O primeiro som que ouvia aquela manhã era o mesmo de diversas outras, o confortável canto dos pássaros matinais temperado pela lenta prece de Hei Zarashi, o líder religioso do Culto de Jashin em Mizuame, situado num monastério construído em largas pedras esculpidas, sua arquitetura é estranhamente antiga e distinta da maioria das construções antigas e até mesmo das ruínas abandonadas dos arredores, o monastério vive recoberto de árvores alongadas e tortas pela inconsistência do solo arenoso que as sustenta, fazendo com que suas folhas ocultem a construção e as preces dos adoradores. Yachiru é a cultista mais nova entre os vinte e quatro jashinistas que lá vivem, homens e mulheres de diversas idades, todos dos arredores das Águas, unidos como uma família com o propósito de adorar seu deus, que espalha sua bênção através da morte, principalmente àqueles que mais a temem, a garota também é uma das mais devotas, seu mórbido interesse por cadáveres de animais que encontra nas matas ciliares das orlas sempre foi interpretado como um sinal de uma fé poderosa, assim como os estranhos e sangrentos sonhos que a garota tinha desde nova, sempre relatado ao Zarashi com um tom de normalidade, como se a garota já fosse amiga da morte.

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 Por ser a mais nova garota do culto, Yachiru poucas vezes saía do monastério para visitar o vilarejo de Mizuame, mas isso não impediu que ela aos poucos compreendesse que a situação entre Mizuame e o culto já viu dias melhores, como percebeu certo dia em que, enquanto coletava lascas do pinheiro-da-costa, ouviu a conversa entre dois cultistas que faziam o mesmo na mata de uma pequena ilhota próxima.

- A última vez que estive lá todos evitavam olhar nos meus olhos, mesmo que todos me fitassem pelas costas, estou te dizendo, eles não nos querem mais. - quem disse foi Iroh, um homem robusto e experiente de seus cinquenta anos e cada vez menos cabelos.

- Eles se esqueceram de Jashin, Iroh. - quem respondeu foi um outro homem de trinta e tantos anos, Katashi, devoto e violento, como condiz do adorador da morte – Já é mais que hora de mostrar-mos a força de Jashin, assim como ocorria nos tempos antigos, enormes massacres, aquilo sim garantia o poder dos seguidores de Jashin! Mizuame inteira seria um sacrifício! - excitou-se Katashi enquanto sonhava com o passado.

- Esquece isso, Katashi, eram essas coisas que promoviam os massacres de retribuição a nós, por isso existem tão poucos, devemos matar, é a vontade do Senhor, no entanto faremos espaçadamente.

Yachiru ouvia tudo em silêncio, como um fantasma, seria esse grande massacre a pilha de corpos que via em seus sonhos?

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No final da tarde daquele mesmo dia, enquanto Yachiru rezava com o sacerdote Hei Zarashi, homem austero, de estatura mediana e corpo magro, careca com um nariz torto e aparência amarga, os dois ajoelhados no chão de pedra na presença de dois outros fiéis, Katashi se aproximou respeitosamente e solicitou palavra com Zarashi, que concedeu o pedido do rapaz no fim da oração, enquanto acendia outro incenso.

- Sacerdote, o que acha que devemos fazer para recuperar nossa importância em Mizuame? Os cidadãos já não mais nos respeitam e só os velhos rezam para Jashin, sabendo que a morte está próxima, deveríamos realizar os sacrifícios como nos tempos antigos! - pregou Katashi, agoniado, sua sugestão levou a surpresa a se expressar no rosto do sacerdote, que após alguns segundos de silêncio e pensamento, respondeu:

- O que eu acho pouco importa, o que devemos seguir é a vontade de nosso grande superior Jashin – os fiéis fizeram o gesto do triângulo invertido em frente ao peito – devemos rezar para que ele nos faça entender seus desejos, enquanto a resposta não for clara, de nada nos ajudará matar os aldeões que já tanto temem a morte, devemos fazê-los compreender, não assustá-los.

E quando abriu a boca para argumentar, Zarashi finalizou, de olhos fechados:

- Reze, Katashi, é através da prece que atingiremos nosso real objetivo. - ergueu sua mão direita, indicando o fim daquele curto debate, Yachiru encarou Katashi enquanto se retirava, e sua expressão não indicava obediência.

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Na manhã do dia seguinte Katashi não se encontrava em lugar algum do monastério, e Zarashi simplesmente não tocou no assunto, seguindo sua obrigação da prece matinal, mais tarde nesse mesmo dia o rapaz retornou em sua canoa na pequena e única enseada da ilhota sagrada oculta entre as silenciosas névoas, o que carregava em seu transporte não eram suprimentos, mas sim um homem amarrado, seus olhos avermelhados indicavam o pavor de quem já sabe o que está por vir, devia ter uns 30 anos, era baixo e com o cabelo bem curto e barba por fazer, Katashi o arrastou animado para o monastério, como um caçador faminto arrasta um javali que acabou de capturar, todos que estavam em suas preces e afazeres (como varrer o monastério, trazer flores mortas para Jashin, etc.) pararam imediatamente para assistirem em silêncio o ocorrido, enquanto Hei Zarashi, o sacerdote, lentamente se aproximava do alto da escadaria de pedras, e todos esperavam sua reação, como se ainda não soubessem se aquilo era bom ou ruim.

- Traga o sacrifício para o monastério enquanto seu sangue ainda está quente.

A comoção era silenciosa, porém o ânimo era nítido, todos os homens do monastério se juntaram para arrastar o homem para cima das escadas e dentro do monastério escuro de pedras, enquanto o pobre coitado tentava gritar por entre a corda que o mutava, Yachiru sorria timidamente, há tempos não via um sacrifício humano no monastério, enquanto afiava sua faca ritual cortou sua mão acidentalmente, e lambeu prazerosamente o sangue que corria.

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Subitamente todos os vinte e poucos membros do culto se reuniam ao longo da sala central do monastério, um largo cômodo arejado, o chão calçado em largas rochas retas, em seu centro está cavado um círculo com um triângulo reverso em seu centro, lá o cidadão foi amarrado, seus membros esticados com cordas presas firmes em seus pulsos e tornozelos, presas à quatro pequenas pedras que saiam do chão com esse intuito, o homem não conseguia se mover, vestia somente um pano que cobria suas partes íntimas, os jashinistas haviam escovado seu corpo limpo e raspado sua cabeça, além, é claro, de mantê-lo amordaçado até o momento final.

Em círculo ao redor do altar estavam todos de preto, com facas nas mãos em prece, rezando silenciosamente em um murmúrio generalizado, Hei Zarashi então se aproxima do centro do monastério, com uma adaga de dois gumes em mãos.

- Hoje é um dia muito especial, irmãos, no dia de hoje temos uma oferenda fresca e saudável para o Deus da Morte - então subitamente sua voz se elevou – JASHIN! VÓS QUE TIRA DE NÓS O MEDO DA MORTE, IREMOS ABRAÇÁ-LO SORRINDO EM NOSSO MOMENTO FINAL! Ó DEUS DA MORTE, NÓS POBRES MORTAIS TRAZEMOS A TI UM SACRIFÍCIO! QUE SEJA DE VOSSA VONTADE, E QUE SEU HUMILDE CULTO SE MANTENHA SEGURO E PODEROSO!

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Todos se aproximaram em passos lentos, fechando a escuridão ao redor do homem, que fazia o possível para puxar as cordas, Zarashi tirou sua mordaça e permitiu que ele gritasse por socorro, quando todos de uma só vez apunhalaram seu corpo, Yachiru gosta de pensar que foi a primeira faca a perfurar o corpo da vítima, enquanto o sangue jorra para dentro das fendas ritualísticas do monastério.

A garota pôs sua mão esquerda no sangue corrente, e experimentou o sabor ferroso daquele líquido sagrado com sorriso no rosto. Zarashi ergueu-se, em sua careca havia a marca de uma mão ensanguentada, gotas rubras corriam de seu rosto para dentro de suas vestes, o corpo estava agora em paz.

- Vossa bênção meus irmãos, hoje estamos mais forte, com Jashin ao nosso lado, conseguem sentí-lo? - Yachiru sentia Jashin, seu coração pulsava forte em seu peito, seus olhos arregalados de excitação, quase ouvia sua gargalhada – Nosso culto para sempre perdurará, pois a Morte nunca para de trabalhar, e nós somos seus fiéis servidores.

Em seguida todos os cultistas fizeram fila ante o sacerdote, que os marcava na testa com um polegar ensanguentado enquanto orava pela bênção dos adoradores, Yachiru como sempre adiantou-se para ser a primeira da fila a receber sua bênção.

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O sacrifício foi indispensável para melhorar o ânimo do culto, que já sentia o ostracismo e o preconceito emergente de seus arredores, na manhã seguinte ao sacrifício todos trabalhavam animados, muitos pescavam nas orlas da ilhota, ou coletavam raízes nas matas e siris nos mangues, nas ilhotas dos arredores catavam castanhas e até um porco-do-mato ou outro, enquanto no monastério limpavam o chão, o cadáver do sacrifício fora pendurado em uma enorme vara sacrificial nos fundos do monastério, erguida acima da copa das árvores tortuosas da ilha, para que os corvos – aves sagradas de Jashin - venham e se alimentem, após isso os ossos comporiam o forro do monastério, onde diversos outros esqueletos se dispunham ao longo dos séculos em uma ornamentação macabra e talentosa.

Yachiru toda manhã rezava para o cadáver em seu poste, sentia que os corvos a encaravam com curiosidade e algo de amizade, e em dado momento começaram a gritar, como se estivessem alertando a garota de que algo lhe aguardava, estranhou o sentimento que veio do barulho das aves, mas logo seguiu para o almoço coletivo do monastério, após o qual iria com outros membros do culto à Mizuame comprar alguns suprimentos para passar o mês.

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Era uma tarde estranhamente ensolarada e clara quando Yachiru, Hana (uma mulher de seus quarenta e poucos anos, acima do peso e de aparência carinhosa) e Katashi partiram em uma larga canoa pelas águas calmas que separavam as diversas ilhotas daquele arquipélago. Yachiru viu uma nuvem negra acima de Mizuame, e sentiu um aperto no estômago. Ao chegar na ilha de Mizuame por um pequeno porto secundário foram recebidos por alguns pescadores com olhar temeroso, e esses logo se distanciaram, o trio de cultistas não se acanhou, Katashi desenhou o símbolo de Jashin na areia e seguiram para a vila, no entanto antes de chegarem ao centro sentiram mais e mais estranhos olhares que não pareciam tão felizes com a presença deles, Katashi expressava em sua face o descontentamento que sentia, mas nada parecia tão grave, até o momento que, antes de chegarem à feira foram abordados por uma mulher com o rosto inchado de tristeza.

- Foi VOCÊ! Seu desgraçado! Você e esses malucos de preto, vocês pegaram o meu irmão! O que vocês fizeram com Tanaka? Cadê o Tanaka!?

A gritaria trouxe maiores atenções, e o trio de cultistas começou a se sentir acanhado, quando um homem portando uma espada se aproximou curioso.

- O que está acontecendo aqui?

Katashi virou-se para as mulheres e lhes disse:

- Saiam daqui, eu vou resolver isso e já volto para o monastério.

Yachiru quase argumentou, mas Hana a puxou pela roupa e logo se adiantaram de volta para a praia, enquanto a multidão aumentava ao redor dos dois homens cujo debate se tornava cada vez mais acalorado.

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Retornaram as mulheres assustadas, Hana mais que Yachiru, que estava mais preocupada que temerosa, sentia seu colar em seu peito que lhe garantia a sugestão de uma segurança, voltaram ao monastério e explicaram a situação ao sacerdote, que rezou pela segurança de Katashi, mesmo que Jashin não fosse a deidade ideal para se rezar pela vida de alguém, o clima da ilhota ficou estranhamento frio, tanto um frio de temperatura quanto de astral das emoções, mesmo que poucos tocassem no assunto de Katashi, no entanto o assunto veio até eles de uma maneira inesperada.

Foi Yachiru que resolveu assistir o por do sol daquele dia estranhamente limpo na praia, quando encontrou um enrolado de panos boiando que chegou as areias, quando desenrolou todos os panos encontrou a cabeça decepada de Katashi, seus olhos e lábios estavam roxos e inchados, vários dentes lhe faltaram, assim como uma orelha, e em sua testa estava riscado cruamente o símbolo da fé, naquele momento sim o terror lhe atingiu, sabia que aquilo era um sinal, e não era dos melhores, no entanto sentia também que era um sinal ruim para o culto, mas não necessariamente para si, duvidosa de suas próprias ideias levou a cabeça ao monastério, Hana começou a chorar, Zarashi suspirou, orou por segurança em baixo tom, e disse simplesmente:

- Juntem suas armas.

Em poucos minutos todos, até mesmo Yachiru, estavam armados, todos carregavam seus punhais, mas muitos seguravam mesmo foices e machados, normalmente utilizados em colheitas e coletas, havia somente uma espada no monastério, e era de Katashi, que a levou para Mizuame onde ficou, Zarashi empunhava um chicote imponente em sua mão direita e sua adaga na mão esquerda, todos estavam dentro do monastério rezando iluminados pela luz de velas, horas se passaram, a lua era um fino fio prestes a sumir na escuridão, quando sombras se ergueram na base da escadaria de pedras, a tensão tomava a todos, e uma inatividade parecia eterna, quando foi quebrada por Iroh que, bradando, correu escada abaixo para ser assassinado por uma espada, e os espadachins subiram, e a batalha começou, Yachiru quis lutar, mas Hana a segurou e a abraçou no chão atrás de uma pilastra, mesmo abafado por seus braços a garota ouvia os gritos dos dois lados, que diminuíam de um a um, até que, em menos de meia hora, o silêncio voltou a reinar, exceto pelas preces de Hana, que gritando foi separada de Yachiru e decapitada na sua frente, a garota empunhava sua adaga com firmeza, expressava o êxtase de um animal prestes a morrer, bradou a adaga contra o espadachim, enquanto os outros riam ao redor, ao chocar-se com a espada do oponente sua adaga voou ao chão de pedra.

- Vamos acabar logo com isso.

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Yachiru sentiu um frio em seu coração, um frio literal do aço da lâmina de seu inimigo ao perfurar seu peito, a garota segurou a lâmina da espada com suas duas mãos, e o espadachim a retirou, cortando a palma de suas mãos, a garota caiu no chão duro e viu as sombras se afastarem.

Tudo ficou negro, não sentia mais medo, na realidade, sentia um estranho conforto, e começou a ouvir um tambor, uma batida calma e dupla, espaçada, era seu coração.

- O que é isso? Eu morri…

- Sim, essa foi sua primeira morte, mas você não vai entrar em meu reino agora, você continuará a espalhar minha palavra, espalhar a morte, distribua a todos, Shino Saigo, erga-se e junte seus irmãos para que venham a mim.

Yachiru abriu seus olhos, viu o teto do monastério e seus ossos arrumados em um tom rosado. O sol? Se questionou, era como se tivesse esquecido o que era o sol, ou o que era a vida, Shino Saigo pôs a mão em seu peito e tocou sua nova ferida, que já começava a fechar, ergueu-se, agradeceu ironicamente a Jashin pela vida, e um corvo pousou em seus pés, gralhou e pulou para o corpo de Hana, onde gralhou novamente, Saigo sorriu e seguiu o serviço de juntar os corpos de seus irmãos.

Enquanto limpava as feridas do cadáver de Hei Zarashi murmurando uma cantiga de Jashin, ouviu passos que introduziram uma voz:

- Eu jurava que tinha matado você.

Quando Saigo olhou era o homem que a havia matado, a garota levantou-se calmamente, com expressão tranquila, Jashin lhe dava segurança de que aquele homem seria morto, e o primeiro sacrifício de sua nova vida, a mulher sacou a adaga de seu falecido sacerdote, que parecia exibir um sorriso em seu rosto mórbido, o espadachim sacou sua espada e se aproximou, sozinho.

- Vamos terminar esse serviço de uma vez por todas, mas antes você vai me falar onde vocês maníacos guardam seu tesouro.

O homem estava em frente a Saigo, com sua lâmina apontada para o coração da garota, que logo empurrou seu ombro contra o aço, e seu sangue escorreu ao chão, com seu pé direito, como se estivesse em um transe inconsciente, riscou ao seu redor o símbolo de Jashin, o espadachim assistia a cena atônito, que bando de maluco eram esses jashinistas, seus olhos arregalados expressavam, e o homem sorriu, sua lâmina brilhou ao tentar arrancar a cabeça da garota, que desviou o suficiente para que a lâmina não arrancasse sua cabeça, somente realizasse um corte superficial abaixo de seu pescoço, e em um movimento rápido riscou a boca do oponente com sua kunai, e este se afastou um metro com a mão no rosto.

- Sua piranha!

Saigo lambeu o sangue do homem em sua adaga, e sua pele tomou as cores da morte, era como se seu esqueleto saísse por cima de sua pele agora negra, o espadachim agora expressava medo, e, gritando, enfiou novamente a espada no peito de Saigo, o terror era nítido em seus olhos, suspirou seu último e apertado ar, e caiu no chão, sangue saindo de seus lábios rasgados, e sua espada pendurada no peito de Saigo, que a retirou sorrindo com as mãos na lâmina.

- Ó Jashin! Agradeço a sua bênção, e irei serví-lo conforme sua vontade!

Rezou finalmente, e, em êxtase, retornou para finalizar seu serviço funerário.

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