significado para suas existências. Muitas vezes tentei repetir o comportamento deles, e ajo de maneira presunçosa, descartando completamente os padrões sociais deles. Mesmo assim, ainda me respeitam, e fui eleita uma governante. Eles se importam com as coisas que tenho a dizer, somente por conta de suas hierarquias e relações de poder. Além do mais, eu sou uma mulher, portanto a luxúria e os desejos carnais deles induzem suas ações. Por serem tão mesquinhos, manipuláveis e desprezíveis, conseguem vidas mais felizes do que qualquer uma que eu fosse intentar ter. Eles conseguem contentar-se com a própria mediocridade. Mas não é como se eu quisesse me igualar a eles, tampouco nutrisse algum sentimento positivo. Quero que eles todos morram, e não me importo com nenhum dos quais não possam me oferecer algum ganho em particular. O mundo que os humanos criaram, encanta meus olhos. Por isso, eu prefiro mentir, e sobreviver a esse mundo desprezível. Eu não quero morrer.


O silêncio que sucedeu o seu monólogo pareceu durar uma eternidade. Ela sentia a brisa suave provocada pelas asas da borboleta, e o corpo submerso começou a estremecer quando a água se tornou estranhamente fria. Era como se ela fosse rejeitada. Após as suas palavras, Allannia percebeu o significado daquele teste peculiar. “Inseto desgraçado, como se atreve?”, pensou consigo mesma, antes de ouvir o ultimato dele. A voz soou mais agressiva naquela vez, e ela soube de imediato o grau de seriedade das sentenças. Ele estava em fúria.

— Você é uma das criaturas mais egoístas, medíocres e contraditórias que eu já conheci. Superou todas as minhas expectativas, meus parabéns. Eu me canso com frequência dos humanos, pois eles sempre acham que sabem de tudo, e tentam se justificar a todo momento. Buscam ideais, ambições e justificativas para suas existências. A existência de alguém como você, ridiculariza completamente todas as noções de humanidade. Borboletas em muitas culturas, simbolizam a morte. O renascimento. A vida. Acredita nisso? Apenas por termos uma forma de conceber a existência distinta deles. Não há símbolo maior de tudo isso, do que a própria humanidade. Mas idolatrar a si próprios, como alguns poucos fazem, é tão raro quanto os diamantes. Afinal, muito mais fácil idolatrar alguém por ser capaz, do que criticar a própria incapacidade. Eu e meu povo costumamos emprestar nossa força para gente como você: manipuladores, medíocres e maravilhosos. Gosto principalmente dos que se parecem comigo. E então, o que me diz? Seria uma boa aquisição para o nosso histórico ter o seu nome em meus registros.

— Faça como quiser. O que fizeram com o Genji? — Allannia questionou, por fim, após tanto tempo mantendo as palavras engasgadas na garganta.

— Não sei do que está falando.

— O humano que trouxeram comigo. Onde ele está? — perguntou-lhe uma última vez, disposta a arrancar a informação a todo custo.

— Ah, o humano. Não faço ideia. Ele deve estar aonde quer que os humanos vão. Se assinar o contrato, provavelmente o encontrará em algum lugar.

— Tsc.

Allannia mordeu o dedo indicador, e espalhou seu sangue pelo lago. O contrato emergiu logo em seguida, e seu nome estava escrito nele, como se sempre estivesse lá. Então, Allannia sentiu o corpo rodopiar, e se viu tragada para as profundezas do lago. Ela afundou profundamente , até que a escuridão absoluta cobriu-lhe os olhos. O ar começou a se tornar mais escasso, e quando pensou que fosse se afogar, ela despertou. Estava em alguma viela, da mesma forma que outrora. Rauros estava ao seu lado, e quando estendeu a mão para afagar seus pelos, empunhava o contrato. Não sabia até que ponto tudo havia sido real, mas a única coisa remanescente, era a sensação desagradável que trouxe consigo.






Rauros, a Leoa

HP: 1000/1000
CH: 1000/1000
ST: 00/05