Corria pelo jardim, um sorriso bobo sobre o rosto e nenhuma preocupação na mente, apenas alegria em ver o nascer de mais um dia e sentir o frio de mais um inverno na pele.  Talvez a memória de uma pequena jovem em seus recém quatro anos de idade não fosse das melhores, mas sabia sem sombra de dúvidas que aquele era um dia especial. O cheiro de doces e pratos exóticos poderia ser sentido por toda a residência, como se o nascer do sol fosse um sinal para que os preparativos tivessem início.

As criadas percebiam facilmente minha aproximação da cozinha, me expulsando com desculpas bobas como as de que as atrapalharia ou que poderia me machucar com as facas, mas não era difícil deduzir o real motivo para aquele suspense. Não era bem vinda na cozinha e nunca gostei de fazer barulho dentro de casa pelas manhãs, pois meus pais pareciam sempre se incomodar com qualquer coisa que fizesse. Com os pés descalços sobre a neve, deixava as pequenas marcas de pegadas por onde caminhava, me atirando ao chão para formar anjos de neve e também puxava quantias enormes de neve para montar bonecos. Um dia especial como aquele só aconteceria outra vez após um ano inteiro, então não era exagero algum aproveitar.

Minha avó se apresentou sobre o engawa após abrir o shōji do quintal, me observando com um olhar de admiração, ainda que um pingo de preocupação pudesse ser notado em sua face. Talvez ela fosse me dizer algo, provavelmente me chamaria para dentro e me tiraria do frio, mas minha mãe se juntou a ela, lhe entregando palavras as quais não fui capaz de ouvir. Elas não aparentavam ansiedade, mas os olhares em seus rostos não era também muito tranquilo, então preferi não as atrapalhar e continuei a brincar na neve branca.

Mãos quentes e enrugadas me cobriam os olhos, conforme caminhei em direção ao salão principal. O cheiro de comida deliciosa preenchia cada centímetro dos corredores frios, mas a presença do calor da lareira me alcançou a pele após outro shōji ser aberto. As mãos de minha querida avó foram removidas de meu rosto, permitindo que tivesse uma visão completa de todo o cenário. Família, quase todos os que conhecia de ambos os lados da linhagem, assim como alguns indivíduos inéditos. Naquele dia especial, as desavenças intrínsecas das duas famílias foram deixadas de lado, permitindo que uma pequena criança tivesse alguma memória feliz antes de… Bem, antes de tudo o que viria.


A neve branca pintava o jardim com a sua cor, congelando e matando toda a vegetação. Uma comoção teve início ainda cedo pela manhã, conforme as criadas gritavam em pânico e chamavam por ajuda, criando certa curiosidade em minha pequena cabecinha. Me dirigi às pressas até o quintal, observando a grandiosa árvore de cedro de longe, com as moças gritando e se afastando com temor do vegetal. Pensei em lhes perguntar o motivo de tanto alvoroço, mas a figura albina se fez perceptível ao descer do tronco, cruzar o jardim nevado e subir o engawa da residência agilmente. Para mim, era óbvio que a pequena criatura apenas buscava sua própria paz, então me abaixei e a cumprimentei cordialmente, com um sorriso franco e a mão esticada em sua direção.

A cena que se desenrolava na mente de qualquer um é um bote seguido de morte por envenenamento, mas a cobra, inofensiva por natureza e idade, se atirou em meu braço e o escalou ao girar em seu eixo, subindo até a altura de meu pescoço, onde permaneceu imóvel como um lindo cachecol. Percebi que assim como muitos, a serpente não era uma grande fã do frio, então a levei para dentro, contrariando as recomendações e olhares de reprovação das mulheres.

Foi nesse dia que fiz minha primeira amizade, embora não soubesse ainda do peso que esse laço viria a ter no futuro. Minha mãe não pareceu se importar muito com minha companhia após perceber sua tranquilidade e gentileza, então um afago em minha cabeça e um aviso simples foi tudo que ela me entregou naquele momento. “Tome cuidado, Sawako”.

Não foi difícil de ouvir a briga que se desenrolou posteriormente entre meus pais, já que mesmo com o intuito de permanecerem em sigilo quando discutiam, suas vozes sempre acabavam por atravessar as paredes, chegando aos ouvidos de todos. Na minha idade atual, nenhuma criada se dava ao trabalho de continuar me distraindo ou distorcendo o acontecido, pois já sabia da realidade em que estava inserida. Pais disfuncionais, cujo relacionamento era moldado em um pacto, era tudo que sabia a respeito de ambos.


Minha avó afagava meus cabelos, conforme as lágrimas ralas vazavam pelos olhos púrpura. Me perguntava o porquê de meus pais me odiarem tanto, me perguntava o porquê de me sentir tão indesejadas, recebendo a resposta mais franca possível de minha querida avó; “Eles veem em ti o que mais desprezam um no outro”. E talvez aquela frase não fizesse sentido para uma pequena dama como eu, mas atualmente sou enfim capaz de entender o que ela queria dizer.

Nenhum outro inverno jamais foi como os da infância, quando o frio trazia conforto e calor, além de aromas agradáveis de um banquete feito com carinho e amor. Os abraços e carinhos desapareceram por completo ao longo dos anos, me deixando apenas com o frio desagradável dos olhares de reprovação, cobrança e desprezo.

Aos olhos de minha avó, senti como se fosse apenas uma promessa, um objeto que teria sua utilidade no futuro, mas talvez agora fosse capaz de compreender como ela apenas desejava que pudesse seguir meu próprio caminho, caminhando com minhas próprias pernas. Meus pais nunca me viram como alguém, de fato, mas apenas como um acúmulo de defeitos e desgostos do parceiro ao qual foram forçados a se juntar.

Ao longo dos anos, ouvi poucas vezes as palavras “Eu te amo” dos dois, mas sabia que minha mãe de fato possuía um sentimento mais profundo por mim, embora o desgosto em se lembrar de meu pai ao colocar os olhos em mim fosse crescendo cada vez mais conforme os anos se passavam. Talvez no fim, o desenrolar de tudo isso não fosse lá o dos piores.