Chamas, fumaça e dor. Um lembrete daquilo que já se foi, dessa vez, com novas dores e novas perdas. Ela em meus braços, a dor em meu peito me faz tremer, talvez não houvesse mais como continuar. Ela gostaria disso? A escolha não cabia a mim, deveria sim continuar. Carregaria seus sonhos e todas as memórias comigo. Isso não acabaria dessa forma.


Mais um dia premiado por uma missão havia chegado, tornando minha primeira atividade matinal a de preparar minha mochila com mantimentos, roupas e alguns remédios simples. Hibiki me auxiliava a ocupar cada espaço disponível nos compartimentos ideais, acelerando todo o processo. Antes de partir de vez, me juntaria à minha querida avó para um café da manhã, aproveitando sua companhia como de costume.

Vou querer meu café preto como sempre. Duas colheres de açúcar devem bastar. — Informei, deixando que meu prato e bebida fossem preparados pelos serviçais, ouvindo a conversa de minha avó com um de seus muitos conhecidos. Negócios e mais negócios, exportações se tornaram problema após o bloqueio das fronteiras, mas aparentemente havia formas de passar os produtos que a família Abusaki comercializava pelas mesmas, por intermédio de alguns acordos.

Pensei que poderia conversar com minha guardiã, mas parece que ela possuía outros planos, então me foquei em não atrapalhar seu diálogo e apenas consumi meu alimento em silêncio. De prato e xícara vazios, me levantei e pedi a licença da mais velha, que apenas chacoalhou a mão em sinal de dispensa. Com calma, pois havia um bom tempo ainda disponível, rumei ao escritório de missões para encontrar o homem a quem deveria escoltar.

A porta se abre e o piso de madeira não faz um único som conforme me movo acima dele. A conversa que não parecia que teria fim se encerrou no momento em que me fiz presente, provavelmente por não ser digna de ouví-la, mas talvez por não ser mais necessária. Uma saudação para cumprimentar os presentes e as apresentações se iniciaram. Nomes foram trocados entre mim e o homem que seria levado para o exterior do vilarejo em breve, permitindo nos aproximarmos um pouco antes do fim trágico.

Um prazer conhecê-lo, Nobunaga-san. Serei sua escolta hoje, então podemos partir quando preferir. — Procurei não lhe faltar com educação, por ser um importante diplomata extrangeiro. Sua impaciência pareceu fazer com que nosso caminho até o portão fosse feito o quanto antes. Me curvei perante os superiores antes da partida, acompanhando o homem até o lado de fora do escritório.

O caminho até o portão foi tranquilo, conforme planejava, pois dificilmente alguém tentaria algo em plena praça pública. Com ninjas aqui e acolá, deveria me preocupar apenas após deixar o vilarejo, algo que pelo descuido causado pela pressa do diplomata, provavelmente me renderia alguns fios brancos muito em breve. Com a permissão para a missão em mãos, os guardiões foram informados e fui então autorizada a passar pela fronteira, seguindo o caminho em direção do vilarejo mais próximo.

A serpente albina fez questão de gravar o cheiro do homem em caso de separação, apenas por precaução, focando em manter sua atenção dividida em rastrear Nobunaga e perceber cheiros que se aproximassem demais durante nosso trajeto. Embora fosse um pouco desconfortável não poder me focar enquanto caminhava, troquei algumas palavras com o mais velho, que insistiu em matar o tempo com uma conversa casual. Sua voz formou uma imagem mental de alguém idoso, provavelmente acima dos sessenta, embora não fosse capaz de perguntá-lo a respeito.

A chegada do ápice solar deixou a jornada mais cansativa, não apenas pela temperatura avassaladora e desagradável, mas pelo aviso sonoro de que o estômago de Nobunaga deveria ser preenchido. Embora envergonhado a princípio, o homem se sentou sobre uma pedra posicionada sob a formidável sombra de uma acácia, um achado de sorte desproporcional. Sentia também os efeitos da inanição, mas me mantive vigilante e alerta, embora dependesse de um aviso do ofídio em meu pescoço para qualquer reação. Me contentei em hidratar o corpo com uma garrafa de água que carregava na bolsa, aguardando que meu escoltado terminasse sua refeição sem muita demora.

Com tudo pronto, a viagem retornaria sob um sol mais ameno, levemente oculto pela presença de nuvens grossas e acinzentadas. — Sinto cheiro de chuva. — Avisou a serpente, embora não houvesse nada que pudesse ser feito quanto a isso. — Nos molharemos então. — Refleti, aceitando o fato sem pestanejar.

E assim o aguaceiro veio, varrendo o calor e poeira de um solo seco e infértil, cobrindo tudo com frescor e umidade. A temperatura amena do líquido tornou a viagem tolerável, de certa forma, pois não era fria ou quente o suficiente para ser desagradável. O fim do trajeto se aproximava sem qualquer complicação, indicando que possivelmente essa seria uma missão fácil, o que, para meu azar, nunca é verdade.

A chuva prosseguiu, ininterrupta, conforme caminhávamos lentamente em direção ao nosso destino. O caminho desconhecido, escolhido pelo homem à minha frente, parecia levar para um vilarejo aparentemente pouco movimentado. Imaginei que seria por conta da chuva, mas ninguém caminhava pelas ruas, tampouco se mostrava presente nas janelas das poucas construções. O local no qual havíamos acabado de chegar parecia abandonado, honestamente, com o fim da tarde sendo marcado pelo pôr-do-sol que pintava o céu de laranja, mas ainda assim, nenhuma luz iluminava construção alguma.

Que vilarejo mais calmo. — Puxei assunto, notando o súbito silêncio por parte de Nobunaga, como se toda comunicatividade do sujeito fosse substituída por uma aura omissa e questionável. Hibiki sentia ainda seu tênue cheiro, mas a chuva parecia mascarar qualquer outro odor da região, cobrindo sua detecção pelo forte cheiro torrencial. O silêncio foi quebrado quando chegamos a um prédio escuro e de aparência mal cuidada, como se ninguém o utilizasse há alguns bons anos. — É aqui que paramos? Tudo bem eu ir embora agora? Sinto que será difícil viajar de volta se não me apressar. — Busquei minha dispensa imediata, mas o homem apenas gargalhou, achando graça de algo que se negou a compartilhar.

Nobunaga-san? — Indaguei, sem entender bem a situação. Em um instante súbito e repentino, o som da chuva cessou, interrompendo o mascaramento de odores que impedia Hibiki de sentir a presença dos demais presentes. Seis outros homens se aproximaram instantaneamente, cercando a mim e Nobunaga, sem pronunciar palavra alguma. — Estamos cercados. Isso me parece ser uma armadilha. — Avisou a serpente, ocasionando  explicações por parte do diplomata.

Seu sangue tem muito valor, criança. Por isso, você vem com a gente. — Isso não me parecia  um convite, tampouco imaginei que resultaria em algo agradável. Se quisesse me ver livre daquela situação, só havia um caminho visível. — Terei que lutar.

Os passos lentos dos ninjas eram a única coisa que cortava o silêncio, se aproximando lentamente, atentos a meus movimentos. Deveria tomar muito cuidado com minhas ações, por não saber o nível de suas habilidades ou qualquer coisa a seu respeito. Hibiki os encarou com cautela, sentindo seu cheiro e relatando o necessário. — Duas, quatro, seis, oito e dez. — Informou o ofídio, se referindo claramente à posição dos adversários. Suas palavras foram sussurradas em meu ouvido, de forma que eles teriam dificuldade em saber qual informação  havia recebido.

Tudo bem, eu me entrego. — Diria com tranquilidade, juntando as mãos como em forma de prece. — Não tenho chance alguma contra vocês mesmo! — Continuaria, relativamente alegre. Esperaria que uma rendição os fizesse baixar a guarda, para que os selos tecidos logo em seguida fossem capazes de pegá-los de surpresa. Confiei na possibilidade do selo amaldiçoado ter algum efeito naquele momento, então o banhei de chakra enquanto a técnica de vento era utilizada, mas além das fortes dores em meu pescoço, nada aconteceu. As fortes rajadas de vento criadas ao meu redor, no entanto,  teriam o intuito e sucesso em empurrar meus agressores para longe, abrindo caminho para que tivesse tempo de correr, me distanciando dos mesmos.

Senti dores em meus braços e pernas, como se cortes me atingissem de repente, me retirando o equilíbrio. — Não devem matá-la, seus idiotas! Apenas a peguem! — Gritou Nobunaga, impaciente ao me ver cair ao chão, claramente sangrando pelos cortes feitos por armas básicas. A marca do selo amaldiçoado ressoou outra vez, assim que o chakra foi utilizado, mas agora ela parecia mais impaciente, como se quisesse ser utilizada de verdade, provavelmente pelo excesso de adrenalina em meu sangue.

Esse poder deveria ficar para depois, pois ainda não sabia como ativá-lo plenamente e tampouco possuía tempo para descobrir agora. A destra se moveu para um dos ferimentos, manchando-se com meu sangue, permitindo que, ainda no chão, tecesse ainda mais selos e trouxesse mais um aliado para o campo. A enorme serpente albina golpeou os homens próximos com sua calda, disparando-os contra as construções vazias, fazendo com que alguns até mesmo as atravessassem dada a força do golpe.

Merda, quantos truques essa garota esconde nas mangas? — Resmungou o suposto diplomata, apenas observando enquanto Kyodaijya me retirava do solo, colocando-me em segurança acima de suas escamas, partindo em direção ao vilarejo. Lutei para manter a consciência durante o trajeto, para que a invocação não fosse desfeita, mas no momento em que me dei conta, tudo se abafou e a escuridão total me engoliu, sem qualquer aviso.

Os olhos se abriam, embora nada pudessem ver, conforme o cheiro desagradável da fumaça fazia os pulmões doerem. Tossia e me engasgava, pensando como me deparava com esse inferno repentino, imaginando que sonhava com o incidente da residência Abusaki mais uma vez, mas as palavras de minha companheira me tiraram do transe, indicando a triste realidade. — Senhorita? Você está acordada? — Perguntou o ofídio, me fazendo perceber não estar mais desacordada. — Sim, Hibiki… Onde estamos? — Indaguei, ainda desorientada do apagão, sentindo as dores dos cortes ainda presentes em meu corpo.

Ergui-me do chão, sentindo a grama com as palmas das mãos, além do líquido ainda quente que aderia às mãos de forma viscosa e pegajosa. O cheiro de ferro foi suficiente para identificá-lo, mas não esperava descobrir que ele não pertencia a mim. — Estamos em casa, senhorita… — Concluiu a serpente, basicamente confirmando que o pesadelo se repetia. — Não… não pode ser! — Me ergui em um salto, avançando contra o som crepitante que fazia meu corpo arder, chutando instintivamente a porta da entrada para que pudesse adentrar o local.

Não ouvi vozes, mas Hibiki garantiu que havia muitos corpos pelo local, muitos de serviçais, outros até mesmo de membros da família. — Minha avó, onde está? — Indaguei, sem me importar de queimar junto aos outros se fosse preciso, buscando pela anciã daquele local sem descanso, inalando a fumaça tóxica e tossindo cada vez mais. O sensor olfativo da serpente se tornara inútil perante tanto fumo, então ela apenas permaneceu encarregada de evitar que colidisse com algo, guiando-me pelos corredores manchados de sangue e fuligem.

Com pressa e desespero palpável, ouvi o que parecia ser a voz mais familiar possível, aquela a qual já estava tão acostumada a ouvir. — Vovó! — Vociferei, quase quebrando as paredes para alcançá-la mais rapidamente, mas mantendo a consciência de que isso faria apenas tudo desmoronar. Apesar dos avisos para que saísse dali e não ousasse me aproximar, peguei seu corpo frágil em meus braços e me joguei pela janela mais próxima, absorvendo todos os impactos com meu próprio corpo. Segura ao lado de fora, coloquei minha querida avó no chão com cuidado, sentindo a aparente dificuldade que ela apresentava para respirar. — Ela foi esfaqueada no peito, está sangrando muito. — Diagnosticou Hibiki, me fazendo tatear a mais velha para fazer força em seu ferimento. — Vai ficar tudo bem, Vovó. Não se preocupe, está bem? Com certeza, a ajuda já está a caminho. — Busquei acalmá-la, embora fosse eu quem mais estivesse desesperada ali.

As lágrimas não poderiam mais ser contidas, vazando pela venda que ela fez questão de remover, antes de passar o polegar frio abaixo de meus olhos. — Não chore, criança… Você sabe que isso aconteceria eventualmente, não sou mais tão jovem assim. — Brincou, aparentemente despreocupada com o que viria em breve. — Escute… pensávamos que a família de… — Ela fez uma pausa, aparentemente tossindo sangue pelo som úmido e desagradável. — Pensávamos que os Sakamoto estivessem mortos, mas parece que ainda existem alguns deles vivos. — Informou a senhora, continuando com a informação realmente relevante. — Eles buscaram ajuda na resistência. Aparentemente, queriam terminar a guerra que havíamos começado e parece que conseguiram. — Ela parecia feliz, quase aliviada para dizer a verdade, como se estivesse cansada de tudo aquilo. Sua mão já fria tocou-me a face outra vez, enquanto sua respiração se tornou pesada e lenta. — Você me lembra tanto a sua mãe… Agora que eu irei me juntar a ela, a família Abusaki continuará através de você, pequena. Você será a nova líder, entendeu? Tenho certeza de que nos trará muito orgulho, assim como já tem feito todos os dias. — O peso da responsabilidade parecia não importar, conforme tudo que pensava era em manter a mulher diante de mim viva, embora soubesse ser impossível. — Faça muitos amigos e se rodeie de pessoas em que possa confiar, está bem? Eu… te… amo… — Ela encerrou seu discurso com as últimas forças que possuía em seu ser, deixando a mão cair de meu rosto em direção ao chão, já sem vida.


Olha só, que bagunça. Essa resistência já tá de sacanagem com a gente, quando eles vão nos deixar em paz? — Resmungou um dos oficiais ao seu parceiro, observando a grande residência antes engolfada em chamas, agora reduzida a carvão e cinzas. — Fala sério. E só sobrou uma garota? Nem imagino o que ela deve estar passando. — Respondeu seu parceiro, imaginando que não fosse capaz de ouvir o que diziam, embora suas palavras fossem altas o suficiente para até que um surdo fosse capaz de fazê-lo.

Imaginei como as coisas seriam dali em diante, sentindo o peso de minha própria fraqueza me consumindo por dentro, rasgando meu coração de dentro para fora. Esses malditos olhos, inúteis e deploráveis, já haviam me irritado o suficiente. — Aí… vocês haviam dito que encontraram alguns ninjas sem registro, mortos pela casa, não disseram? — Indaguei, me sentindo no direito de saber por ter sido a responsável por identificar os corpos com a ajuda de Hibiki. Receosos, eles pareceram pensar bem na resposta antes de apenas confirmarem com sincronia. — Perfeito. Vou precisar de um deles.


Os sinos badalaram algumas vezes, tornando as conversas paralelas em um silêncio coletivo. Hibiki observou em volta, notando todos trajados de melancolia, na cor fosca que remetia ao que ocorria ali. Preferi não me pronunciar diante do altar, permitindo que os conhecidos e amigos de minha querida avó tivessem seu momento de fala, relembrando seus bons momentos e lembranças felizes. Pensei que, talvez, se apenas deixasse esse momento passar, a dor diminuiria e poderia retornar para minha vida, normalmente como deveria ser. Pessoas vêm e vão, já sabia que mais cedo ou tarde eu estaria sozinha, então tanta dor me parecia motivo de piada.

Kyoko, minha amável tia, havia retornado recentemente, agora que o incidente havia praticamente se repetido. Determinada a cuidar de mim, ela sabia melhor do que ninguém que deveria botar para fora o que sentia ou iria adoecer lentamente. Sua mão, quente e confortável, tocou-me o ombro como incentivo, me permitindo levantar e seguir até a frente de todos os convidados.

Uma boa noite… me chamo Sawako. Sou a neta de Chisato. Acho que seria bom para mim dizer algumas palavras. — Fiz uma pequena pausa, respirando fundo e limpando a garganta. — “A parte que parte não consegue por inteiro partir. Mas se a parte que parte, um pouco fica, a que fica, um pouco parte.” — Respirei fundo, segurando as lágrimas enquanto mordiscava suavemente o lábio inferior. — E embora essas partidas nos partam, elas são parte da vida… E a vida não deixa de ser arte, embora sofrida.