Os pesadelos se tornaram cada vez mais frequentes na minha vida. Era como se fossem tão reais que pareciam palpáveis. Nessa noite, em especial, conseguia me ver preso no meu corpo de criança, tremendo de medo em um quarto completamente escuro, no canto, recolhido a minha insegurança, com toda parte do corpo tremendo em resposta ao que se projetava à frente; sombras humanoides, tão reais quanto qualquer outro sonho, entretanto, para mim, parecia. A aparição daquelas sombras, de tão recorrentes, tornavam-se quase que reais.

Acordar ensopado de suor, após cada pesadelo desses, era natural. Um longo suspiro, carregando consigo sensações de medo e incertezas, foi exteriorizado. Levei uma folha de coca na boca, tentando me acalmar, mas de nada adiantava. Era como se nem mesmo o vício, maior aliado, funcionasse nessas horas. Até mesmo ele estava deixando com que eu ficasse sozinho.

Busquei auxílio, ou pelo menos alguma resposta, ao olhar fixamente, durante alguns longos minutos, pela janela do quarto, observando a névoa espessa característica do vilarejo. Nem mesmo ela tinha uma resposta para o que estava acontecendo. Ainda que ficasse claro não existir respostas para os pesadelos que aumentavam em quantidade e intensidade, de forma gradativa, não me entregaria tão facilmente. Longe disso. Por mais cansado que estivesse, meus olhos mantinham-se determinados.

—— Shi deve saber de algo. —— sussurrei, na intenção de que ninguém  escutasse. Arrumei meus armamentos, assim como a veste padrão de um militar da Névoa, tendo certeza de que não acordaria ninguém no processo de ir embora. Saía de casa, em busca de respostas, mesmo que para isso fosse necessário confrontar, mais uma vez, a maldição que lhe concebeu.

A última vez que tive contato com o homem foi em um galpão abandonado, a cinco anos atrás, localizado no centro comercial do vilarejo. Então, me movi até lá em máxima velocidade, com a feição fechada, exalando ódio. De frente ao galpão era notório que meu pai estava lá. De uma das incontáveis janelas quebradas, consegui ver os olhos brilhantes do mais velho analisando sua cria.

Tudo escureceu rápido demais. Não tive reação, sequer vi o golpe de meu pai. Só senti a dor, latejante, romper meu ódio e me fazer perder, mais uma vez. Essa entraria para a minha coleção de, atualmente, três derrotas; uma em Kumogakure, apesar dos pesares, contra Kaguya e agora, Shi. Mas não poderia deixar isso barato. Odiava perder, essa palavra não existe em meu vocabulário.

Acordei escutando firmes passos fazendo a madeira aparentemente envelhecida ranger. Minha cabeça doía, precisei piscar os olhos algumas vezes para conseguir me livrar da escuridão. Quando fiz, pude ver um homem vestido de branco, principalmente por conta do jaleco, uma touca e máscara, da mesma coloração das roupas. Meu instinto fez com que tentasse mover meu corpo para longe dele, entretanto, com a tentativa, percebi que estava acorrentado; preso sobre uma maca metálica.

Senti um objeto penetrar na minha pele, como uma simples picada, ardida quando tentei me desvencilhar das correntes. Olhei fixamente para o homem que mais parecia um doutor, me lembrando bastante LeBron, com seu jeito de agir. Não pude questioná-lo. Quando senti o líquido injetado em meu corpo percorrer minhas veias, urrei instintivamente, descobrindo que, além de preso, minha boca estava com uma mordaça, impedindo que eu pudesse fazer muito barulho ou sequer, falar.

Fiquei tonto novamente. Meu pescoço estava dolorido, como se algo estivesse percorrendo minhas veias e fazendo elas queimarem. Logo, meu corpo todo estava sob essa sensação e, pela dor agonizante, não consegui manter-me acordado. Os olhos foram pesando, meu entorno escurecia cada vez mais, fazendo com que eu perdesse os sentidos e desmaiasse por consequência da dor.

Acordei na presença de mais uma pessoa; dessa vez, uma jovem, pele pálida, cabelos enegrecidos e feição simpática, sem a presença de uma máscara, por mais que trouxe consigo um jaleco parecido com o do homem que injetou o líquido em meu corpo. Estava sem a mordaça dessa vez e a mulher carregava, com a destra, até a minha boca, um copo cristalino de água, fazendo alguns gestos para que eu bebesse.

—— Pa… pare! —— Gritei sentindo minha garganta falhar por um instante. —— Onde estou? Quem é você? Cadê Shi? ——

Ela me olhou com um semblante assustado após receber uma enxurrada de perguntas. Parecia óbvio que não poderia tirar minhas dúvidas, entretanto, manteve um sorriso genuíno, acalorado sobre a própria face, como se ele pudesse penetrar sob meu olhar carregado de ódio e rancor.

—— Bom… se você não vai beber, ou comer, irei deixar os alimentos aqui caso queira em algum outro momento e, obviamente, consiga pegá-los. ——

A voz doce dela impregnou meus ouvidos como um canto. Se não fosse a situação, com certeza chamaria ela para comer alguma coisa e tomar uma. Vi ela deixando o cômodo escuro, sendo surpreendido por um breve clarão vindo do corredor enquanto a porta ficou aberta. Fiz força para tentar quebrar as amarras, infelizmente, sem êxito algum. Tentei mais alguma vezes antes de cansar.

Depois de alguns longos minutos tentando imaginar como eu havia parado ali, se não fosse por culpa de Shi, uma sensação estranha foi tomando ainda mais força e forma dentro de mim. Era como se eu pudesse me livrar das amarras de forma simples, bastando confiar no meu sangue e somente nele. Naquele que me tornou quem sou.

A falsa esperança caiu por terra quando não consegui sentir meu chakra reverberar minha vontade. Quando tentei manifestar o chakra pelos meus braços, expulsando-o pelos poros, nada aconteceu. Nem uma mísera fagulha de esperança para quem tanto estava acostumado a criá-la. Não entendia como era possível conseguir vedar a utilização de chakra de forma tão simples e banal. ‘’Será que são as correntes?’’ Me indaguei mentalmente. Elas eram a única resposta aparente.

A falta de nutrientes em meu corpo fazia com que eu tivesse picos de desmaio repentinos. Assim foi. Minhas pálpebras forçaram-se a se fechar, por mais que eu insistisse em não concordar. Estava tudo escuro em minha mente, com uma canção doce e sutil, aparentando ser a mesma que minha mãe cantava quando eu era uma simples criança. Aos poucos a face dela foi se formando em meio a escuridão, como um anjo de pele pálidas e fios enegrecidos. Ela me encarava de forma invasiva, mostrando um sorriso gentil, assim como seu rosto.

—— Está tão triste, pequeno Rekken… —— A voz sutil invadiu meu corpo, fazendo com que meu fogo se acendesse mais uma vez. Acordava, então, meio espantado, olhando de uma lado ao outro tentando buscar minha mãe que, aos poucos, percebia não estar lá; havia sido mais um sonho estranho.

Demorei para perceber que não estava mais acorrentado. Senti meus pulsos dolorosos, finalmente, livres. Levei a desta sobre o pulso canhoto, apalpando algumas vezes e fazendo o mesmo no outro braço.

—— Finalmente, Shi. —— Não pude conter o sorriso cínico. Vi a porta de metal entreaberta, com o corredor enegrecido em fácil acesso. Não hesitei em sair do cômodo, vendo o tal corredor ser iluminado por poucos picos de fogo presentes em candelabros presos às paredes.

—— E agora, por onde ir? —— Fiquei perdido ao ver uma bifurcação. O lugar era como um labirinto, pelo pouco que consegui ver. Não seria fácil sair dali, não fosse por um som estridente que pude escutar e discernir de onde vinha. Era como se ele me chamasse, estivesse brincando comigo.

—— Sim, eu vou até você… com certeza irei. —— Esbravejei pouco me importando se ele escutaria ou não, porém, a gargalhada uníssona veio como resposta às minhas ameaças. Segui pelo caminho da esquerda que era de onde conseguia julgar ter vindo o barulho estridente feito por meu pai. Me mantive em máxima velocidade ansiando por encontrá-lo o mais rápido possível.

Não estava mais preso como um animal enjaulado. Era questão de tempo fazer ele sentir tudo o que havia feito contra mim e minha mãe. Era hora de dar o troco, troco esse que falhei anteriormente.

Cheguei em um galpão repleto de escuridão, com alguns picos de luz que não conseguiam, por falta de força, iluminar todo o local. Os olhos inertes de Shi estavam bem à minha frente, estáticos, como se fossem engolir minha alma só me observando. Mais ou menos trinta metros nos separavam. Antes que meu ímpeto agisse e me fizesse ir, descontrolado, na direção dele, o homem levantando ambos os braços como uma espécie de rendimento, ainda que mantivesse o sorriso sádico entre os lábios.

—— Parece que sobreviveu então… estou impressionado, mas não se precipite minha cria. Estou aqui para lhe contar sobre o passado, sobre quem você é, qual seu verdadeiro sangue. Antes de qualquer coisa, escute com atenção… —— Ele pausou, conforme abaixava ambos os braços vendo que havia conseguido minha atenção.

—— Sangue? Como assim meu verdadeiro sangue? —— Indaguei-o antes de deixá-lo terminar, mostrando um semblante descrente.

—— Isso mesmo… eu e sua mãe não somos Hyuugas, Rekken. Pelo contrário, mas, pra isso, preciso contar a nossa história desde o começo. Eu e ela crescemos juntos, dentro de um pequeno vilarejo próximo das dependências de Kirigakure. O mundo é cruel, Rekken. Nosso sangue e seus poderes trazem bastante perigo, inveja. Somos poderosos e como é o poder que move nosso mundo, você já deve imaginar o que tivemos de fazer para sobreviver, sem mostrar nosso verdadeiro sangue. —— Ele mostrou, pela primeira vez, certa compaixão ao lembrar-se do passado. Estranhei esse fato. Nunca havia visto esse homem estremecer, mostrar compaixão por algo; era um homem frio e indiferente aos outros desde que me lembro por gente. Por fim, ele mostrou os poderes inerentes de nosso sangue. Moldou, a partir da própria sombra, pequenos tentáculos, que viajaram até as luminárias espalhadas pelo local, quebrando algumas das luzes, deixando o ambiente ainda mais escuro.

—— Então quer dizer… —— Antes que eu pudesse terminar a frase, ele se aproximou um pouco. Me mantive estático.

—— Sim, você é um Nara. Um de sangue puro. Tanto eu quanto sua mãe somos herdeiros das sombras. Escondemos isso por medo de um dia tentarem roubar seus segredos, entretanto, agora que se tornou um homem forte, prosperando dentro do vilarejo e se mostrando um verdadeiro prodígio, não vejo motivos para continuarmos omitindo isso. Não peço que me perdoe, filho… —— Ele se aproximou mais, ficando a meros cinco metros de distância.

—— Fiz o que tinha de fazer, não me arrependo. Se você está vivo hoje, foi pelas escolhas que eu e sua mãe fizemos. Existe um homem que irá te ajudar, caso queira se tornar mais forte… sei tio Seiji, o Salgueiro. Sei que ele já tem te treinado, entretanto, caso realmente queira ascender como um verdadeiro Nara, você deve buscar por outras motivações. Venha atrás de mim. Não espero que me perdoe, muito pelo contrário, espero que um dia você consiga me matar, nutrir esse ódio e exalar ele conforme se torna o homem que projetei que você seria. —— Disse ele, sumindo como um passe de mágicas à minha frente. Não sabia como reagir a torrente de informações que recebi em tão pouco tempo.

Estava sozinho, finalmente. O choque das informações me fez ficar dentro do galpão por pelo menos uns dez minutos, parado, olhando para a luz da lua sobre o telhado de vidro e pensando em como minha infância havia sido uma fraude, assim como pensar que o sangue que achei carregar, na verdade, era completamente outro. Balancei a cabeça, tentando recobrar o foco e comecei a andar para o que parecia a única saída de lá. Caminhei vagarosamente, tentando processar tudo ainda.

Ele estava certo, em algumas palavras. O ódio nutrido pelo homem não desaparecia de meu âmago, pelo contrário, tornava-se cada vez mais forte, quase que palpável. Ir atrás dele, agora, era meu verdadeiro objetivo, não para descobrir mais sobre meu passado, o sangue que carrego, mas sim para colocar um ponto final em toda essa pagina, para, por fim, conseguir seguir em frente. Certo do que deveria fazer, comecei a voltar para casa, passando pelas vielas enegrecidas do vilarejo, ignorando qualquer presença hostil que crescia gradativamente por conta dos nukenin’s dentro da vila.