filler número dois Foi como eu esperava. O primeiro dia do inverno. Quieto, cinzento, frio. Sorri discretamente enquanto encarava aquela carta que recebi mais cedo, mesmo não conhecendo o remetente. Pensei: seria alguém que eu conheço? Mas eu não conhecia ninguém que ousasse me enviar uma carta, então não. Um estranho? Endereço errado? Quem? Hanna? Pensei por cinco minutos parada, em pé.
Li e reli até que resolvi desistir. Esmurraram a minha porta com força o suficiente para acordar todos aqui, felizmente, eu e meu coelho já estávamos de pé. O som se repetiu por várias vezes até que pude realmente dizer o que estava acontecendo: batiam na minha porta. Era para mim. Eu deveria abri-la. Desde que me instalei aqui, isso nunca tinha acontecido, então fiquei realmente surpresa. Deixei a carta cair no chão por descuido e fui atender. Abri facilmente, mas com um pouco de tremedeira. A pequena fenda da porta permitia que um clarão ofuscante refletisse em meu rosto. Por um segundo não pude ver seu rosto, mas vi uma silhueta. A cegueira passou subitamente, enquanto um olá confortante e saudoso fora dirigido à mim, seguido do meu nome, Flare. Equivoquei-me dando um passo em falso para trás. A surpresa era tanta que fiquei boquiaberta por um tempo, encarando a pessoa firmemente, ignorando a chance dela me achar estranha. Mas se me conhecesse mesmo, talvez não se preocupasse. Finalizou com um sorriso cativante que roubou mais uma vez meu olhar. —
Flare..? — Ela repetiu meu nome e então eu acordei do pequeno delírio. Sua expressão parecia um pouco curiosa enquanto me observava lá de cima e eu quase caída no chão, apoiando-me na porta. —
S-Sim?? — foi tudo o que consegui dizer sem gaguejar tanto. Uma criança confusa. — Meu nome é Hanna. — ela disse. —
Você parece não se lembrar de mim, mas eu vim do mesmo lugar que você. — irônico pois eu não me lembrava deste tal lugar muito menos de Hanna. Enquanto ela estranhamente pedia para eu me levantar, percebi a situação embaraçosa em que estava. A casa era minha, e ela estava na minha porta. Não deveria estar no chão muito menos conversar com ela naquela posição. O vermelho em minhas bochechas foi resultado da falta de experiência na área de socialização. Eu era um fracasso. —
Continuando. Tem algo que eu gostaria que visse. — ela continuava. Agora retirou de sua bolsa um papel e o entregou para mim. Uma fotografia um pouco gasta, velha mas visível. Quando vi, tive uma sensação estranha que não soube descrever. Um pouco de angústia, medo e dor. Mas por que dor? Eu não tinha me machucado, mas o aperto no peito repentino parecia agarrar-se no meu coração. Havia algo ali que eu não deveria me meter, mas eu certamente não sabia disso ainda. Pálida, quieta e assustada. Fiquei assim até que Hanna novamente trouxesse-me de volta à realidade. —
Essa sou eu. Essa é você, e essas são as nossas amigas, Liana e Priscilla. — é claro que eu não me recordava de nenhuma delas mas, aquela ali, ao lado de Hanna, com cabelos azuis claros e um olhar cansado, era certamente eu. Vestes totalmente diferentes das que visto hoje, e um ambiente no fundo no qual não pude dizer onde era.
Antes que pudesse perceber, horas se passaram. Hanna e eu conversamos por bastante tempo, não só em minha casa, como também em outros locais próximos dali. Ela me levou em partes da vila em que nem eu mesma conhecia. Estranho, pois eu nunca havia a visto por ali. Dois dias depois eu havia conseguido bastante confiança em Hanna. Ela parecia sincera. Era doce, gentil e amável. Nenhuma outra pessoa fora assim comigo. Mas ela estava passível de mais. No final de uma tarde, ela me convidou para ir à um bosque nos arredores da vila. Eu tinha de ir. Ela tinha um mundo inteiro a me mostrar e eu não queria perder isso. Entramos em uma área bem peculiar. A floresta era calma, mas os animais não estavam presentes. Talvez fosse o frio. Perguntei à Hanna mas ela não soube me dizer. Ela me levava por um caminho estreito, e logo depois estávamos em uma área aberta. Ironicamente, parecia uma trilha para um tesouro escondido. Sorri e brinquei. Caminhamos tanto que um rastro na neve foi deixado. Olhei para trás várias e várias vezes, tomada por um silêncio inevitável. Quando resolvi perguntar se já estávamos chegando, aquilo aconteceu.
Rasgou tantas árvores que me perguntei como não havíamos ouvido os seus passos. O seu grunhir paralisou o meu corpo momentaneamente, e por mais que tentasse correr, minhas pernas simplesmente não se moviam. Hanna mergulhou-se em um silêncio amedrontador, também. Olhei para ela e seus olhos pareciam mais assustados do que os meus. Vi seus lábios se mexerem, algo foi dito, mas não consegui ouvir. Passou em um instante, meus olhos só viram o que meu coração conseguia aguentar. Um vulgo negro e rápido moveu-se por entro nós. Hanna do outro lado foi cortada em um instante. Fiquei muda por um instante e meu coração parou. O sangue quente espirrou na neve branquíssima colorindo toda a paisagem nevada que mal pude apreciar. O sangue de Hanna. Eu era inteligente, não deveria tentar revivê-la. Estava morta. Foi um golpe limpo, rápido, cruel. Mas eu não o fiz. Eu não corri para longe. Não me escondi. Não gritei. E foi nesse momento que minha paralisia sumiu. As madeixas cobriam seu rosto pálido e caído na neve, sem nenhum sinal de vida. Movi-me como pude, caindo de joelhos e tentando ao máximo salvá-la. Passei a mão em suas bochechas, a outra no estômago. Foi inútil. Só acabei me cobrindo de sangue também. Olhei para todos os lados que consegui, e nenhum sinal da besta. Em seu último suspiro, Hanna me chamou. Era uma milagre que estivesse viva. Então, fora de mim, desesperada, tentei confortá-la com palavras. Mas eu era fria demais. Eu não tinha experiências, lembranças, eu não sabia o que fazer. Não consegui ouvi-la nem em seu último suspiro. Era culpa minha? Talvez eu realmente fosse amaldiçoada. A preocupação com Hanna sobrepunha a minha própria. A besta continuava ali. Encarava-me como se eu fosse inofensiva, e por tanto, não desferia um golpe sequer. Foi o único momento em que eu consegui correr. Virei para trás de uma árvore, mas não vi que era uma ladeira sem fim. Capotei, escorreguei e bati contra árvores e pedras. Não era tão alto, então não me machuquei severamente. Olhei para trás e ela continuava lá. Não era ofensiva, mas me seguia. Então eu corri. Desviei-me das árvores cobertas por neve e espantei alguns galhos com as mãos. Fui descuidada e por isso tropecei. Uma raiz externa coberta pela neve. Não tinha como eu vê-la. Virei para trás mais uma vez. O animal feroz pôs suas patas fortemente contra um de meus braços. Quase imobilizada, tentei reagir. Saquei uma faca com a outra mão e a penetrei gargante adentro. Minhas bochechas ficaram como as de Hanna, cobertas de sangue. O sangue era fresco e negro, nojento. Limpei-me logo depois de empurrar o animal para o lado. Ele não estava morto, pois ainda se remexia insanamente. Acertei um ponto final? Meio que sem querer, mas foi uma sorte que não deveria reclamar. Andei por mais um pouco, deixando o bicho ali. Lembrei de Hanna. Queria voltar para ela, mas não consegui. Foram as últimas coisas em que pensei antes de ser acertada por algo muito forte na cabeça. Desmaiei ali mesmo, caindo de cara com a neve fria e o sangue fervendo que continuava a sair do corpo de Hanna.
Era tudo tão doloroso até mesmo no sonho que tive durante o tempo que permaneci desacordada. Hanna havia morrido, isso eu não me esqueceria. Uma voz distante me chamou, parecia robotizada. Eu estava presa. As quatro paredes incolores e completamente desgastadas retratavam um ambiente de encarceramento. Sem nada além dos pisos quadrados, azulejos nas paredes e uma luz brilhosa no teto. O som não tinha origem, nem direção, ele só vinha e eu tinha de ouvir.
Flare, Flare, Flare... Meu nome fora dito uma, duas, cem vezes. Nada acontecia, ninguém vinha. O que queriam de mim? Tentei gritar, pedir ajuda e bater nas paredes, mas nada acontecia. No final do segundo dia, o teto se abriu. O ranger das paredes se movendo me dava gastura, mas foi rápido. A abertura concluía que eu estava no sub-solo, presa, mas ainda sem saber o porquê. Meu nome fora dito mais uma vez, e por fim, desmaiei de sede e fome. Física e psicologicamente cansada, não tive escolha. Quando acordei, o ambiente já era outro. Eu estava acompanhada de um homem de barbas grisalhas e um rosto hostil. Também não o conhecia. —
Pedimos desculpas pelo inconveniente de mais cedo. Era necessário para sabermos com certeza se você ainda era a mesma Flare de quando saiu daqui. — o homem tagarelava como se me conhecesse, e talvez o fizesse. Meu peito apertava e minha cabeça doía. Não tinha como refutá-lo. Ele continuou com sua história. Me explicou tudo que aconteceu comigo em cinco anos. O que eu era, quem eu era e de onde vim. No final, eu era apenas uma cobaia abandonada. Sem utilidade, sem passado. Em pouco tempo ele conseguiu me aterrorizar mais do que o dia em que fui apresentada à contos de terror por colegas da academia. Colegas que não sabia se veria de novo. Por que estava pensando naquilo? —
Você pode não se lembrar, mas quando chegou aqui, você não tinha nada. Não era ninguém. Seu nome foi nós mesmos que demos, e é uma honra que você o leve consigo até hoje. — e continuou. A absorção de informações era um choque para mim e minha cabeça não parava de doer. —
Hanna. Você a conheceu recentemente, certo? Não, na verdade, ela é o nosso segundo fracasso, assim como você. A mandamos porque, bem.. porque notamos o erro que cometemos e precisávamos ter você de volta. É uma pena que ela teve de morrer. Afinal, estava te levando para o lugar errado, no qual não fora designado em sua missão. Ela tinha potencial, mas o perdeu durante seu terceiro ano aqui. Sua morte foi o resultado de sua incompetência, eu diria. — foram palavras cruéis, dignas do ambiente em que eu me encontrava. Esse era o submundo, obscuro e presente em todos as civilizações. Flare gentil e atenciosa havia tomado um banho de verdade, nua e crua. Encarei-o firmemente, pondo-me de olho em sua alma. Penetrei sua mente como alguém que não tinha nada a perder, mas ele tinha confianças em si mesmo. Sabia que a situação era favorável para ele. Eu estava amarrada, não conseguiria sair nem se tentasse. —
Hanna não é incompetente! — meio que gritei, mas ainda sem forças, não foi um berro. A afirmação não pareceu convencer o doutor. —
É, mas está morta. Do que adiantou? É uma pena. Enfim, vamos continuar com o nosso objetivo aqui, certo Flare? — balançou o jaleco branco enquanto virou-se para uma mesa ali do lado. Estava tudo tão branco e tremendo anteriormente que não tive tempo de analisar a sala doentia em que acordei. A seringa que ele pegou estava cheia com um líquido roxo e desconhecido. Um pequeno peteleco e checagem do equipamento. Ele iria enfiar aquilo em mim. Iria doer? Eu iria morrer? Uma droga? —
Isso aqui Flare, é o que vai lhe fazer ser obediente de novo. E você nunca mais vai fugir de nós! Mas não se preocupe. Também vamos te recompensar. Você terá novos poderes. Será nossa obra prima. — era certamente uma droga. Eu não a queria, mas não conseguiria recusar da maneira que estava. Remexi-me, tremi e me contorci na cama. De nada adiantou. A fisgada doeu no início, parou por três segundos e depois voltou. A dor foi insana e eu não consegui segurar o grito. Perdi-me em olhares aleatórios por todo o lugar, mas nunca consegui me escapar do rosto do homem que sorria maliciosamente. Seu sorriso foi-se embora quando checou algo no monitor ao lado. Gritou para um de seus auxiliares que não consegui ver o rosto. A expressão extasiante tornava-se uma face desesperadora. Parecia estar dando errado, então eu sorri, mas ele não se importava com minha provocação. Senti meu corpo fervendo por dentro. Algo atravessava-me donde a agulha fora picada até minha garganta, e por fim, cuspi sangue. As cordas, ataduras e a própria camisa de força se romperam conforme meu corpo absorvia a droga. Talvez estivesse correndo melhor do que eles esperavam, se é que queria me fazer forte. Porque agora eu era forte. Forte o suficiente para me livrar de tudo aquilo com destreza e facilidade. Mesmo ele tendo me feito tanto mal, mesmo eu o odiando do fundo da minha alma, tudo o que pude fazer foi encará-lo de cima, quando ele desabou no chão, descrente com sua própria criação. Meu olhar foi de desgosto, decepção e pena. Ele, boquiaberto, não proferiu uma palavra. Então eu corri. Corri como nunca na minha vida. Abri uma porta e depois a outra. Aquele manicômio parecia não ter fim. A cada corredor que passei, tudo era muito branco e limpo. Não havia sinal nenhum de vida. Fui abrindo as portas, já sem correr mais. O passo calmo e curioso me levou para outros cômodos. Vi pessoas abandonadas que deveriam ser outras cobaias. Tentei salvá-las, então fui desamarrando-as uma por uma, mas não adiantou de nada. Nenhuma delas sequer mostrava alguma emoção. Seu destino havia sido feito e não lhes restava nada além da aceitação. O vazio e a impotência que sentia eram indescritíveis. Havia feito algo errado? Segui em frente. Mesmo sem esperanças, não deixei de abrir porta por porta. Por que parecia tudo vazio? No final do corredor, uma porta semi-aberta. Lá fora algo brilhava. Abri-a com cautela depois de me aproximar. Duas garotas do lado do homem de barba grisalha e sanidade duvidosa. Seu olhar de receio alvejava-me como outrora. Um objeto mal funcional. Uma cobaia fracassada que se tornava um de seus maiores sucessos, eu diria. Três das bestas de outrora cercavam-los. Então, talvez fossem outras de seus experimentos. Priscilla e Liana..? A imagem se caracterizava em minha mente, assim como o pequeno flashback da fotografia que Hanna me mostrou. Tudo se encaixava. Elas não tinham as mesmas expressões da fotografia. Devem ter passado por muito mais do que eu passei. —
Você acha que pode sobreviver à isso? Tudo bem que ficou forte. Me surpreendi. As cordas estavam bem amarradas e você estava anestesiada. Realmente não sei como conseguiu mas, é o seu fim. Estas bestas não são como as outras. São controladas diretamente por Priscilla e Liana. São Inuzukas que eu mesmo modifiquei. São mais rápidos, mais fortes e em total sinergia com minhas cobaias. — suas palavras não tinham significado algum. Qual era o propósito daquilo tudo? Eu achava que os cientistas tinham sido erradicados. Os animais avançaram. E por minutos, tudo o que pude fazer foi me defender e esquivar. As garotas pareciam controlá-los a distância. Eu não queria feri-las, mas com o passar do tempo, percebi que seria inevitável. Em movimentos rápidos, esquivei-me de golpes contínuos e investidas unilaterais das bestas. Pareciam que se moviam em um padrão espelhado. Percebi que não eram racionais quando colidiram contra si mesmos durante uma investida, e o mais estranho era que, durante toda essa perseguição, nenhuma das garotas se mexiam. O homem de grisalho já não estava mais ali, parecia ter fugido. O lugar agora era amplo, aberto, como se estivéssemos na entrada de uma caverna. Corri até a frente das garotas e olhei para trás. Os animais não se moviam mais do que dois metros. Eles não machucariam quem os controlava. As garotas não se moviam, pareciam robôs. Teria isso alguma ligação com o controle dos animais? Sem tempo para pensar, apontei uma faca para o pescoço de cada uma. Minhas intenções eram claras, mas eu não queria abrir uma fissura na garganta de cada uma. Os cães caíram inertes no solo rançoso e empoeirado. Agora impotentes, as garotas fizeram o mesmo. Lágrimas desceram por seus rostos, mas eu não tive tempo para cenas melancólicas. —
Se querem viver, fujam. Eu não guardarei rancor. — corri floresta adentro. A pequena instalação no subsolo ficava para trás. Estava bem mais rápida do que antes, então consegui alcançá-lo com facilidade. Lá estava ele, fora de si, escorado em uma árvore no aguardo do julgamento final. Seus olhos trêmulos buscavam conforto no silêncio que o rodeava. Silêncio que tive de quebrar pelo meu próprio bem. Andei até próximo dele. Os ombros tremiam e os lábios estavam feridos pelo frio. Encarei-o novamente por algum tempo. Era de se esperar que no fim de sua vida a loucura dominasse por completo o senso do moço. Flare era uma pessoa gentil, amável e reluzente. Essa foi Flare depois de perder suas memórias e se instalar em uma vila. Mas e sobre a cobaia número dezessete? A ficha estava bem preenchida, mas o campo de personalidade estava em branco. A observei com atenção, e vi tudo o que precisava ver sobre quem eu era, ignorando momentaneamente a pergunta do homem. —
I-Isso é..? — ele percebeu, então eu o respondi. —
Sim. — quando passei pelos corredores, achei uma sala que continha várias prateleiras cheias de arquivos. Incrivelmente, um deles estava exposto sobre a mesa. Quando parei para lê-lo, descobri tudo sobre mim e sobre este lugar. Echizen Karsten era meu nome verdadeiro. —
V-Você não vai me perguntar nada? Meus motivos? Por quê? Suas memórias, sua vida, eu acabei com tudo isso, e você não tem nada para me dizer? — um minuto de silêncio. —
E Hanna? Você não sente nada por ela? — olhei-o de cima, não esboçando um único sorriso. O dia estava para terminar e eu estava cansada. É, ele tinha razão. Mas a morte de Hanna não fora culpa minha. A malícia me corrompeu pelos últimos segundos de nossa conversa. O sorriso que esbocei seria algo que cravaria na mente do velho. —
Eu não daria um passo sequer, se me preocupasse em pisar em formigas. — foram minhas palavras antes de sumir.
Adicionando um pouco de história ao meu personagem que é um pouco vazio. Essa vai valer como transição para o novo personagem que vou fazer através do reset.