Ele duvidava de si mesmo. Hanabi Yanohara vivia num mundo habitado por pessoas com nomes e reputações respeitáveis, que tinham vidas organizadas e talentos de gente realmente significante. Os amigos dela faziam coisas pela política externa do vilarejo, apareciam no jornal e em propagandas coladas em cada muro, produziam grandes feitos. Para que eu serviria? O maior terror de Inuzuka Fugaku, tão grande e avassalador que assumia proporções fóbicas, era que as pessoas rissem de seus sentimentos, por isso mesmo ele os mascarava sob uma careta de agressividade e palavras rudes; E de repente teve a impressão de que todo o seu amor-próprio, tão laboriosamente construído, desmoronava. Mas ele não tinha escolha. Hanabi era uma mulher dois anos mais velha do que ele, que já atingia a maioridade e a maturidade sexual, com um corpo deslumbrante e perfeitamente delineado, como se tivesse sido esculpida por algum Deus que, compadecido dos horrores da violência e da guerra que assolava o mundo dos homens, enviara até aquele vilarejo uma criatura perfeita, de pele alva e macia, para aliviar o sofrimento de todos que repousassem sobre ela um simples olhar. Então decidiu-se. Levou várias horas mobilizando a coragem necessária, mas sentia-se na obrigação de vê-la e de dizer a ela o que sentia. Todo o resto era insuportável. Ele precisaria de um pretexto para ir à floricultura onde ela trabalhava. Não poderia dar a ela flores, era muito óbvio, mas queria dar um presente, uma singela comemoração a sua existência, e ele sabia o que comprar. Tinha visto num antiquário uma série de itens de porcelana e louça, delicados artefatos conservados durante muito tempo, provavelmente produzidos a mão por algum artesão ainda durante a juventude dos avós, e lá se encantou com uma placa metálica de decoração com algumas figuras em relevo. Esse cartaz mostrava uma delicada gueixa apoiando um instrumento de cordas na região anterior das quadril. Ele não tinha o menor jeito para a decoração, mas sabia que o cartaz caberia perfeitamente na gloriosa mansão em que ela morava, rodeada pelo jardim mais bem cuidado da Névoa Oculta. Custava setecentas e oitenta ryous e, por princípio, regateou o preço e conseguiu que baixasse para setecentas. Fizeram-lhe um pacote, ele o pôs debaixo do braço e, no dia seguinte, arrastou-se para fora da cama, com seu habitual calção de dormir, e observando através do vidro transparente da janela, imaginou se a sua amada estava dormindo sozinha, revelando parte de sua natureza desconfiada e enciumada, questionando a algum maldito Deus se ele, com aquelas mão calejadas, esfoladas e cheias de calos, era digno de em algum momento tocar a pele cândida de Hanabi. Diferente da maioria esmagadora dos outros dias que surgiam com a primeira luz da alvorada, era a luz do sol, límpida e desimpedida que começava a alcançar cada canto escuro das vielas e ruas da pequena cidadela, iluminando também seu físico contemplativo que, a visão de qualquer um, pareceria assustadora. Seu treinamento ávido e penoso tinha garantido a ele um físico capaz de intimidar a maioria dos homens que quisessem disputar a atenção de uma mulher. Apesar disso, ele repousou a mão, trêmula, sobre a boca do estômago, sentindo um autêntico "voo de borboletas" em seu âmago, que nada mais era do que os movimentos peristálticos do seu intestino mobilizando a massa fecal diante de uma injeção de adrenalina e dopamina de suas glândulas pelo simples ato de pensar no que estava prestes a fazer. Uma explicação menos realista e mais romântica, no entanto, poderia descrever aquela sensação como um sinal que alertava uma paixão em curso. Sorrindo um sorriso amarelado ao pensar novamente nela e se afastar da janela, ele encarou mais uma vez o pacote cuidadosamente guardado em meio as roupas dele, onde ninguém mexeria nem iria perguntar do que se tratava o embrulho, apesar de revelar um pequeno deslize na manutenção do quarto que era mantido impecavelmente arrumado.
Sem querer atrair qualquer atenção para si andando pela casa absorto como estava, ele vagarosamente caminhou para o pequeno banheiro que dividia com os demais irmãos, suspendendo a única peça de roupa que vestia diante do vaso para em seguida fazer suas necessidades matinais. Depois, um banho rápido e então se arrumou com o melhor uniforme que pôde encontrar: um traje preto e amarelo, colado ao corpo, com uma gola felpuda na cor cinza. Naquele dia, usaria o símbolo do vilarejo, sua hitai ate, atada à cintura, como sempre. Enquanto escovava os dentes, observou seu reflexo no espelho de vidro sobre a pia e resolveu pentear os cabelos, que já se alongavam para além da altura das primeiras vértebras cervicais. Como era uma ocasião especial, ele penteou também os fios que cresciam no entorno da mandíbula, tratando de passar uma loção para barbear, mesmo que não tivesse usado a lâmina, para estar perfumado pelo líquido de notas amadeiradas. Dali, passou no canil, anexo a casa, e pegou o cachorro, Yun, de seu pequeno cubículo, e esfregou nele a mão com o restante da solução para barba que tinha ficado entre os dedos, além de atar uma bandana ao redor do pescoço. Cafona, mas ficou bom... Foi mal, Yun, disse enquanto resgatava o companheiro canino. O relógio já marcava onze da manhã, e ele não tinha comido nada ainda, e nem iria ter qualquer refeição. O embrulho no estômago não iria permitir. Já com o presente em mãos, eles foram a pé para a loja de Hanabi na avenida principal. Quem sabe um almoço... Com o dinheiro que tenho ganhado com tantas missões, posso me oferecer para pagar uma boa refeição em qualquer restaurante que ela quiser. O que acha, amigo?, perguntou ao animal que o seguia lado a lado. Quando passava pela rua lateral, olhou para um bar-café e viu Hanabi saindo dali acompanhado de Yusuke Kamado. Ele disse alguma coisa, Hanabi riu, passou o braço pela cintura dele e beijou seu rosto. Eles desapareceram pela paralela em direção ao jardim botânico. A linguagem corporal dos dois não dava margem para falsas interpretações — era óbvio o que eles tinham em mente.
A dor foi tão instantânea e insuportável que Fugaku se deteve imediatamente, incapaz de se mexer. Uma parte dele quis correr para alcançá-los. Ele queria usar uma borda afiada do cartaz de metal para cortar a cabeça de Yusuke. Não fez nada, enquanto os pensamentos se agitavam em sua cabeça, sentia seu coração imaturo se despedaçar em milhares de pedaços. Análise das consequências — se ele matasse o rival ali, seria considerado um criminoso e provavelmente seria preso. Mas era certo que, a partir de então, ele não olharia mais para nenhuma mulher com os mesmos olhos, tamanha a decepção de um menino que cresceu sendo tão cavalheiro quanto possível em meio a uma família repleta de homens, brutos e rudes, e que nem sequer pensaria em atacar uma dama em meio a um combate. Ali, no alto de seus dezesseis anos, vivia a sua primeira decepção amorosa, mas esperava, como todos os que passam por isso, que fosse a última vez. A primeira vez que demonstrara sua afeição fora do comum por mulheres, foi ainda na infância quando, ao ser colocado diante de uma tela onde era reproduzida uma fita qualquer, ele começava a chupar o dedo polegar compulsivamente e de modo completamente obscena — as loiras sempre foram seu ponto fraco, mas todas as etnias, trejeitos e formatos corporais lhe eram aprazíveis. Acabou se acalmando, apesar do turbilhão de pensamentos que atinavam em sua mente, enquanto as borboletas perdiam as asas, murchavam e morriam em seu âmago, dando lugar a uma intensa vontade de choro, mas ele não iria se dar esse luxo, não. Naquele momento, que Deus fosse misericordioso, mas ele mataria os dois bem ali, na frente de todos. Seu cão vira lata, que ridículo, que idiota você é!, disse a si mesmo em voz alta. Virou as costas e tomou o caminho de volta ao seu casebre quase sempre apinhado pelos familiares e uma quantidade ainda maior de cães, encontraria neles a distração para abstrair, mas sabia que a cena se repetiria em looping milhares de vezes, imaginando as carícias que aqueles dois poderiam trocar em seu íntimo. Passava pelo velho antiquário quando começou a chover. Jogou a gueixa num coletor de lixo, e precisou vomitar para cessar aquela maldita sensação de apodrecer por dentro. O cão, ao seu lado, era enfim o seu único parceiro, e o que jamais seria fonte de qualquer decepção que pudesse ferir novamente o órgão que batia na cavidade de seu peito, que agora estava reduzido a isso e desvinculado de qualquer abstração metafórica em que ele carregasse qualquer sentimento nobre.