Havia chegado o dia, aquele fatídico dia. A luz vermelha, lançada pelo astro no alto do céu, alcançou minhas pálpebras num rompante, um brilho tão intenso que demorei a me acostumar. Estirado sob o meu sofá, coberto apenas por um velho lençol, tentei me levantar com um impulso, o que me fez sentir uma excruciante dor no meu quadril. Os dias e dias trabalhando na forja haviam castigado um pouco as minhas articulações, para além das tarefas ninjas que eu vinha incansavelmente realizando desde o inverno passado. Minha vida havia se resumido a isso: trabalhar cada vez mais. Na realidade, toda a minha vida foi reservada a me dedicar em prol do outro. Eu deveria ser assim, pelo bem dos meus ideais. Jogando o peso do corpo para trás, e em seguida atirando-o para frente, completo o movimento de uma gangorra e consigo finalmente me erguer. Os pés dormentes tocam o piso frio, mas logo me calço com minhas habituais sandálias. O meu traje vem logo em seguida: roupas brancas, um pouco encardidas, presas por um cinto avermelhado, desbotado desde a base. Me espreguiço morosamente, e em seguida vem um longo suspiro. Estava na hora. Este era o dia, o aniversário da morte de meu pai, Kiritsugu Emiya, aquele que me salvou do inferno. Sem demora, avanço pela porta de minha casa e deixo para trás a sensação de conforto que me cobria, sendo invadido por um estranho sentimento, como se houvesse um nó em minha garganta que apertava mais e mais.

Aquela estranha esfera carmesim continuava a pairar no céu como um anel demoníaco, mesmo depois do passar das semanas. Apesar de vermelho, aquilo certamente não era o sol, tampouco a lua. Era, de fato, um evento estranho que eu nunca haveria de me acostumar. Me peguei fitando a estranheza estampada no horizonte por um bom tempo, para então me lembrar de retomar o meu galgar. Passo a passo, progredi pelas areias finas sem pressa alguma. Se alguém me visse de longe, poderia me confundir com um ébrio, ou então com um mendigo, tamanha era a atmosfera mórbida que emanava de meu ser. Não estava preocupado em esconder o que eu estava sentindo, tampouco ligava para quem me visse atravessar as movimentadas ruas do vilarejo. Eu apenas estava concentrado em meu interior, tentando conservar minhas energias para logo mais. Embora ele não tenha sido meu verdadeiro pai, Kiritsugu se tornou a minha maior inspiração, e eu continuaria a carregar sua vontade até o dia em que eu mesmo partisse. As memórias que forjamos juntos, as tristezas que passamos, as dificuldades que superamos, tudo isso continuava a ser martelado em meu íntimo. E neste dia, cada pedaço, cada lasca, cada fragmento dessas lembranças vinha à tona, à mil, como se atravessasse o próprio tempo para alcançar meus pensamentos. Era assim desde o primeiro ano após sua morte, e continuaria a ser assim por mais algumas décadas, eu suponho. Isso era luto.

Na minha caminhada, os transeuntes que me rodeavam ao longo das ruas de Sunagakure aos poucos eram deixados para trás. O mundo vívido de antes era substituído por um ermo triste e monótono: antes, ladrilhos para todos os lados, pessoas galgando de lá para cá, calçadas, casas, prédios e outras construções; agora, havia apenas a areia do deserto, um pequeno espaço ladeado de cercas de madeira e com a terra acabada preenchida por dezenas, senão centenas de estacas e placas de todos os tipos. Eram memoriais, túmulos daqueles que já partiram para o outro mundo, pessoas que, mesmo após a despedida, continuariam a serem lembradas pela eternidade. Ainda com os movimentos débeis, contornei as cercas para então entrar naquele cemitério. Eu já conhecia aquele lugar como a palma de minha mão, então não tardei para encontrar o meu destino. Os passos deixavam pegadas na areia escura enquanto eu encruzava as numerosas sepulturas. Eu só me importava com uma delas, e quando eu a encontrei, finalmente parei a caminhada. — Ei, velho. — Foi a primeira vez que eu falei naquele dia. As palavras saíram agarradas pelo pigarro matinal, e o nó que apertava minha garganta ficou ainda mais forte. Eu estava de pé, e meus olhos fitavam o horizonte, olhando as nuvens negras abarrotadas no céu carmesim. Me faltava coragem para encarar o túmulo. — Eu voltei de novo... estou aqui mais um ano. Parece que você não vai se livrar de mim tão cedo. — Tentei esboçar um sorriso, mas falhei. Eu estava triste, mais uma vez.

Respirei fundo e, então, finalmente desviei o olhar para o túmulo. “Aqui jaz Emiya Kiritsugu”. Simples. Direito. Era o que estava encravado naquela simples pedra. Tentei revirar o olhar mais uma vez, voltar a observar o céu, mas não consegui. Não poderia fugir do luto, não mais. Logo, agacho na areia de cor escurecida e fico ainda mais próximo do sepulcro, ofegante, mas olhando fixo para o lugar. — Por que eu continuo a vir até esse lugar, velho? Por que eu continuo a sofrer pela sua morte? — As perguntas soaram como uma súplica, quase um apelo retórico, pois eu sabia a resposta. Seguramente, era porque eu continuava a sustentar os ideais que ele havia plantado em mim, os anseios de um herói da justiça, um super-herói que salvaria a todos às custas de sua própria vida. Abastecer essa vontade significava relembrar dos ensinamentos de Kiritsugu e sua maior aspiração: alcançar um mundo de paz. Suspiro mais uma vez, e então, encosto na rocha da sepultura. De repente, sinto uma queimação na palma de minha mão, como se fogo estivesse saindo daquela pedra. Eu tiro a mão rapidamente, mas percebo a rocha mudar sua cor, sendo inundada por uma energia azulada. O que estava acontecendo? Aquilo nunca tinha acontecido antes. Eu rapidamente tento controlar aquela energia ao recolocar a minha mão sob a pedra, tentando readequar o fluxo do chakra emanado, mas nada acontecia. Até que, de súbito, a energia que se expandia me alcança, e me vejo perdendo os sentidos. Tudo fica branco, como se minha visão não funcionasse mais, e em seguida nem mesmo o som dos ventos podia ser ouvido. Segundos depois, eu estava no chão, largado sob a areia do cemitério como um verdadeiro defunto.

Quando despertei, eu não estava mais no cemitério de areia. Na realidade, eu estava sob uma necrópole flamejante, com um mar de corpos interminável. Eu havia voltado ao inferno, àquele fatídico inferno, onde tudo começou. Chamas se alastravam aos montes pelos prédios e casas, os derrubando e os levando aos escombros. Pessoas gritavam, aos prantos, e o cheiro da carne pútrida lentamente invadia minhas narinas, se misturando ao miasma das coisas carbonizadas. O calor lancinante era tanto que minha pele ardia, e meus olhos lacrimejavam intensamente. Como eu havia voltado para aquele lugar? Parecia uma ilusão, mas, ao mesmo tempo, parecia tão real, como se eu realmente tivesse voltado no tempo para o momento daquela tragédia. Controlando meus passos como se eu mesmo estivesse vivendo aquilo mais uma vez, atravessei por aquela zona vermelha arfando pesadamente, até finalmente cair no chão. Qual foi o sentido de eu ter sobrevivido àquilo? Por que fui poupado desse inferno? A razão para tal sobreveio de repente: um homem alto, de cabelos negros e olhos brilhantes encharcados em lágrimas. Era Kiritsugu. Ver o seu rosto tão de perto, como se estivesse vivo ao meu lado, me fez lembrar ainda mais de sua pessoa. No começo, eu apenas o admirava, mas essa admiração foi construída a partir de um desejo, o desejo de que esse inferno flamejante fosse desfeito, o desejo não-realizado de um homem que só queria ajudar os outros, mas que perdeu tudo no fim. Este foi Kiritsugu Emiya. Estirado sob o chão, envolto pelas chamas, eu ergo minha mão para tocar aquela ilusão viva de meu pai adotivo, até que, mais uma vez, meus olhos se perdem em uma luz ofuscante e sem fim.

— Ei, como você está? — Uma voz fraca surge em meus ouvidos depois de um fino zumbido que ecoava na minha cabeça. Meus olhos aos poucos se acostumam à luz do novo lugar em que me encontrava, agora não mais aquele inferno. Uma tranquilidade inigualável preenche o meu âmago, como se eu tivesse meditado por horas, talvez dias. Anuviado, um semblante lentamente toma forma à minha frente, o mesmo semblante que eu conhecia, embora um pouco mais castigado pelo tempo. Mais uma vez, aquele era Kiritsugu. Ele estava sentado ao meu lado, olhando para mim com ternura. No alto do céu noturno, a lua projetava seus raios luminosos através das tênues nuvens que permeavam o zênite, enquanto, à nossa frente, se fazia um lindo cenário florido característico de alguns poucos oásis em Sunagakure. Aquela era a casa de Kiritsugu, e aquela cena também me era familiar. Foi quando, anos atrás, eu prometi que eu carregaria sua vontade altruísta, assegurando que eu me tornaria um herói da justiça; e foi neste mesmo momento que Kiritsugu veio a falecer, livre do peso dos seus ideais. — Kiritsugu... — Mais uma vez, levanto mais braço na intenção de tocar o seu rosto, e dessa vez eu consigo, sentindo até mesmo o calor em sua pele. Como era possível? O que era aquela ilusão?

— Sim, sou eu criança. Você deve estar com algumas dúvidas. — Ele revira o rosto para a lua, fitando-a com serenidade.
— Como eu consigo falar com você? Eu enlouqueci? — Tento dar uns tapas em meu rosto, chacoalhar a cabeça, fechar os olhos com força. Mas nada disso me libertou daquela ilusão.
— Na verdade, você está aqui por minha causa... seu chakra finalmente reagiu com aquela pedra...
— Como assim? Eu fui absorvido por uma energia azul quando toquei seu túmulo... o que isso quer dizer? — Perguntei, me revirando na direção. Eu ainda não havia entendido completamente o motivo daquele encontro, nem sequer a forma como ele pôde acontecer.
— Isso não importa agora, criança. O que importa é que você ficou mais forte para isso ter acontecido. O que tem feito nesses últimos anos? — A voz era calma e muito debilitada, como naquele exato dia que ele se foi.
— Eu... eu tenho mantido a minha promessa. — Respondi com pesar. Provavelmente, aquela ilusão teria sido desencadeada pelo meu aumento de força no último ano. Esta seria a única explicação para ela somente ter se mostrado agora, mesmo após eu visitar aquele túmulo por quase uma década inteira.
— Que bom, criança. — Ele fez um sorriso sincero, e seus olhos se fecharam com gentileza, como se ele confiasse em mim. — Espero que você esteja indo bem em sua caminhada. No entanto, esse encontro não é para falarmos de seu futuro, mas sim, sobre o seu passado... — Resoluto, Kiritsugu volta a olhar para mim, e eu me perco no fundo negro de seus olhos.
— M... meu passado?
— Sim, o seu passado. Quando lhe conheci, no hospital, eu me apresentei como um assassino profissional, um caçador de recompensas que abandonou seu ofício depois de matar, matar e matar. Durante o meu período como um assassino, eu fui implacável nas minhas tarefas, um shinobi especializado que era movido apenas por meus ideais. — A voz continuava calma, mas mostrava certa seriedade. Ele prosseguiu.
— Esses ideais me levaram a cometer um erro. Tentando poupar a vida de uns, eu escolhi abater outros. Foi o que aconteceu naquele incêndio. Aquela era a área residencial do clã Uchiha, uma família de shinobis perigosos na Areia. Eu fui o responsável por iniciar o incêndio e matar a todos, um por um. Este foi o meu maior pecado, pois descobri que havia uma conspiração para que esse clã fosse exterminado do vilarejo, e eu fui usado como um peão para tal. — A ficha ainda não havia caído, mesmo após aquelas palavras.
— Percebendo a gravidade dos meus atos, eu resolvi procurar qualquer resquício de humanidade que restasse naquele lugar. Eu não encontrei nenhuma vivalma por detrás dos escombros e das chamas... até ver você, abatido, franzino, no chão coberto de cinzas. E eu, em prantos, o tomei nos braços e o carreguei para longe dali.
— Então, isso quer dizer que...
— Sim, garoto, eu carrego a culpa de matar toda a sua família.

O choque me atingiu como o golpe de um aríete, e a respiração ficou descompassada. Olhei para Kiritsugu, mas não consegui odiá-lo. Mesmo após saber tudo aquilo, eu pouco me lembrava de meus pais, ou mesmo dos meus dias enquanto um membro daquela família estranha. Eu adotei o sobrenome Emiya por desconhecer as minhas origens, mas, mesmo agora, eu continuaria a carregá-lo. — Não se martirize, velho. Parece que a ficha não caiu, mas acho você fez o que achou estar certo. Não me lembro dos meus pais, dos meus amigos, dos meus irmãos como um Uchiha. Mas lembro de passar os dias com você, de passar as horas e horas treinando e lembro de como fui feliz nesse tempo, como um Emiya. Eu só tenho a agradecer, para falar a verdade. — Meu semblante era sério, mas ainda fui capaz de falar essas palavras. Kiritsugu então, se vira para mim enquanto seu rosto desvanece em poeira. — Obrigado, garoto. Espero que venhamos a nos encontrar no futuro. — O cenário ao meu redor começa a tremeluzir como um devaneio incômodo, e meus sentidos novamente são desnorteados. Perco a visão e a audição, mas não antes de ouvir um último “obrigado”.

Acordo com uma grande dor de cabeça, uma dor latejante que refletia até mesmo nos meus olhos. — Que droga... acabou... — Me levanto da areia escura do cemitério, e em seguida percebo que a lápide de Kiritsugu estava lascada com uma pequena fratura em seu centro. O chakra de outrora havia feito aquilo e, provavelmente, aquela ilusão não poderia mais ser acessada. Agora, eu sabia a verdade. Eu era do clã Uchiha, uma família que eu pouco conhecia. Quais seriam os segredos por trás desta linhagem? Eu haveria de descobrir muito em breve. Por hora, eu sairia daquele lugar e retornaria para minha casa. O sentimento do nó em minha garganta havia desaparecido, e bem como eu me sentia um pouco mais feliz. O encontro com Kiritsugu, mesmo que através de uma fantasia pré-programada, me foi o bastante para me alegrar um pouco. Eu esperava que eu pudesse reencontrá-lo mais vezes dessa forma, seria de grande ajuda para superar o meu luto.

Considerações: