Me pergunto como as coisas haviam ficado deste jeito. Presa em meu quarto, não queria sair para encarar o mundo lá fora, o sol não podia invadir, já que fazê-lo traria a obrigação de contemplar a chegada do novo dia. Em prol de evitar isso, as janelas estavam fechadas ao ponto de que apenas a escuridão existisse. Por mais patético que pudesse soar, eu apenas queria ficar sozinha o resto do dia, portanto, tratei de também fechar a porta de meu quarto.
Ainda era difícil lidar com o ocorrido do outro dia, a culpa, mesmo que obviamente não fosse minha, ainda fazia minha mente girar em dúvidas e se prender à angústia que veio logo depois de compreender e vivenciar o que eu havia feito. Ninguém havia condenado minhas ações; na verdade, os elogios que me foram dados confirmava ainda mais que eu não tinha motivos para me culpar tanto assim. Então por quê?
Porque para mim continuava errado. Desde que me conhecia como pessoa, eu fazia questão de seguir as regras e as ordens que me eram dadas, não por passividade ou falta de confiança; eu apenas achava que era o melhor a se fazer. Todos tinham seus deveres a cumprir, era algo fundamental para o mundo funcionar, mesmo que na essência esses deveres fossem questões individuais, todos precisavam se submeter às leis maiores. Era por isso que eu me esforçava, além de ser uma de minhas paixões, eu sentia que devia ser minha obrigação.
Mas esses ideais se provaram ingênuos. Talvez eu apenas não conhecesse o mundo, mas perceber que as pessoas usavam aquilo que eu acreditava ser correto para seus fins gananciosos atingiu-me de uma maneira que nem eu pensara ser possível. Enquanto indagava-me sobre tudo isso, as memórias do ocorrido voltavam para preencher mais e mais minha cabeça.
Dois dias atrás, vinte e quatro de novembro de 20XX
Chamas que iam até onde se pudesse ver; um cheiro penetrante de morte que fazia as narinas de qualquer um gritarem. Não era mais uma simples missão rank C, as palavras do Hokage ao explicar o propósito daquela missão não faziam mais sentido. "Um agitador está incitando uma revolta contra um dos líderes das vilas aliadas à Konoha, encontrem-no e deem um fim necessário se for preciso". Droga! É fácil falar quando você não precisa lidar com uma situação como essa, idiota!
Desde que havíamos chegado — um Jounin encarregado e outros dois Genin, além de mim. — parecia que nossa presença piorava a situação mais e mais. O clima de rebelião que emanava de Hachō-mura era tão forte que os habitantes, antes pacíficos, agora buscavam nada mais que violência. Brigas de rua ocorriam, o caos era algo trivial nas ruas, feito por aqueles que eram contra ao regime atual para aqueles que o apoiavam. E no centro disso tudo estava um time de shinobis que era restringido pelas burocracias governamentais.
Simplificando, a vila estava à beira de uma guerra civil por conta das insatisfações que vinham da má gestão do líder do vilarejo, ou era o que queriam que achássemos. Por tal, havíamos sido enviados para lidar com a situação e apaziguar a possível rebelião que iria se suceder, aparentemente, a vila estava sendo influenciada por um homem até então desconhecido. Levou alguns dias para avançarmos com a missão, mas falhas e mais falhas ocorreram, o que culminou na inevitável revolta contra Hanzo, o líder de Hachō-mura. Agora, ali estávamos, combatendo o exército formado em sua maioria pelos próprios camponeses, liderados pelo homem encapuzado que deveríamos ter capturado, como era o planejado.
Dado tudo isso, minhas pernas me levavam mais e mais adiante, apesar do desespero que tomava conta de mim a cada pessoa que eu derrotava. Ninguém era morto, claro, eu não poderia fazer tal coisa mesmo que quisesse, a única pessoa que poderia ser sentenciada à morte era o encapuzado que deu início aquilo tudo. Talvez as parcas quisessem brincar com meu destino, pois não estava em meus planos encontrar-me com o alvo primário em tão pouco tempo. Mesmo assim, lá estava ele, encarando-me com os olhos perfurantes de um tigre, observando a vila em chamas de cima do telhado da mansão de Hanzo, que em lugar nenhum podia ser visto. Com um salto, ficamos frente a frente em cima de uma casa enorme perto da mansão. Querendo ou não, eu teria que acabar com aquilo de uma vez por todas.
— Patético, os shinobis de Konoha realmente são ignorantes sem salvação! — As palavras eram puras manifestações de repúdio, a voz daquele homem transmitia um ódio inerente, desconhecido para mim. — Vocês acham que estão certos protegendo o homem que se esconde dos próprios erros. Não poderiam estar mais errados!
— O que está dizendo?! Olha o que a sua rebelião causou, as pessoas estão matando umas as outras e a vila foi destruída, se existe alguém errado aqui, é você! — Minha resposta veio logo em seguida, mas a expressão do encapuzado não mudou, na verdade, parecia mais se fechar para alguém que ele sabia que não poderia compreender suas razões.
— Comparando ao que Hanzo fez, não é nada. É um preço justo a se pagar para pôr fim ao reinado daquele bastardo. — O capuz que lhe cobria lentamente era retirado, revelando um homem caucasiano de meia idade com olhos de tigre e uma expressão rígida de fúria exposta em seu rosto. — Você também será parte consumida por essas chamas. Eu, Xaldin,enterrarei você aqui, depois farei questão de que Hanzo tenha o mesmo destino!
Com seu discurso terminado, o revolucionário proferiu um único selo de mão que lhe encobriu com uma fumaça branca. De lá, Xaldin emergiu com seu corpo robusto escondido pelo manto negro que ele trajava, brandindo seis lanças em forma de dragões; duas em suas mãos e quatro que levitavam atrás de si. Meu Byakugan mostrara-me como as armas flutuantes estavam encobertas de chakra, era um ninjutsu. Em resposta a sua postura de combate, assumi a pose do Punho Gentil e parti para a batalha.
Lanças eram armas de médio à longo alcance que dependiam da proximidade do oponente para ter seu potencial máximo explorado, mas o homem com quem lutava era capaz de burlar essa regra manipulando-as com chakra. Era impossível me aproximar, cada vez que um passo era dado uma das armas vinha de encontro a mim, forçando-me a desviar para a esquerda ou para a direita. Tentar parar aquelas armas com força bruta seria suicídio, o mero choque entre os golpes faria meu braço se despedaçar. Tendo isso em mente, a única alternativa era desviar ou usar uma rajada de chakra para aparar os golpes incessantes.
A disputa continuou, minha desvantagem era clara, de nada adiantaria me manter viva se não pudesse me aproximar para atacar. Cedo ou tarde, eu seria subjugada pelas lanças e por Xaldin, seja pelo cansaço ou pela clara vantagem que ele possuía em números. Mesmo com a percepção aprimorada do Byakugan, a velocidade dos ataques era suficiente para me pressionar. Era hora de virar o jogo, ou seria game over para mim.
Talvez insatisfeito com a adversária que tinha, o líder da rebelião avançou para o corpo-a-corpo, trazendo atributos que causavam ondas de choque em sua partida. A ponta da lança da direita cortou o ar, visando o meu rosto, mas meus reflexos sobre-humanos me permitiram escapar com nada mais que um corte de raspão. O segundo "dragão" veio pela lateral e me agachar foi a única saída. Finalmente a uma distância favorável, minha perna girou para danificar o equilíbrio do inimigo, que facilmente esquivou saltando para o alto. Quase que no mesmo instante, o quarteto de lanças acometeu até mim, vindos do céu para me pegar.
Um salto mortal para trás me permitiu sair viva, mas o telhado que estávamos não era mais capaz de suportar o peso da batalha, assim, com o suporte desmoronando, corri para o lado e saltei para o telhado da mansão, que possuía três andares. Tive um pouco de tempo para respirar antes de perceber que Xaldin vinha ao meu encontro, seus olhos não queriam outra coisa senão a minha morte. Como antes, afiei os olhos e me preparei para o que pudesse vir a seguir, até que...
— Kage Shuriken no Jutsu! — A voz gritou em meio ao céu em chamas, shurikens que voavam em números arrasadores foram de encontro com o homem do manto negro, que facilmente bloqueou-as girando uma das armas que estava em suas mãos, redirecionando-as para trás ou parando-as completamente. Mas ele não contava com a astúcia do Jounin que estava enfrentando, manipulando fios de nylon acoplados aos projéteis que envolveram Xaldin, agora suscetível ao próximo golpe. — Ryuuka no Jutsu! — Com alguns selos de mão, o Jounin formou uma torrente de fogo que seguiu através dos fios e consequentemente até Xaldin. Se tudo ocorresse como o planejado, o homem robusto seria envolto nas chamas e pereceria.
Mas não foi tão fácil, sem o uso de selos ou qualquer outro movimento, uma das lanças surgiu e partiu o caminho dos fios antes que as chamas pudessem lhe causar danos. Frustrado pela falha, o Jounin pousou ao meu lado, seguido do lanceiro, que agora estava a vinte metros de nós.
— Benkei-san! — Falei aliviada. Sarutobi Benkei era o Jounin que havia sido encarregado de nos guiar naquela missão, era um shinobi habilidoso que dominava com perfeição o ninjutsu, capaz de usufruir de inúmeras técnicas de Fogo e Vento, com ele aqui, poderíamos derrotar Xaldin com maior facilidade. — Onde estão Soramaru e Inui?
— Estão bem, tive certeza de prender alguns rebeldes e deixar a situação mais fácil para eles antes de vir para cá. — Suas palavras me deixaram um pouco mais calma, apesar de serem Genins, os dois garotos eram capazes de lidar com o combate tão bem quanto eu, não seriam vencidos pela situação tão facilmente. Nossos olhos se voltaram para o inimigo a nossa frente, que estava mais determinado que nunca. — Certo, eu sei que você é boa, então você vai abrir uma brecha para que eu possa acabar com ele. Entendido, Umi?
Um "ok" determinou nossa atual estratégia, com toda a atenção voltada para a luta, estávamos prontos para agir. Porém, não foi tão fácil, Xaldin não estava disposto a deixar um plano simples como aquele funcionar e, talvez nos lendo como um livro, jogou as duas lanças para o ar e fez inúmeros selos, recolhendo as armas antes que pudessem cair no chão. Suas quatro lanças retornaram e se alinharam em uma formação reta, o chakra fluiu entre as armas, fazendo os ventos se concentraram naquele único ponto, formando um enorme tornado que tomou a forma de um dragão serpentino, em cima deste estava Xaldin, que parecia domar a criatura. A fera avançou contra nós, meu corpo avançou instintivamente, determinado a parar aquele ataque.
Talvez compreendendo o que eu estava prestes a fazer, Benkei saltou para o lado, distanciando-se até mesmo da visão do inimigo. Estendi a palma de minha mão para frente, o chakra explodiu para fora na forma de um vórtex que fora de encontro com o dragão de vento, barrando sua passagem e dispersando seu corpo com o choque, o que fez as quatro lanças se espalharem pelo campo de batalha. O inimigo, em resposta a isso, saltou para o ar e mergulhou para me empalar com uma de suas armas. Facilmente evitei o ataque e, mais importante, a brecha que Benkei precisava estava feita.
Aproveitando a chance, o Jounin expeliu uma enorme cortina de fumaça negra que encobriu o homem por completo, em seguida, acendendo uma pequena faísca usando suas armas, causou uma enorme explosão. Antes de ter tempo para comemorar uma possível vitória, Xaldin emergiu das chamas intacto, furiosamente balançando sua lança contra Benkei, que não teve tempo de preparar outra técnica. A última coisa que vi antes de partir para meu último ataque foi o corpo ensanguentado do Jounin, que usou de suas últimas forças para trazer a atenção do inimigo para si com um golpe de sua espada. Sem o mínimo esforço em bloquear o golpe desesperado, Xaldin desferiu um chute que o lançou longe, deixando-o fora de combate.
Aquele deslize era tudo que eu precisava. No pico de minha velocidade, me aproximei em um piscar de olhos do lanceiro. Surpreso, tentou me acertar com um golpe lateral que consistia de pura força bruta, por ser pego desprevenido após sofrer alguns danos da explosão, sua técnica também não possuía muita destreza. Com uma rajada de chakra que saiu de minha mão, afastei a arma alguns centímetros de distância, o recuo me permitiu agarrá-la por alguns segundos. Era todo tempo que precisava para enviar uma pequena quantia de chakra por entre a arma, paralisando o adversário. Assim, eu podia virar o jogo.
Meus olhos fitaram o lanceiro imóvel, era a minha vez de transmitir a fúria do combate. Com uma velocidade acima do meu limite, desferi trinta e dois golpes por entre o corpo de Xaldin, que voou para trás com o término do combo. Derrotado, tudo que ele podia fazer era cuspir sangue enquanto seu corpo recusava-se a sair do lugar. Ele me olhou com o mesmo olhar de desprezo que tinha no começo da luta, o homem estava repleto de ódio até no momento da derrota.
— Tsc, vocês não entendem. — Com uma voz fraca,ele continuou com sua convicção. Perguntei-lhe o motivo de tudo aquilo, o que poderia justificar sacrificar vidas em prol daquela rebelião, o que me rendeu as mesmas palavras de antes. — Hanzo não é um homem santo, ele é um porco que se alimenta dos impostos absurdos que cobra, ele é um demônio que vive na luxúria construída da dor de inúmeras outras pessoas. — Sua voz adotou um tom melancólico de tristeza com o passar do tempo. — Minha mulher e filha foram vítimas do cretino,depois que ele se satisfez com elas mandou matá-las e falar que foram assassinadas por algum lunático. Mas quando eu descobri a verdade, eu jurei que iria dar o devido fim ao desgraçado.
O homem de rabo de cavalo não pôde terminar sua história. Do horizonte que o moribundo olhava, uma kunai no pescoço ceifou-lhe a vida. Eram muitas informações para processar, meu coração se encheu de uma angústia indescritível, talvez pela súbita culpa que projetei à mim mesma. Eu não pude acreditar no que ouvi, mas o turbilhão de sentimentalismo pelo qual eu estava passando não me deixava pensar direito. Ofegante, indaguei o ninja que acabara de executar Xaldin, perguntando aonde Hanzo estava. Eu não conseguia prestar atenção aos meus arredores, portanto não percebi a presença dos dois Genins que haviam vindo comigo até me esbarrar com eles. Felizmente, o golpe de estado já estava sendo contido e Benkei também estava sendo tratado pelos ninjas médicos. Pedi para que os dois Genins me acompanhassem ao esconderijo de Hanzo, seguindo por entre as casas destruídas enquanto o crepúsculo chegava, encoberto pela fumaça das cinzas da rebelião.
[...]
De volta a realidade, me dei conta de que já estava perto da hora do almoço.
No fim, era tudo verdade. Quando me encontrei com Hanzo naquele dia, vi como o homem estava isolado em um esconderijo subterrâneo repleto de comidas das mais variadas, vinhos caros e inúmeros seguranças, pelo menos para os padrões daquela vila. Eu já tinha percebido como o homem era um sem noção na primeira vez que havia encontrado-o, mas quando o indaguei de como ele tinha coragem de ficar trancado quando a própria vila queimava, ele apenas respondeu que "era seu direito".
Assim, fui tirar satisfações com o Hokage, o que também não me rendeu nada de bom. Como sempre, usando de sua atitude calculista e idiota, ele disse como Hachō-mura era uma ótima fonte para a economia de Konoha, o que justificava a relação entre os vilarejos. Minhas reclamações não deram em nada, pois Shirobo apenas disse como era nossa obrigação como ninjas seguir as regras e fazer de tudo pela nação.
Desde então, me recusei a sair de meu quarto. Claro, eu sabia que era verdade, mas os dias passavam e a incerteza do que fazer continuava, as dúvidas da motivação dos ninjas cresciam mais e mais em minha cabeça, o que me fez até mesmo pular dias de treino. Sem saber o que fazer, eu só podia olhar pela janela daquele quarto vazio com uma única certeza. O mundo não era justo.