Allannia gesticulou para que o rapaz entrasse, dando a permissão tanto com as mãos quanto por voz, ao proferir num tom de voz sutil: “Entre, por favor”. Após o rapaz entrar, prontamente fez uma reverência respeitosa. Ainda estava se acostumando com a tradição, mesmo que a sensação não fosse tão estranha quanto outrora. Analisou o rapaz com um semblante sereno, não esboçando nenhum sorriso ou expressão facial significativa. Os olhos azulados da Grey encontraram o do jovem, tentando decifrar o que havia além da carne e dos ossos. A essência do garoto era o que buscava, para compreender mais do tipo de shinobi que Mangetsu Batsuki era.

— Parece mais velho do que realmente é, Batsuki-kun— por fim, timidamente, sorriu. Mesmo sendo a superior direta do rapaz, era comum se sentir inibida na frente de novos rostos — Sente-se, se quiser. Caso queira comer alguma coisa, fique a vontade para degustar qualquer coisa disposta pela sala — aguardaria por sua resposta, indicando a cadeira em sua frente, antes de prosseguir — Há algum problema para relatar? A última informação que tive sua foi de seu sucesso em proteger a vida de Hanamaki, o cientista e Mana. Uma pena que o Centro Botânico da Pedra tenha ficado em ruínas, mais um custo para a aldeia. Se soubesse quanto temos disponível no caixa para esse tipo de coisas... tudo seria mais fácil se nossos negócios fossem mais lucrativos. Não temos pontes comerciais com nenhuma aldeia, tampouco um contingente militar efetivo para conquistas ou a proteção do nosso próprio patrimônio. Para bem falar a verdade, andam faltando coisas demais — a frustração era evidente na Grey, que suspirou, desapontada. Não sabia se o rapaz havia feito tudo que poderia para impedir a destruição do local, mas a julgar por sua idade e os feitos realizados por ele até então, não tinha dúvidas da sua lealdade. Ou deveria ter? As mãos inquietas denunciavam os seus pensamentos nebulosos.

Não conseguiu conter o sorriso quando o mesmo indagou se havia algo que pudesse ser feito naquele momento. Recordou Brakios Sarutobi, e sua vontade de obter destaque. Vagamente, recordou de Yunai Aiko e seu objetivo de trazer conhecimento e prosperidade para vila ao viajar mundo afora. Pensou até mesmo no Genin de Konohagakure, enfrentando Borsalino mesmo após ter sido ferido em batalha por diversos golpes e vislumbrar a morte do Hokage. Todos eles, mesmo que em diferentes níveis, possuíam uma coisa em comum: queriam se provar dignos de suas vilas.

— Já ouvi essas mesmas palavras diversas vezes em minha. Algumas vezes, estive no seu lugar, pensando no que eu poderia fazer pela vila — levantou de seu assento, aproximando-se do rapaz. Percebeu naquele instante a diferença de altura, sendo consideravelmente alto se fosse considerar a tenra idade — Já vi uma criança menor que você enfrentar um oponente que rivalizou com Kages, e assisti um shinobi salvar diversos veteranos e se tornar um herói mundial. Idade, patente, altura, cor ou gênero, nada disso importa. A determinação e lealdade ao vilarejo são as coisas que definem se um ninja é digno ou não de um trabalho — olhou profundamente nos olhos de Mangetsu Batsuki, com um sorriso provocativo ao dizer as palavras seguintes — Mangetsu Batsuki, você daria a sua vida pela vila? Protegeria com unhas e dentes todos os inocentes, não importa quais fossem, mesmo que isso significasse abrir mão de tudo? Ou melhor. Se eu ordenasse que após sair dessa sala, você matasse todas as crianças da Academia Ninja, alegando que é um bem necessário em prol da nação, você faria sem relutar? Questionaria minha ordem, ou a de qualquer um que fosse, se julgasse não ser correta o bastante? Qual é a verdadeira definição de lealdade, Batsuki-kun? — inclinou a cabeça, esperando por sua resposta.

“Nem mesmo eu sei a resposta”, quis responder por ele, mas não teria coragem de afirmar algo tão grave sem antes ouvir o que ele tinha a dizer. Allannia Grey possuía sangue de Silvermoon correndo por suas veias, sua descendência não pertencia aos Cinco Grandes Países Shinobi. Algumas vezes, por quem e para quem ela lutava era algo nebuloso. Manteve a postura, controlou a timidez e permaneceu observando o rapaz, ansiosa para saber até que ponto poderia ir a lealdade do mesmo.

Balançou a cabeça, negativamente. Não por discordar das palavras do rapaz, mas por este ter acreditado que ela queria atos de heroísmo vindos da parte dele, tal como uma demonstração de lealdade férrea e inabalável. “O vilarejo estaria perdido se ao meu redor existissem apenas fantoches seguindo ordens”, pensou, consigo mesma. Um governo arbitrário jamais seria legítimo, sabia disso. Assim como nenhum povo poderia clamar por legitimidade ao adotar uma anarquia. Regras são importantes para o funcionamento de qualquer estado, e elas devem ser baseadas nos princípios e valores em comum para todos os povos.

— Eu gosto de estar rodeada por homens leais, corajosos e honrados, mas não peço para que sejam heróis, Batsuki-kun — seu tom gentil e sereno era carregado de tristeza e pesar — Todos os heróis que conheci, morreram mais rapidamente que covardes, como eu. Não sou nenhuma heroína, e nunca fiz questão de ser. Quando recebi o cargo de Tsuchikage, eu era insegura, infeliz e infantil demais. E eu não falo como se tivesse mudado, continuo a mesma pessoa, mas tento ser vista como uma mulher autêntica, caso contrário serei indigna de governar — respirou fundo, caminhando na direção da estátua do Nidaime Tsuchikage, Darkon Hyūga, antes de recomeçar — Quando eu estive em Amegakure, com ele, pude ver seu rosto. A única no vilarejo, além das esposas, a conhecer sua face. Pode parecer bobagem, mas até hoje é um dos gestos mais gentis que alguém fez por mim. Nesse mesmo dia, metade do mundo havia morrido e tínhamos falhado em proteger milhares de inocentes, todos vítimas dos Jashinistas. Não podemos proteger todos, Mangetsu Batsuki, algumas vidas são perdidas no processo. Devemos salvar todos os que podemos, embora alguns outros prefiram abrir mão da própria vida para que milhões possam viver — sorriu, tocando a escultura com ternura. Fechou os olhos, contendo a lágrimas que ameaçava se formar, e deu meia volta rumo à pequena mesinha, repleta de petiscos.

Partilhou da sobremesa com o garoto, comendo dois cubos de queijo. Adorava o sabor, mas nada era mais saboroso que pôr para fora tudo o que estava sentindo. Corou quando percebeu o sorriso bobo em sua face, disfarçando a postura imediatamente. Encheu uma taça com um pouco de leite, bebendo alguns goles antes de repousar o recipiente na mesa, mudando o semblante para uma postura austera.

— Conhecendo melhor um pouco do garoto responsável por aprisionar Isao Ito, creio que não tenho dúvidas de que posso lhe dar o que você deseja — olhou de canto para o rapaz, buscando nos armários ao lado os relatórios. Abaixou-se, ligeiramente, para buscar na penúltima gaveta o arquivo confidencial necessário — Você disse que desejava fazer algo pela vila. Pois bem, tenho uma missão perfeita para seu caso — espalhou os papéis na mesa, alguns pergaminhos e cartas — Esses são alguns dos processos arquivados da aldeia. Quando o Segundo abandonou o cargo, a vila foi entregue aos anciãos corruptos e a cúpula corrupta de Iwagakure no Sato. Não tenho dúvidas que a minha própria nomeação seja uma espécie de jogo sujo, pois tenho certeza de que estão esperando que eu seja passiva e irresponsável, facilitando as falcatruas deles. Recentemente, alguns magnatas me ofereceram suborno para absolver alguns processos contra eles. E outros, matrimônio, para tentar de alguma forma assumir o poder. Em todos esses casos, pensam que sou tolo e inocente. Minha face não deixa dúvidas disso, mas talvez tenham esquecido de um detalhe — foi então quando Allannia Grey sorriu, abrindo um pergaminho em específico, sendo uma transcrição completa de uma audiência com um suspeito interrogado, uma delação premiada completa — As aparências enganam. E eu não estou disposta a ser escrava do sistema, muito menos sentar no colo de ninguém em busca de riqueza e privilégio. Todos esses homens estão financiando uma organização criminosa, composta exclusivamente por ex-integrantes da Bakuha Butai, você certamente conhece as figuras. O plano arquitetado tinha como único propósito matar populações inteiras, criando um estado de medo e desordem em todo o País da Terra, ao incitar atos terroristas ao redor de cada distrito de nosso território. Graças a você e uma das nossas Kunoichi, os prejuízos foram menores, pois conseguimos identificar os responsáveis e, referente a você, pudemos recuperar as provas que incriminam a todos. Mas não é o suficiente. Todos eles estavam seguindo ordens dos poderosos, e não basta simplesmente acusar e obter nomes das cabeças, simplesmente são poderosos demais para serem punidos. Se forem presos, escaparão. Se forem julgados, serão absolvidos. Se os bens forem confiscados, irão continuar ricos por meios ilícitos. Só existe uma solução, e você deve imaginar qual seja — virou-se para olhar Mangetsu Batsuki, com os seus profundos olhos azuis em chamadas e um sorriso inocente em seus lábios — Eu quero todos mortos.

As mãos da Kage gentilmente tocaram as do louro, tomando dele uma das cartas. Sorriu, balançando a cabeça levemente. “Há coisas que você ainda não pode saber, pobre criança. Coisa que nem mesmo eu queria ter descoberto”, pensou consigo mesma, ciente de que não poderia revelar para o Chūnin alguns dos maiores segredos de Estado de seu vilarejo. Conhecimento era poder, mas quanto mais ele era acumulado, mais perigoso viver ficava. Suas mãos selecionaram dois pergaminhos em específico, as quais foram amarrados juntos antes de serem entregues com uma carta ao lado.

— Sinto muito, mas isso não será possível. Alguns dos maiores segredos do vilarejo estão contidos aqui, e a sua missão envolve exclusivamente o assassinato dos envolvidos — o tom que Allannia falava era natural, mesmo que fosse detestável banalizar vidas humanas. “Alguns não merecem viver. E para quem matou alguns parentes, carregar o peso de mais alguns homicídios é parte do meu trabalho” — Espero que não fique chateado por isso. Pode se despedir da sua mãe, sim. Inicialmente você será colocado em uma missão de fachada, enquanto desempenha o seu verdadeiro objetivo, deste modo ficará mais difícil que o propósito seja decifrado. O mais importante será evitar ser reconhecido, pois se descobrirem que você assassinou os poderosos da vila, vão procurar mandantes. Eu serei a primeira da lista, e minha reputação será questionada. Nesse caso, eu ressinto que terei de informar aos demais não possuir nenhum envolvimento com o caso, terei de casar com algum dos vermes asquerosos que tanto odeio e você será executado em praça pública como um traidor da pátria. Não é um bom fim nem para mim, nem para você — sorriu, num misto de cinismo simulado. No fundo, estava mais preocupada com a conclusão da tarefa — Você não trabalhará sozinho nisso, dois ninjas serão enviados ao seu lado. Possuem informações fundamentais sobre os inimigos, pois são agentes duplos e mudaram de lado com uma doce promessa. Eu não estou nem um pouco afim de cumprir com o que prometi, assim que tudo estiver acabado, mate os dois também — as ordens de assassinato eram sempre amargas nos lábios, mas doces quando imaginava o futuro de Iwagakure com tanta gente nefasta coexistindo ao seu lado.

Allannia era uma mulher frágil, e mesmo escondida em sua armadura de Governante, era fácil de perceber o peso de seu cargo. As mãos inquietas, o olhar receoso e o tom de voz que por vezes fraquejava. Ainda não era a líder ideal, mas precisava ser o mais próximo que pudesse disso, caso quisesse salvar os seus de uma vida medíocre. Se sentia desconfortável em entregar uma tarefa tão hedionda para apenas um adolescente, ainda em sua puberdade. Ele parecia mais maduro do que sua idade biológica mencionava, mas ainda possuía traços evidentes de inexperiência. Caso se tornassem Tokubetsu Jōnin, poderia sanar de uma vez por todas seu problema.

— Estarei aguardando o seu retorno, Batsuki-kun. Não me decepcione, por favor. Gostei tanto de nossa conversa que quando acabar, podemos marcar um reencontro — corou ao agendar a audiência com o mesmo, quando tudo acabasse, virando a face imediatamente caso este olhasse em sua direção — Não falhe. Eu preciso de você.

Estava organizando alguns documentos necessários para mais um de seus empreendimentos em Iwagakure, a ser começado o mais breve possível. Seu plano de modernização do vilarejo era uma ambição, e não desistiria fácil de seu objetivo. Tornaria sua vila um enorme Polo Tecnológico ao redor das Cinco Nações Shinobi, sendo reverenciada por seus avanços, caso seus planos fossem concluídos com sucesso.

Os devaneios da tarde foram interrompidos quando o aprendiz irrompeu de sua sala. Ele aguardava por algum comando, respeitosamente, quando a sensei limitou-se a sorrir. Gesticulou para que o rapaz se aproximasse, oferecendo a cadeira em frente à sua mesa como assento.

— Eu achei que fosse óbvio que não precisasse de formalidades comigo, Brakios-kun. Mais do que sua Kage, eu sou sua tutora. Minha responsabilidade é cuidar de você — Allannia proferiu em tom de voz doce, abrindo um sorriso tímido — Desde o falecimento da antiga responsável pela função central, o “True Damage” carece de um espaço a ser preenchido, mesmo que não seja do meu feitio preencher lacunas. Vocês precisam de uma linha de cooperação, e tratarei de fornecer um novo integrante para a equipe. Depois irei perguntar para a Utahime o que ela pensa disso, afinal, precisamos escolher um novo líder. Ambos empataram o combate que tiveram, então teremos que utilizar de outro parâmetro — levou o dedo indicador aos lábios, pensativa — De todo modo, acho que você não veio aqui jogar conversa fora. Precisa de alguma coisa? — os olhos azulados encararam profundamente o moreno, tentando decifrar suas intenções.

A animosidade de Brakios sempre alegrava o semblante sereno da Grey, notando no rapaz uma força de vontade notória. Os olhos azulados perceberam certo terror do Chūnin ao vislumbrar a estátua feita em homenagem ao Darkon Hyūga, uma de suas diversas inspirações. Não queria dar uma resposta consistente quanto ao selecionado para o posto de referência em seu time, mas ao mesmo tempo deixar o aluno no escuro deixava a prateada mal.

— Talvez você seja o nomeado, não tenho muita certeza se a Utahime está interessada nesta posição. E além do mais, eu tenho alguns planos para ela — as mãos inquietas tocaram as do rapaz, gentilmente — O Nidaime assusta? Ele era um homem duro e aterrorizante, sim. Lembro de quando o conheci. Tinha sua idade, e de certo era muito mais tola — sorriu, recordando o homem. Jamais esqueceria o momento marcante de quando a face deste fora revelada, exclusivamente para sua persona — Mas era corajoso. E forte. Além de um líder espirituoso, muito animado. Era um mestre do Elemento Terra, o mais habilidoso que já tivemos na vila até hoje, pelo que sei. Vejo um pouco dele em você, Brakios. Apesar de ser uma figura controversa, capaz de casar com duas mulheres, era um bom homem. Uma pena que não tenhamos batalhado mais vezes lado a lado. Um dia sonhei em ser sua assistente, mas o destino quis que não fosse assim — suspirou, e permitiu que ele falasse seus objetivos.

Os objetivos do rapaz em começar um empreendimento agradou bastante a Kage, planejando os mesmos preceitos recordados. Pensou em parabenizar o rapaz pelas atitudes, mas quando os lábios esboçaram uma reação, congelou. Quando ambos os olhares foram trocados, e a distância entre ambos encurtou, um arrepio percorreu seu corpo. Um impulso natural de uma mulher jovem, consideravelmente casta e esperançosa quanto a existência dos sentimentos. Podia sentir a energia emanada pelo Sarutobi, e quando pensou que ele faria algo, houve apenas um recomeço na temática abordada.

Fechou os olhos e balançou a cabeça, com o coração palpitante. Envergonhada, evitou contato visual, procurando desajeitada alguns papéis em sua mesa. Seriam os documentos necessários para a formalização do acordo, assinados por ambas as partes no fim das tratativas. Escutar sobre bebidas apenas constrangeu mais a Sandaime, recordando de quando perdeu a linha com as bebidas. Gostava de como as substâncias poderiam corrigir sua Timidez por completo, provocando nela uma empolgação inexistente em seu dia-a-dia. Carimbou alguns papéis em específico, antes de dar sua resposta.

— Eu gosto de bebidas. Muito — disse-lhe, simplista. Levantou de sua mesa, instintivamente arrumando seus fios prateados. Desferiu um único olhar profundo, confundindo a menção com um convite — Quero provar. As bebidas, no caso. E aliás, os papéis estão na mesa. Assine na área sublinhada, deixei marcada para facilitar. Você está ferido? — reparou durante o nervosismo o braço engessado, indicando uma fratura em recuperação.

Cuidadosamente, aproximou da área. A face denunciava sua vergonha, pois planejava evitar contato com este, partindo para a direção oposta. Realizados os Selos Manuais necessários, os dedos canalizaram o chakra esverdeado típico do “Shōsen no Jutsu”, revitalizando os ossos danificados após permanecer na mesma posição por instantes. Finalizado o procedimento, recuou. Provavelmente teria tido sucesso em sua tentativa, e o gesso já não era mais necessário para o shinobi. De costas para ele, diria quase que como um sussurro:

— Tenha mais cuidado, não gosto de vê-lo machucado. Eu mesma cuidaria do braço engessado, mas tenho de ir. Acho que está bom o suficiente para você conseguir se virar sozinho, agora — e, vagarosamente, caminhou na direção da saída. Diante da porta, acenou. Por fim, partiu.

Allannia estava dormindo após a noite exaustiva, trajando as mesmas vestes utilizadas no confronto. Despertou com o som de passos, e algo encostando em sua porta. Pelos gestos e formalidade vistas previamente, suspeitou da presença de Brakios Sarutobi. Não queria que o aluno a observasse sem suas peças formais, mas não teve tempo algum para se reorganizar. Sua prioridade máxima era organizar o funeral dos soldados máximos e preparar alguns trâmites em seus novos planos para a hegemonia do vilarejo. E as memórias. Sentia cada vez mais dificuldade em adormecer, atormentada por pensamentos e sonhos doentios. Temia gradativamente acabar deteriorando seu organismo, sua mente estava a beira do colapso.

A desta deslizou suavemente pela maçaneta, abrindo a porta com uma grata surpresa. Batsuki surgiria, trazendo consigo dois corpos. Um deles era familiar, ciente da ordem dada ao rapaz. Queria a dupla morta, e a expectativa era que a tarefa designada havia sido cumprida.

— Fico feliz em vê-lo vivo, Batsuki-kun. Entre, tenho certeza de que traz consigo um longo relatório — sorriu-lhe, ligeiramente envergonhada. Os olhos azuis questionavam a mulher excêntrica, similar fisicamente à si — E algumas explicações, talvez — viraria as costas para o garoto, esfregando os olhos. Aparentava estar exausta, e realmente estava. Governar era mais do que permanecer sentada.

Organizou-se em seu assento, mexendo as mãos inquietas em seu “Seigi no Sho”. A pilha de papéis, principalmente os termos de óbito e de assistência familiar às famílias afetadas concediam um aspecto desagradável em seu ambiente de trabalho. Allannia Grey já apresentava claros indícios do quão complicado era lidar com tudo sozinha, mas tampouco requisitava ajuda. Responsável por toda uma nação, preferia que o peso caísse todo em suas costas do que dividir seu tormento com alguém. Na sua mentalidade imatura, era o correto a ser feito.

Abaixou o olhar, e respirou fundo. Sabia de maior parte daquelas coisas, embora alguns detalhes estivessem distorcidos. Havia enviado Kamizuru Ichika, assim como as demais integrantes de seu time, para uma missão de reconhecimento e suporte caso os indivíduos fossem ariscos ao louro, mas aparentemente, não deram as informações corretas. Alguém dentro da cúpula do vilarejo está maquinando algo profundo, por mais previsível que fosse. Poder, fama e riqueza seduziam homens fiéis e conduziam inocentes para a cova em seu lugar. Sacrifícios em prol de um egoísmo doentio.

Sentiu vontade de rir, levando os dedos aos lábios. Não era muito diferente deles, conduziu o Chūnin para uma missão perigosa e colocou o mesmo ao lado de dois indivíduos perigosos. Kayn não era uma morte necessária, mas seria uma queima de arquivos para tirar sua cabeça da reta. Aparentava estar neutra na dança das cadeiras, dançando conforme a música, mas estava tomando os lugares e puxando os assentos para poder passar. Lembrou das palavras de Tamamo, e das afirmações de Osakabe. As raposas estavam certas, Allannia era uma pessoa terrível.

O tráfico humano era corriqueiro em Iwagakure. Pobre e pouco desenvolvido, bagagens genéticas e artifícios similares eram uma fonte alternativa de renda para magnatas. Sequestrada e vendida como mercadoria outrora, desfrutou na pele a sensação de ser tratada como um animal. Esteve preocupada com a possibilidade do rapaz ter o mesmo destino, mas confiou em suas habilidades. O rapaz demonstrou talento e lealdade, e sua sobrevivência enfatizava mais o seu status quo. Refletiu por alguns instantes após este terminar de falar, dispersa em seus pensamentos. Os experimentos avançados e o elevado grau de organização deles era preocupante, exigindo da Tsuchikage medidas drásticas. Observou as feições desgastadas do rapaz e ponderou acerca de seu preparo para uma nova missão.

— Compreendo. Providenciarei compensações para as famílias, e recuperar os corpos para um funeral digno. Talvez seja tarde demais para isso, mas não custa nada tentar — uma mentira adocicada, era bem certo que não havia sobrado nada das vítimas — Agradeço por sua preocupação, Batsuki-kun. Nosso vilarejo foi invadido por seres estranhos, completamente albinos. Eram inúmeros, e poderosos. Tentaram atacar os civis e as construções, mas conseguimos impedir o pior. Em compensação, sofremos um duro golpe em nosso exército. Maioria dos defensores foram dilacerados nos primeiros momentos do ataque. Bravos guerreiros massacrados. Lutei na linha de frente, mas segurei tudo nas pontas dos dedos. Não sou forte o bastante — ergueu-se de seu assento, e caminhou na direção do Shinobi.

Timidamente, aproximou-se num intento do que aparentava ser um abraço, mesmo desengonçada. Não costumava demonstrar afeto ou preocupação, mas fragilizada por tantas perdas, um retorno tranquilizava sua alma. Não iria ser responsável por mais nenhuma morte. Embora orgulhosa, egoísta e consideravelmente covarde, Allannia se preocupava. Dificilmente conseguiria dormir se mais um cadáver estivesse diante de seus olhos. Conteve as lágrimas, e vagarosamente, afastou o corpo. Recuperou a compostura, e como se não houvesse ocorrido nada, recitou em tom cordial:

— Parabéns por seu sucesso, Mangetsu Batsuki. Estou feliz que a missão tenha sido concluída com destreza. Depositar minha confiança em seu trabalho rendeu bons frutos. As reféns chegaram em seus lares? — a partir daquele ponto, um calafrio percorreu sua espinha. “E se ele estiver vivo?”, questiono a si mesma. Por ter assassinado o mais perigoso da dupla, deduziu o mesmo destino ao moreno. Refletindo cuidadosamente, em nenhum momento houve menções ao destino final deste — Kayn está vivo?

E rezou para que a resposta fosse não.

Suas suspeitas foram confirmadas. Não repreenderia o rapaz por não ter cumprido todas as nuances da missão, afinal, era difícil em demasiado conseguir eliminar dois oponentes de alto nível sozinho, ao mesmo tempo que tentava sobreviver em território inimigo. Deixar o menor de seus problemas escapar apenas adiava o destino inevitável do homem. Mas temia uma aparição repentina deste, a qualquer momento, reclamando para si a parte do acordo. Teria de atender seu desejo, do contrário sua honra estaria manchada para sempre. Era refém dele, e do que ele tinha. Vislumbrar um suposto constrangimento do rapaz aliviou a tensão do ambiente, mantendo a face incólume em respeito ao mais novo. Compreendia a situação, afinal, era desafiador discursar sem gaguejar. Extremamente tímida, aprendeu a ocultar suas debilidades, mas faziam parte do que ela era. Sentia orgulho de ter sentimentos, a única prova remanescente de sua humanidade. Cometeu tantos pecados que algumas vezes questionava a própria sanidade.

— Kayn é uma pessoa terrível, e é responsável por maior parte dos crimes que presenciou. Se ele ajudou, provavelmente quis evitar um conflito. Você é forte, Batsuki. Demonstrou isso ao derrotar uma das maiores ameaças do vilarejo — exceto pelo elogio, todas as sentenças anteriores eram mentiras amargas. Kayn é uma boa pessoa, mas no passado foi enganado pelo sistema, segundo suas próprias afirmações. Doía em seu peito precisar eliminar sua existência do mapa, mas era a sua única alternativa. Caso contrário... — Não consigo crer que as mulheres estejam seguras, irei averiguar a situação, mas minhas expectativas são baixas. A culpa não é sua, ele é ardiloso. Temo que tenha utilizado as moças como mercadoria e enriquecido, aproveitando a desordem causada — aproximou-se do rapaz, sentindo a culpa atravessar seu peito. Repousou ambas mãos em seus ombros, pressionando a região para baixo. A face esteve diante da deste, e os olhos azuis dela suplicavam. Infelizes e assustados, as orbes oculares denunciavam parte dos seus segredos — Batsuki-kun, preciso que dê um jeito nele. Caso consiga, prometo que será bem recompensado. Tenho sua palavra? — Permaneceu nas pontas dos pés, devido a estatura do rapaz. Era apenas alguns bons centímetros mais alto que a Tsuchikage, mas de todo modo, desagradável. Se sentia intimidada quando a olhavam de muito baixo.

Sorriu ao ter seu pedido atendido. Uma satisfação simulada, pois não sentia prazer algum em enviar homens para a morte. A menção do rapaz a mãe fez a Grey refletir, pois haviam tempos que não via a matriarca de sua família. Sentia saudades dela, mas ela não aparentava sentir o mesmo. Por um momento, a inveja atravessou seu peito e uma frustração enorme tomou conta de seu ser. Nada lhe fazia mais mal do que perceber a própria infelicidade.

Ajustou a compostura, mantendo em seu semblante impávido certa determinação. Confiava nas capacidades do rapaz, considerando a missão cumprida muito antes de ter sido iniciada. Caso levasse para a cama mais receios, certamente passaria tempo excessivo desperta. Quando a noite se projetava nos seus sonhos, todos os destinos pareciam impossíveis de escapar. E os finais, todos trágicos.

— Leve o tempo que precisar, você deve estar exausto. Quando retornar, venha até mim novamente. Sempre é revigorante receber um ninja fiel e dedicado — olhou de relance para os corpos diante de si, com certa estranheza — O que pretende fazer com esses corpos? — pousou o dedo indicador aos lábios, pensando no que poderia ser feito com os mesmos. A sua duplicada provavelmente será levada para uma avaliação técnica, embora não saiba o que fazer com 678, um traidor.

Após o destino dos cadáveres ser definido, concederia a permissão para o mesmo sair e repousar. Havia muito trabalho a ser feito, e logo precisaria agir. Ouviu sons duvidosos vindo da janela, recuando até a sua proximidade para averiguar o que seria. Após abrir uma pequena fissura, uma ave passaria, trazendo consigo uma carta. Acariciou sua penugem e concedeu-lhe uns pedaços de frango frito. Tomou a correspondência em mãos e a depositou em sua gaveta. Quando tivesse tempo, leria o que estava escrito. Como sempre, Allannia Grey deixava para ler notícias ou assuntos importantes para datas posteriores.

Observou a partida do Chūnin com um aperto no peito. Algo fazia a Grey se sentir mal quando contemplava a lealdade do mais jovem. “São coisas da vila, mas entregues a mim? Eu realmente represento alguma coisa para essas pessoas além de uma vagabunda sentada na cadeira? A única coisa que faço é assistir outros sujando a mão no meu lugar, enquanto finjo que sou útil para todos eles”, ironizou, esboçando um sorriso sarcástico. Governava pensando num futuro brilhante, mas contemplava uma realidade medíocre todos os dias. Mandou exterminar maior parte da oposição, e tentava maquinar para assegurar sua soberania dentro dos domínios, fazendo-se valer de uma fé concedida e propósitos vazios. Quando Allannia Grey se olhava no espelho, ela não se reconhecia. Que tipo de mulher ela estava se tornando?

Mais uma vez, teria adormecido em seus aposentos de Kage, após continuar com seus afazeres por incontáveis horas. Despertou com o som de garras trincando sua janela, supondo de imediato ser mais uma carta. Um calafrio percorreu sua espinha, temendo más notícias. Permitiu que a ave entrasse, observando o pouso suave desta em sua mesa. Carregava consigo uma bolsa, e era sempre dengoso aos seus toques. Uma risada calorosa a levou de volta para a infância, quando brincava com os passarinhos e bichinhos de seu Bosque.

O sorriso se desfez, como se fossem as cinzas de cada folha incendiada de seu antigo refúgio. Todas as memórias boas haviam partido, e doses escassas de felicidade alimentavam a chama quase extinta de sua força de vontade. As carícias, outrora afáveis, tornaram-se agressivas, afastando ligeiramente a criatura inocente. Percebendo o que fez, se sentiu envergonhada. Não teve coragem de vislumbrar sua partida, tomando a correspondência em mãos. Quando rompeu o lacre, o som das asas alcançando vôo decretaram a partida do amiguinho alado. Suspirou, suplicando mentalmente que este a perdoasse no futuro. Não era uma pessoa má, ou pelo menos era o que ela gostava de pensar.

Receber uma mensagem de Chokorabu tranquilizou o coração da prateada, que enfim teve notícias de seu protegido. Guardou a carta em sua gaveta particular, e decidiu que partiria. O odor dos cadáveres a incomodava, tal como gerava repulsa. Solicitaria que a estranha duplicada fosse levada para os indivíduos competentes do vilarejo, enquanto carregaria consigo os restos mortais do azulado.

Apesar da visão grotesca para os presentes, partiu apoiando o morto em seus ombros, utilizando de sua força máxima para assegurar seu sucesso em suportar o peso considerável do ser. Após dias distante do lar, visitaria Cinzamarca. Precisava ver a Leoa novamente, e conversar. Apenas ela a compreendia.