Zsuzsanna não deveria ter nascido uma mulher. Os pais não possuíam problemas com mulheres, muito pelo contrário, as outras oito irmãs foram felizes. Mas uma nona, não era bem-vinda. Nascidas no ramo menor de uma família nobre e antiga, os Hyūga, desde cedo eram instruídas a se submeter aos seus suseranos, independentemente do que acontecesse. O templo serviu para flexibilizar as tradições, assegurar a segurança dos nascituros e o futuro dos jovens, mas não o preconceito. Eles eram apenas servos, afinal. O que poderiam fazer contra o destino?

A mãe era uma mulher esbelta e de bom coração, amada por todos. Não obteve nenhuma inimizade em vida, e jamais ergueu o punho para qualquer um que fosse. Pregou a paz até o seus últimos dias, quando faleceu para dar a luz para a filha que não queriam. Seu pai era um homem rígido e conservador, leal aos bons costumes. As filhas jamais precisaram repôr um único alfinete, bordar nenhuma de suas roupas ou cozinhar enquanto viveram em seu teto. Ele, o homem, trabalhava em três empregos para prover sua família. De manhã era um tecelão numa grande tecelagem, um dos melhores que o País do Relâmpago já viu; nas tardes era um médico autônomo, tratando famílias necessitadas nos povoados mais desfavorecidos a preço popular e quando anoitecer caía, o rosto era coberto por uma máscara para que ninguém soubesse que o doutor ceifava vidas em nome da paz.

Mesmo com o vigor de um touro, nenhum homem poderia manter o mesmo ritmo por mais do que algumas décadas. O tempo era ingrato, e os cabelos também passavam por um inverno, embora nesse caso, fosse um sem fim. Marido e mulher se amavam muito, o bastante para encher a sala de descendentes e traçar diversas raízes em sua árvore genealógica.

Foram felizes por muito tempo, até o casal de meninas se tornarem um trio; depois um quarteto; em seguida, um sexteto e quando perceberam, possuíam oito mulheres para educar. Não era nenhum problema, e jamais seria, se possuíssem alguém para ocupar a posição de patriarca. As filhas eram mimadas o bastante para não serem capazes de realizar nenhuma atividade doméstica, não importando qual fosse. Precisavam de um homem, ou estariam à mercê da sorte.

A sorte sorriu mais uma vez quando houve uma gravidez aos quarenta e oito anos. “Não é possível que dessa vez seja outra garota! Os Deuses não são tão cruéis assim”. Ele teria dito, esperançoso, para a esposa. Exausta após anos sendo tratada como uma vaca leiteira, era difícil sentir qualquer compaixão que fosse pela criança que seria gerada. Apenas queriam que todo o sofrimento acabassem. Uma vida digna, pacífica e abastada. Quem poderia dizer que não mereciam isso após anos de dedicação?

Mas os sonhos de um casal podem se transformar em tormento, caso as expectativas não sejam atendidas. Quando ela deu a luz pela última vez, a frustração do pai foi tamanha que ninguém sabe ao certo o que teria ocorrido a partir daquele ponto. Dizem que ela morreu em decorrência do parto, outros alegam que a decepção foi tamanha que ela renegou e amaldiçoou a filha antes do coração paralisar num momento de forte emoção. Alguns arriscam dizer que ela foi brutalmente assassinada enquanto a filha chorava, aos prantos, assistindo o fim trágico que ela teve. A verdade morreu naquela noite tempestuosa, e com ela, todas as lembranças.

Os Zenith eram patrões bondosos, e não se importaram de ouvir um homem desesperado numa noite chuvosa. Carregava consigo uma bebê de colo, rosada e magricela, encolhida num manto branco ensopado. Zsanettka era uma mulher ansiosa por uma filha, e em contrapartida, teve homens demais. Três meninos fortes e robustos, e um recém-nascido ainda em seu peito. Uma troca justa, foi o que tiveram. Uma criança por outra, qual mal teria?

A mulher não era uma mãe má, mas o pai, um sujeito ausente e infiel. Ouvia-se das más línguas que o homem usava a fortuna da família para traçar incontáveis mulheres, deixando inúmeros bastardos em suas barrigas. Quando enfim faleceu, em decorrência do seu próprio pecado, as viúvas vieram cobrar o que era de seu direito. Pouco a pouco, as riquezas da família desapareciam. Zsuzsanna possuía somente três anos de idade quando a mãe a levou para uma cabana pequena com o que havia restado, tão doente que sequer pôde criar a cria por mais do que uma quinzena no novo lar. Os filhos a seguiram no túmulo pouco tempo depois, todos vítimas de uma doença cruel.

Ela foi criada por vizinhos que a ouviram chorar, aos pés do cadáver da mãe. Suas lembranças foram nubladas pelo passar dos anos, abandonando uma casca vazia a cada nova família que a acolhia. Alguns partiram em decorrência de trágicos acidentes, outros, prestavam contas ao desconhecido. Zsuzsanna passou a se acostumar com a solidão, e sua “má sorte” não se tornou motivo para frustração. Diferentemente das irmãs que ela nunca conheceu, aprendeu a bordar suas calcinhas aos seis anos. Cozinhar, quando aos dez pôde alcançar o fogão. Quando tinha treze anos, mais alta e forte que as garotas de sua idade, ela ingressou na academia para se tornar uma kunoichi. Desde então, viveu sozinha. Assumiu o compromisso de trabalhar num restaurante por meio período, enquanto se dedicava aos seus afazeres.

Talentosa, alcançou rapidamente a graduação de Chūnin se destacando em inúmeras missões. Após resgatar o filho do Raikage após o infame sequestro dele, conseguiu visibilidade o bastante para galgar a posição de Tokubetsu Jōnin como uma promissora kunoichi da Nuvem. Mas nada disso importava para a Zenith, que cresceu sem um lar para tomar como seu.

Por estar sempre deslocada, não se destacou tanto quanto se esperava. Ela participou sempre de poucas missões, e o trabalho de garçonete que antes era de meio período se tornou um expediente completo. Pouco a pouco ela se distanciava mais da realidade de uma ninja, e se tornava uma civil. Sem ambicionar nada além de uma refeição em sua mesa e uma noite bem-dormida, ela se acostumou a viver uma vida simplória.

Não viveu grandes amores, e rejeitou todos os seus pretendentes. Desfrutou de todas as emoções que despertavam sua curiosidade, e viveu a sua curta vida como se ela estivesse prestes a acabar. Para muitos, era uma jovem estranha.

O pai sempre teve curiosidade de reencontrar a filha que abandonou, mas como se explicar sobre seus pecados? Não há muito a ser dito, e mesmo um pedido perdão não era tão fácil de ser aceito. Após a ruína dos Zenith, ele teria adquirido suas lojas, vendidas a preço de banana, e tocado o negócio. O filho cresceu e se tornou cada vez mais forte e viril, dotado de tanta inteligência quanto beleza. Inúmeras qualidades eram visíveis, mas dentro do Clã Hyūga, havia algo que ele jamais conseguiria desenvolver com o seu esforço e evolução: o Byakugan.

A Kekkei Genkai era presente em todos, sejam eles nobres ou vassalos. Crescendo num ambiente hostil, sendo julgado por ser incapaz de apresentar o dom de um povo tão orgulhoso, a pressão acometeu profundamente o rapaz. Para suprir todo o falatório, o pai atencioso, tomado pelo remorso, ele pagou assassinos para roubar os olhos da própria filha para que o filho pudesse desfrutar de alguma paz. Ele era um médico, e o procedimento não seria nada difícil. Todas as suas tentativas fracassaram. Quando a garota interrogou suas vítimas em busca de culpados, os nomes envolvidos deixaram inúmeras dúvidas pairando em sua cabeça. Jamais colocaram as mãos em seus olhos, mas ela escolheu desaparecer, saindo a serviço da vila constantemente para evitar ser caçada.

O assunto jamais foi levado a público, e eventualmente olhos foram postos no semblante arrogante do filho de seu pai. A origem incerta jamais foi discutida, e quando os ataques pararam de ocorrer, ela retornou de sua temporada sabática em busca de um futuro melhor. Haviam mais mistérios em seu caminho do que respostas, e dificilmente conseguiria solucionar todos eles. Quanto mais tempo se passava, a verdade se tornava mais distante, e os nomes era a única coisa em sua cabeça capazes de instruir algum direcionamento. Eventualmente, esqueceu-se deles, e viveu sua vida normalmente.

Alguns espetáculos a parte fazem parte de qualquer vida, mesmo as mais medíocres. Zsuzsanna sabia disso mais do que ninguém. Nunca tentou ser a vítima nisso tudo, ou prejudicar pessoas por ter vivido uma vida de merda. Pessoas que matam por prazer, ou se divertem no assassinato, são tão asquerosos quanto ratos, na concepção dela. Mas não se vê como uma heroína, justiceira ou boa moça. Não quer riqueza, fama ou glórias.

Invés de pensar no passado ou no futuro, ela vive o presente. Pode ser doloroso, frustrante ou cansativo, até mesmo não fazer mais sentido, mas a vida é a única coisa que ela tem. Se for necessário abrir mão dela para desfrutar de algo nunca antes sentido, ela fará sem relutar. Viver a vida intensamente, permitir que a adrenalina corra por sua corrente sanguínea e faça o seu coração palpitar. Até mesmo ser a presa numa caçada a motiva mais do que buscar viver uma vida extraordinária.

— Se quiser aprender a viver, escolha um jeito foda de morrer. — ela fechou o diário, e se levantou da cadeira. Havia um enorme palco escuro em sua frente, e uma tela luminosa se projetava no horizonte. Subiu uma escada que não existia no mundo real, e adentrou nas próprias memórias. E as cortinas se fecharam.

Era tudo somente um grande sonho. Mas quantas partes dele foram uma verdade? Não sabia. Jamais saberia. Afinal, isso foi somente uma introdução superficial da história de toda uma vida. Acham mesmo que cabe uma vida toda nas páginas de um diário? Façam-me o favor. Agora circulando, a peça vai começar quando as cortinas forem reabertas.