Era outono no ano de 12DG, e sua mãe havia saído para trabalhar mais uma vez, deixando-a sozinha com sua leoa de estimação, Rauros. Não sabia o que a matriarca fazia, tampouco se interessava em descobrir. Imersa em seu mundo particular, Allannia desfrutava de seus livros por horas a fio. Gostava de contos sobre Donzelas resgatadas por Príncipes encantados, e de fábulas tendenciosas com lições de moral clichê. Mesmo tendo apenas uma felina gigantesca como única amiga, era uma adolescente feliz. Sua inocência, obediência e receio a impedia de se aventurar além dos muros altos de seu Palácio. Quando queria respirar um pouco de ar fresco, frequentava o Bosque Sagrado, tal como fazia durante todas as noites, antes de dormir, para pedir aos Deuses pela segurança da mãe. O medo de perder a estimada progenitora atravessava seu coração, como uma espada.

Certo dia, após uma noite repleta de pesadelos, despertou antes da Alvorada. Estava assustada. Seus pés suavemente deslizaram pelo piso liso de seu quarto, esgueirando-se sem que Rauros percebesse. Responsável por sua segurança, a mascote jamais permitiria que fizesse o que fez. Sonhou que a mãe estava em perigo, e para que pudesse evitar o pior, teria de seguir as estrelas até o horizonte. Atravessando os mares e seguindo para uma ilha encantada, conseguiria alcançar o local onde a mesma estava trancafiada, numa espécie de prisão enfeitiçada.

A premissa banal e desconexa motivou um dos seus atos mais estúpidos, atravessando os limites de sua propriedade e mergulhando na imensidão da noite. Sentiu medo, mas sua nobre missão justificava seus atos. Sua camisa escura auxiliava em sua furtivamente, passando despercebida por maior parte dos indivíduos sem maiores empecilhos. Caso fosse descoberta, jamais conseguiria completar sua tola missão. Durante o trajeto, constatou ter ido despreparada. Não trazia consigo dinheiro, tampouco equipamentos apropriados. Jovem, e sem preparo nenhum, estava naturalmente condenada ao fracasso. Chorou, lamentando suas debilidades. O corpo magricelo era frágil demais para adentrar qualquer combate físico, e sequer duraria muito tempo caminhando sozinha por centenas de metros.

Determinada, permaneceu seguindo em frente mesmo assim. Os ventos do Outono refrescavam sua pele, e variam a umidade acumulada na face. Seus fios prateados, soltos, cobriam sua face de forma desagradável. Não percebeu o homem grandalhão em sua frente, esbarrando em sua barriga avantajada. Era um dos guardas do vilarejo, fazendo uma ronda noturna cotidiana. Antes que fosse questionada sobre os motivos por trás de sua aventura juvenil, ela correu. Despistou o homem percorrendo inúmeros becos, sem que soubesse exatamente para onde estava indo. Conseguiu efetivamente se ver livre do algoz, mas tampouco sabia onde estava. E muito menos como retornar. Um calafrio percorreu sua espinha, praticamente desesperada.

Ouviu risadas e canções no fundo da rua, incitando sua curiosidade. Vagarosamente, caminhou em direção ao epicentro dos barulhos. Uma espécie de estabelecimento movimentado, construído completamente por pedra lapidada. Era feio, e assimétrico, mas charmoso ao seu modo. Tímida, abriu a porta, vislumbrando um mundo novo diante de seus olhos. Homens bebiam animados, garçonetes esbeltas serviam pratos saborosos e recebiam gratas quantidades de ryō por isso. Haviam músicos dispostos no centro do recinto, cantando uma canção sobre ninjas corajosos batalhando pela atenção da filha do Senhor do País da Terra. Achou a letra engraçada, embora alguns trechos fossem consideravelmente pejorativos.

Distraída no ambiente ao seu redor, não percebeu a mão pousando em seu ombro. O corpo retraiu, e sem ver quem estava em sua frente, tentou efetuar um empurrão, sem sucesso. Era fraca demais, sequer fez cócegas. As risadas do estranho machucaram, mas não impediu uma tentativa de fuga frustrada. Puxada pelo braço, ela foi levada para uma das mesas, no canto mais afastado do bar. Forçada a se sentar, ouviu as primeiras palavras sendo formuladas naquela noite:

— Esse não é um lugar para crianças, garotinha. O que está fazendo aqui? Pode me dizer onde está sua mãe? — um homem de barbas grisalhas questionou. Maior parte de sua face era coberta por um capuz, e havia uma bebida escura no centro da mesa redonda. Curiosa, questionava a si mesma sobre o que deveria ser tal coisa — Você está prestando atenção no que estou dizendo?

Não sabia como responder. Normalmente conversava com estranhos acompanhada, jamais esteve sozinha com alguém. Receber uma reprimenda, tal como ser julgada jovem demais para agir, chateou a Grey. Apenas queria ajudar, mesmo que do seu próprio modo. Allannia sentia falta da mãe, e a ausência dela afetava cada vez mais seu psicológico. Começou a choramingar, chamando a atenção do público. Pelas faces preocupadas, os presentes começaram a suspeitar de algo grave que não teve noção naquele dia. Após uma discussão extensa, mesmo contra a sua vontade, ele foi expulso. Quis dizer que a culpa não era dele, mas falar era muito difícil. As mãos pequenas, pousadas na mesa, arriscaram tomar uma dose do que havia na caneca abandonada. Doce e viciante, bebeu até a última gota, extasiada.

Por alguns minutos aliviou seu choro e preocupação, conseguindo compreender alguns dos questionamentos que vinham dos presentes. Perguntaram se estava bem, o que teria acontecido e se ela precisava de ajuda. Alguns ofereciam a residência para que ela pudesse passar a noite, outros solicitavam informações sobre seus parentes. Chegou num ponto que não pôde mais compreender o que estava acontecendo. Tonta, e mais chorosa que outrora, as lágrimas vieram mais intensas. Cambaleante, decidiu fugir novamente, atravessando a multidão ao seu redor rumando sua liberdade. Mais uma vez, esbarrou em alguém. Desta vez, a pessoa pressionou seu pulso, e a levou para longe do local abruptamente numa velocidade estrondosa, rompendo a porta e tudo que estivesse em seu caminho.

— O que eu disse a você sobre sair de casa? — ouviu a voz da mãe repreender, suavemente. Quando o tom de voz era suave e calmo, Allannia sabia o quão brava ela estava — Achei que minhas palavras eram claras o bastante, mas vejo que precisarei de atos — puxou-lhe a orelha pontiaguda, até que provocasse dor.

— Desculpa, mamãe. Não farei de novo — os olhos permaneciam direcionados para o chão, vislumbrando somente a silhueta da mãe. Durante todo o trajeto, não viu sua face.

— Allannia, quando eu não estiver aqui mais, o que será de você? Pretende permanecer a vida inteira sendo um problema? — ela questionou, em tom severo.

— Eu sou um problema? — a ameaça de mais uma crise de choro era alta.

— Talvez. Filhos sempre são problemas para os pais — ela bagunçou seus cabelos, dando uma risada calorosa em seguida — Mas se não fosse assim, o universo estaria dando mais motivos para termos mais de um.

— Como me achou? Fui tão longe — frustrou-se, sempre era encontrada pela mãe, mesmo quando queria evitar vê-la. Era irônico. Detestava a mãe por perto, mas ao mesmo tempo, não suportava viver sem ela.

— Um dia descobrirá. É um truque, bastante útil por sinal — a mãe sempre fazia mistério. Detestava quando ela atiçava sua curiosidade, mas era nesses momentos que sua imaginação fértil tomava parte — O que faria se conseguisse fazer a mesma coisa comigo?

— Nunca a deixaria ficar longe de mim. Senti saudades, mamãe.

— Eu sei que sim — e mesmo com o pesar em sua voz, soube que era verdade. Mesmo sumindo com frequência, a matriarca nutria estima pela filha.

E quando amanheceu, havia feito novamente.