“Concedei-nos Senhor, serenidade necessária, para aceitar as coisas que não podemos modificar, coragem para modificar aquelas que podemos e sabedoria para distinguirmos umas das outras.”
Seus olhos se abriram e a consciência despertou com os primeiros raios de sol que atravessavam a aresta da persiana em filetes de tamanhos variados, revelando as diminutas partículas de poeira suspensas no ar. Fungou o nariz e passou os dedos de leve sobre os cabelos emaranhados, ajustando-os sobre os ombros. Estalou os dedos e ainda com a coberta sobre seu corpo, pôs-se de pé. Caminharia até o espelho, mas a madeira gelada que compunha o piso de sua casa estava anormalmente gelada, afinal, era inverno. Tateou o chão com seus pés, até que pode sentir um volume mínimo com textura macia; as pantufas. Calçou-as e seguiu até o banheiro.
A pasta de dente, branca e de listras verdes, ondulou-se perfeitamente na escova. Yuuki molhou a ponta com gotículas de água e a levou a boca, chacoalhando-a em movimentos repetitivos. Em cerca de seis minutos, seus dentes estavam perfeitamente brancos e brilhantes. Foi para a cozinha, onde colocou duas fatias de pão com manteiga na torradeira e a caneca de café no microondas. Feito isso, retornou ao banheiro, onde já despida, regulou a temperatura da água e ligou o chuveiro. Passou alguns minutos por lá, mas saiu a tempo de retirar as torradas e tomar o café. Preparada, saiu de casa apressada.
Geralmente as pessoas normais não acordam as seis horas da manhã no Domingo, o único dia da semana em que um genin pode descansar até mais tarde. No entanto, ela estava longe de ser uma pessoa normal. Se preparara durante toda a semana para o desafio que seguiria e isto incluía, é claro, acordar cedo e bem disposta. Não seria fácil completar sua missão especial, a concorrência era grande e seus movimentos deveriam ser friamente calculados. Um erro e estava tudo acabado; era o dia da feira.
Atravessou as vielas tão rápido que mais parecia estar sendo carregada pela ventania. Os primeiros comerciantes já se organizavam para a feira, montando suas tendas e organizando os produtos. Poucos deles, entretanto, até mesmo já vendiam seus primeiros produtos. Havia um pouco de tudo: ervas medicinais; armas ninja; comida para estoque; fast food; animais silvestres — esta, por sinal, uma atividade ilegal; roupas e artigos químicos. Um viajante perderia-se em meio as fileiras intermináveis da feira, mas os mais preparados sabiam exatamente o que queriam comprar e onde encontrariam o produto. No entanto, haviam aqueles que se preocupavam principalmente em conseguir os melhores e mais frescos produtos, uma tarefa difícil em uma vila shinobi; Yuuki Konno era uma delas.
Parou em meio a um cruzamento. No topo de uma colina, estava a barraca de doces, o alvo de sua missão. Moveu o primeiro pé para subir, mas seu corpo ficou estático. A sua frente, cerca de cinco centímetros de distância, centenas de pregos Makibishi cobriam toda a rua, bloqueando a passagem dos moradores e de quem quer que ousasse subir a colina. Provavelmente uma armadilha previamente montada, mas não para a kunoichi, que subiu no telhado mais próximo e fez das telhas sua passagem. Tomou cuidado para não pisar nos selos bombas espalhados pelo telhado, mas para sua aptidão física era apenas brincadeira de criança.
—
Bom dia! — disse com um sorriso, semicerrando os olhos e virando levemente a cabeça —
Quatrocentas gramas de Fujian, cinco Dangos e quinhentas gramas de Taiyaki, por gentileza — pediu, levando a mão a bolsa, de onde tirou uma pequena bolsinha com o formato de um sapo verde com bolinhas brancas. Foi quando retirava o pagamento da bolsinha que percebeu que a jovem Naomi, que estava ali todo domingo, fora substituída por uma velhinha de cabelos brancos e pele enrugada. Yuuki guardou novamente o dinheiro e preocupada perguntou:
—
Com licença, a Naomi-cchi não veio hoje? Ela ta doente? — Indagou, seu rosto agora expressava cautela e preocupação.
—
Não se preocupe minha jovem... ela foi... — A voz da senhora vacilou, como se algo tivesse a impedido de continuar. Talvez uma lembrança? O único impacto foi que menina tornava-se cada vez mais curiosa e preocupada para com o problema.
—
A senhora é parente dela? Onde ela está? — Perguntou mais uma vez, assumindo um tom mais severo, mas ainda sim, preocupado.
A senhora permaneceu em silêncio, e o semblante calmo da kunoichi tornou-se fúria. Naomi era uma moça gentil, delicada e grande amiga de infância de Yuuki. Em sua infância, costumavam brincar juntas no campo todos os dias, mas o desejo de se tornar uma mulher shinobi alimentado por Yuuki acabou afastando seus caminhos. O desejo de Naomi era se tornar uma grande comerciante e, um dia, se casar. Furiosa, a menina bateu a mão na mesa, com pouca força, mas suficiente para derrubar alguns doces e chacoalhar a barraca. O momento de tensão foi dissipado com a chegada de uma menina, de idade próxima a Yuuki, mas de cabelos loiros e olhos esverdeados como uma esmeralda. Usava um vestido verde com detalhes brancos e um decote percebível, além de uma espada que pendia em sua cintura.
—
Perdão, mama. Eu segui os bandidos, mas eles entraram na Torre do Paraíso. Eu não sou forte o suficiente para alcança-los... — Contou a menina, com os olhos cheios de lágrimas e o tom de voz envergonhado. Yuuki percebeu logo sua semelhança com Naomi. Apesar de ser notavelmente mais alta, seus olhos e o cabelo eram extremamente semelhantes. Mesmo o semblante de preocupação transmitiu a kunoichi um sentimento de Déjà vu.
—
Por favor, alguém pode me explicar o que está acontecendo? Você é a irmã da Naomi, não é? Onde ela está? — Perguntou mais uma vez a menina, desta vez para a irmã de Naomi. Seus olhos focavam-se nitidamente na menina.
— A vila já está sabendo? Droga mãe, eu falei para a senhora não contar. Naomi é assunto nosso, de família, não é algo para forasteiros! — Esbravejou a menina, mas seu semblante não parecia de alguém furiosa. Muito pelo contrário, parecia a ponto de desabar.
—
Eu sou uma amiga da Naomi. Ela se envolveu com algum problema? — Já se cansara de perguntar e estava a ponto de forçar as duas a falarem.
—
Minha filha sempre gosta de passear pelo campo durante a noite. Ela diz que o brilho da lua não é algo que deve ser visto por trás de uma janela, mas sim ao ar livre, junto a natureza. Acontece que ela desapareceu ontem a noite. A mais velha, Leafa, saiu para procurar por pistas, mas como você pode ver, ela conseguiu muito pouco. Tenho medo de que... minha filha... o meu bebê... — Neste momento o coração de Yuuki desabou. Relembrou de todos os momentos que passou com Naomi. As brincadeiras, as apostas, as noites que dormia em sua casa, as promessas. De repente, as lembranças distantes começaram a surgir e os olhos da menina começaram a encher d'água. Mas ela não aceitaria isso, não sem antes tentar. Definitivamente não deixaria sua amiga morrer.
—
Estou indo para a Torre do Paraíso. — Deu de costas e começou a caminhar, mas a mão de Leafa tocou seu ombro. Yuuki parou e olhou por cima do ombro.
—
Você não pode! É só uma genin! A Torre do Paraíso está infestada por aqueles guardiões e são muitos! Nem mesmo eu pude contra eles! — Explicou, tentando alertar a kunoichi sobre os perigos que enfrentaria. Entretanto, Yuuki pareceu irredutível de sua decisão. Sorriu, como uma forma de acalmar Leafa e continuou andando. Sentindo-se culpada, a loira desabou de joelhos no chão, como uma ultima tentativa de fazer o legado de sua irmã não se atirar ao suicídio.
[...]
No declive de pedra entre duas grandes montanhas, se erguia imponente a grande Torre do Paraíso. Era uma torre de pedras brancas de proporções colossais, que abrigava um exército de marionetes de ferro tão grande quanto qualquer exército das cinco grandes nações shinobi. O exército de marionetes pertencera a um império a anos destruído, mas mesmo após todo esse tempo, as marionetes permaneciam ativadas, com seu objetivo de proteger a Torre e o palácio real, a área no ponto mais alto da torre, onde geralmente o imperador descansava.
A frente de um grande portão de madeira, o suficiente para um gigante de 5 ou 6 metros passar sem precisar se curvar, duas grandes estátuas de pedra erguiam-se perante Yuuki. Portavam grandes lanças, que tocavam o chão de um lado e alcançavam seu rosto do outro. A menina ignorou-os, atravessando apressada e abrindo o portão. Era realmente pesado, mas para sua força esmagadora, era quase como erguer um travesseiro.
Não havia nenhuma escada ou andar no interior da torre. Na verdade, os restos do que um dia fora uma grande escadaria circular residia no topo da torre, nas portas para os aposentos do rei. A torre provavelmente foi construída para abrigar ninjas e somente estes, uma vez que era necessária sua habilidade de escalar paredes para atingir o topo do edifício. Em silêncio, a menina caminhou até o centro da torre. Nos quatro pontos cardeais, grossas colunas gregas sustentavam o teto centenas de metros acima. Yuuki olhou para o alto, mas nem mesmo sua visão podia enxergar com detalhes o que lhe esperava no topo da torre. Esperançosa, imaginou que Naomi estivesse lá e isto lhe deu força para continuar.
—
Eu, Yuuki Konno de Kumogakure no Sato, desafio a Torre do Paraíso para um julgamento. — Repetiu, recordando as palavras que havia lido em um dos livros de história. O império milenar adotara uma prática que ficou marcada na história. Convencidos da guarnição impenetrável de seus castelos, eles propunham que a invasão pelo castelo fossem feitas através de desafios. Se os desafiantes conseguissem vencer os guardiões, eles venciam o desafio e tinham o controle da fortaleza. No entanto, se perdessem, isso significava a morte de cada um dos membros. Era uma regra bem simples, mas os desafios eram tão mortíferos e ninjas eram tão raros na época que somente os mais fortes podiam tomar os castelos.
Os portões por onde a kunoichi se fecharam com um baque. O som incomodou-a um pouco, mas o silêncio que se fez nos próximos dez segundos foi ainda mais sinistro. Seu instinto fez com que seus olhos corressem pelo ambiente, em busca de um alvo, mas nada encontraram. Tudo permanecia exatamente a mesma coisa. Os dedos puderam alcançar a bainha da espada e de lá sua lâmina reluzente saiu, o aço brilhando com a luz ambiente no interior do castelo. Com a arma em punho, ela saltou contra uma parede e subiu em disparada.
O que faltava para que a armadilha se ativasse era o toque na parede. Os movimentos de Konno vacilaram e ela se viu parada sobre a parede, olhando para o alto. A cinquenta, talvez sessenta metros acima, uma mistura de cavaleiro branco com robô planava através de quatro asas brancas e brilhantes nas costas. Em sua mão esquerda, uma espada longa com uma guarda em formato circular, igualmente branca. Uma listra vermelha, que deveria ser os olhos da criatura, brilharam ao avistar o rapaz.
—
É só você, é? — atirou, com desdém. Não possuía a graciosa habilidade de voar como seu oponente, então teria de atraí-lo até sua posição, o que não exigiu esforço algum, uma vez que a criatura disparou contra a kunoichi. A menina não ficou para trás. Acometeu através do paredão e em um salto, girou através do ar, chocando sua lâmina com a criatura. O monstro possuía força considerável, mas não o suficiente para fazer frente a Yuuki, que o arremessou como se não tivesse peso algum contra uma pilastra. A criatura estava imóvel e a menina julgou que estivesse derrotado, mas ainda não estava terminado. Surgiram, como mágica, outros dois guardiões, que avançaram ao mesmo tempo contra ela.
—
Quantos de vocês tem? — Berrou, em queda livre. Seu corpo em movimento a fez capaz de escutar o som das correntes de ar, o que tornou impossível escutar o som da própria voz. Arremessou sua espada contra a pilastra ao seu lado e o cabo da arma serviu de apoio para seus pés, impedindo a queda fatal. Seus olhos se voltaram para os guardiões que realizavam uma investida de flanco contra ela. Desprovida de armas, ela viu-se novamente a utilizar apenas seus punhos para se defender. A partir de seu único ponto de apoio, aproveitou-se do máximo de força que podia reunir com os músculos e explodiu contra o guardião mais próximo. Surpresa, a criatura teve seu peito enterrado pelo punho da kunoichi, tornando-se mais uma marionete sem vida. Retornou a queda livre, mas desta vez fazia-se presente o corpo destruído do guardião. Retirou o punho da lataria e mordiscou a ponta do dedo. O sangue se acumulou e escapou do ferimento, formando uma grande corrente que perfurou a parede da torre, cessando a queda. Yuuki olhou uma vez mais para o alto, a tempo de ver dezenas de novos guardiões preparados para o combate.
—
Isso parece não ter fim... — admitiu, ainda sem voz pela quantidade de ar engolido graças a queda. Novamente presa a parede, ela se viu apta a continuar. Em sua mente, um único nome se repetia sem parar, ecoando através de suas memórias mais antigas — o nome era Naomi. Yuuki percebeu, após várias e várias investidas, um certo padrão no ataque dos guardiões. Além de, obviamente, usarem de espadas em batalha, eles sempre atacavam um de cada vez, o que tornava a batalha mais cansativa, mas também mais fácil. Eles não eram tão rápidos e nem tão fortes, por isso, deviam vencer suas batalhas através do cansaço de seu adversário.
A manipulação do sangue lhe deu uma grande vantagem em batalha. A luta a média distância permitia-lhe dilacerar cinco ou seis deles em um único golpe, uma vez que sua quantidade começava a obriga-los a ficarem perto um do outro —
O que acha de testarmos minha nova habilidade, bonecos de merda? — falou. Percebia-se um leve corte acima de sua sobrancelha, o qual sangrava muito e incomodava levemente a visão. O dedo outrora ferido de Yuuki formou gotículas de sangue, que se afinaram na forma de projéteis e dispararam contra cinco guardiões. Eram pequenas balas, quase invisíveis, mas seu poder de perfuração desabilitou cinco deles.
[...]
—
Isso não vai acabar? — reclamou, minutos depois. A fadiga já tomava conta de seu corpo e os ferimentos começavam a doer cada vez mais, como resposta a batalha constante. No solo, centenas de metros abaixo, incontáveis corpos de marionetes jaziam, destruídos e inutilizáveis, no chão. Entretanto, ainda no ar, outra centena de robôs parecia surgir a cada segundo. Sufocada e sem esperanças de vencer, Yuuki teve uma ideia. Acometeu contra o grupo de guardiões, mas em vez de enfrenta-los, proferiu um único selo de mão.
Shunshin no Jutsu, a palavra surgiu em sua mente. Tornou-se rápida como um relâmpago e usando desta velocidade, atravessou por entre o exército de guardiões. Em vista da grande velocidade da menina, pouco puderam fazer para impedir. Ela finalmente alcançou o ultimo andar, onde o corpo morto de seis bandidos enfeitava a entrada do quarto.
—
Naomi, cade você! — Berrou, em desespero e preocupação. Não havia reconhecido o corpo de sua amiga em meio aos mortos, mas não tinha certeza se ela estava viva.
—
Estou aqui dentro! — Respondeu a menina, com a voz trêmula. Yuuki entrou no quarto e fechou a porta, mas os guardiões não pareceram a seguir. Uma falha no sistema? Não ficaria ali para descobrir. Pegou na mão da menina e a puxou para uma das paredes. Uma curiosidade do quarto é que não tinha nenhuma janela — ele era completamente selado, com exceção das portas. Yuuki implantou uma espécie de papel com escrituras em Kanji e se afastou juntamente a menina. Formulou um selo de mão e o papel explodiu, levantando uma cortina de fumo e uma passagem para fora da torre.
—
Hora de ver sua mãe, Naomi. — antes que a pequena Naomi pudesse responder, Yuuki a abraçou e juntas, elas despencaram.
O vento parecia dez, talvez vinte vezes mais forte que no interior da torre. Elas gritavam de pavor, mas sua voz se esvaia em meio as poderosas correntes de vento. Pôde-se ver lágrimas de seus olhos, que também se dissipavam graças a velocidade da queda. Yuuki, usando sua força e habilidade, respectivamente girou seu corpo e produziu uma espada de sangue. Através da espada, iniciou um difícil processo de redução da velocidade de queda, perfurando a espada na pedra que compunha a torre. A espada desfazia-se após poucos segundos e a kunoichi tinha de investir mais e mais sangue em prol de manter-se em uma velocidade baixa e constante. Em minutos, finalmente estavam no chão, mas uma Yuuki extremamente pálida e cansada mal podia falar.
—
Não se preocupe, mana. Eu vou te levar para casa. — naomi lhe assegurou, antes da menina desmaiar.