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Por que os sons estão tão altos? Parece que minha cabeça vai explodir…” durante a noite toda Rekken foi acordado de suas incontáveis tentativas de descansar, após ter voltado recentemente de uma missão em nome da Oinin Butai. Os ruídos dos pássaros sobrevoando o céu. Das gotas d’água encontrando o solo arenoso. Das pessoas indo e vindo durante a madrugada. Todos os barulhos martelavam a mente do homem, sem entender os porquês de estar se incomodando tanto.
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Porra, parece que estão no cômodo do lado — ainda deitado, levou ambos os lados do traveseiro a circundar os ouvidos em uma tentativa de abafar aquilo que lhe atrapalhou durante a madrugada. Constatou, entretanto, que era impossível abafar os sons. A cada segundo pareciam mais fortes, mais alto martelando a mente. Era impossível evitar que a dor de cabeça começasse a lhe afligir.
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Será que pode ser efeito de alguma técnica ilusória usada pelos irmãos? — as dúvidas começaram a permear. Sem conseguir pensar bem, sequer conseguia discernir se as suposições possuíam algum valor lógico.
Os passos lentos direcionaram o Espadachim até o simplório banheiro acoplado ao cômodo que insistia em improvisar como dormitório dentro da cozinha. Sentiu o frio invadir a derme, muito por estar descalço e sem camisa. Perdeu longos segundos analisando a água escorrer pela louça da pia, com um olhar um tanto quanto vago; como se estivesse com pensamentos distantes e, de fato, estava. Levou ambas as mãos para debaixo d’água, acumulando uma quantidade significativa para jogar ao próprio rosto, tentando afastar os sentimentos negativos que lhe aturdia. Quando olhou no espelho, de relance, percebeu um reflexo distorcido do seu. Esfregou os olhos algumas vezes e, ao abri-los novamente, assegurou-se de estar vendo o mesmo reflexo de sempre; si mesmo sobre o espelho.
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Tem alguma coisa acontecendo… preciso falar com Seiji. Será que eles ainda estão morando juntos? Fazem bons meses que não os vejo — suspirou firme ao término do sussurro, ainda com os olhos vidrados sobre o próprio reflexo no vidro.
Determinado ao que fazer, apenas vestiu uma camisa típica das quais utiliza quase sempre e, a passos ligeiramente rápidos, deixou a Zettai Ryouri sem olhar para trás, assegurando-se apenas de ter trancado a porta. O frio e a bruma circundam a derme de imediato. Se fosse para chutar, diria que era um dos dias mais gelados das últimas semanas.
O semblante determinado ignorava qualquer olhar curioso depositado sobre si conforme caminhava em direção ao complexo de casas do vilarejo. Aos poucos estava se acostumando com a fama que o cargo de Espadachim da Névoa lhe concedia, portanto, passou a ignorar aqueles olhares de alguns meses atrás.
De frente pra porta que a muito foi sua morada, os batimentos do coração descompassaram inevitavelmente. Odia aquele sentimento. Em seu âmago, estar distante tanto da própria mãe quanto do tio era necessário para seu crescimento, principalmente como ninja. Longe deles, inimigos não poderiam utilizar da existência dos dois para lhe prejudicarem em batalha. Ao menos, era assim que permanecia pensando mesmo após amadurecer. Duas batidas secas foram necessárias para escutar, ao longe, a voz doce e delicada de sua mãe. Tum. Tum. O coração descompassou ainda mais. O longo suspirou não foi suficiente para se acalmar, portanto, precisou levar um cigarro à boca, sentindo a nicotina o acalmar ao pouco, mas sem ser suficiente para evitar o sentimento de nostalgia e saudades.
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Rekken? — o sorriso largo da mulher não a impediu de abraçar o próprio filho.
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Calma. Faz um bom tempo, mas estou bem — a personalidade um tanto quanto aversiva do homem entrou em cena, tentando afastar a mulher com cuidado, respondendo o sorriso dela com um simplório sobre a face.
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Eu sei. Apesar de não visitar sua mãe, né? Não te criei pra ser um péssimo filho, sabia? —
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Talvez eu tenha puxado um pouco do Shi, nesse aspecto. Tio Seiji está? — respondeu, vendo o cenho da mulher franzir.
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Sim… lá dentro. Só tire seus sapatos, não quero limpar a casa hoje — com um suspiro, ela gesticulou para que o filho entrasse, mas tirasse os sapatos, como tradicionalmente faziam.
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Eu sei, eu sei — sorriu mais uma vez, retirando os sapatos, sentindo o frio do tablado de madeira.
O mais velho estava com uma xícara de café em uma das mãos e um jornal na outra, sentado em sua poltrona, observando a pequena janela à frente. “Ele já vai reclamar do cigarro” constatou e, antes que pudesse se prevenir da reclamação, elas vieram e duras e roucas palavras.
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Pensei que a primeira coisa que faria, ao me ver, depois de tanto tempo, seria tudo menos reclamar. A idade chegou até pra você, tio — uma breve gargalhada infestou a sala de nostalgia.
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Seria diferente se você não chegasse fumando. Com saudades de casa? — ele sabia que a presença do sobrinho trazia consigo algo a mais do que uma simples visita.
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Na verdade não. Preciso de ajuda com algo. Tem um minuto, mãe? — gritou com intenção de fazer a mão largar a cozinha e ir conversar com ambos.
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Lá vem merda… — ela respondeu, com sua voz ecoando pelo lugar, incomodando ligeiramente Rekken. Trazia, consigo, duas xícaras de café. Uma delas foi oferecida ao jovem.
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Obrigado — agradeceu, levando o líquido enegrecido aos lábios para sentir a temperatura. Ciente de que não se queimaria, ingeriu uma boa quantidade, sentindo o misto do amargor com o doce do açúcar presente e um pequeno rastro de canela ao término do gole.
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E então? — impaciente como era, Seiji perguntou em um tom ameaçador, fitando os olhos castanhos do de fios enegrecidos.
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Recentemente participei de uma missão secreta. Não posso falar detalhes dela, infelizmente, mas tive de enfrentar uma série de ilusões que mexeram com a minha cabeça… eu acho — começou a explicar, entre tragos no cigarro e goles no café, sem tirar os olhos da face dos dois a frente, buscando analisar suas reações.
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Nos últimos dias alguns pesadelos do passado têm vindo à tona. A maioria deles envolvendo minha relação conturbada com Shi. Na última noite… digamos que tornei-me bastante sensível ao barulho. Por menor que fosse, me fazia acordar de um sono profundo. Quando olhei meu reflexo pelo espelho, logo de manhã, tive uma visão distorcida de mim mesmo. Não sei explicar ao certo mas parecia real, quase palpável, entretanto, ao fechar os olhos e esfregá-los, essa imagem distorcida sumiu. Conhecendo meu pai, diria que seja algum enigma vindo dele — ambos concordaram com a afirmação de Rekken, que suspirou em resposta.
Seiji levantou de sua poltrona, aproximando-se mais ainda da janela. Um longo suspiro podia ser escutado por Rekken, que, por sua vez, permaneceu inerte, franzindo o cenho em resposta. O mais velho estava diferente de outros tempos. Talvez pela idade, ou por algum pressentimento sobre a história contada. A verdade era que o Salgueiro estava claramente absorto por pensamentos sombrios. “Isso vai dar merda, certeza” o Espadachim pensou consigo mesmo, dando mais um trago no cigarro.
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Precisamos contar a ele, Seiji — o silêncio foi rompido pela mulher, com uma voz pesarosa, levantando suspeitas no mais jovem dentro do cômodo.
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Eu sei disso, Kumita. Sei que precisamos — a concordância do homem fez Rekken franzir o cenho mais uma vez, em completa dúvida. Estava claro que ambos escondiam algo, talvez do passado.
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Não olhe assim pra sua mãe, fedelho —
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Esse olhar não é só pra ela, Seiji, você sabe muito bem disso. Qual o segredo da vez? — Rekken levantou da cadeira, repousando a xícara e um cinzeiro sobre a mesa de vidro.
Aproveitou para olhar o próprio reflexo em um pequeno espelho preso à parede, reparando na imagem deformada de outrora, mais uma vez. Não se espantou, buscou analisar os detalhes daquilo. Era ele mesmo, sabia disso, pelos poucos dos traços que permaneciam idênticos na imagem.
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O segredo da vez? Seu passado… sua linhagem… seu sangue — para cada afirmação, uma pausa sincera de Seiji.
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Muitas das coisas que sua mãe e seu pai fizeram no passado foi para preservar seu presente. Se hoje em dia você é o grandioso Rekken, Espadachim da Névoa, homem que lutou em incontáveis batalhas… são pelas escolhas deles em mascarar as ambições do próprio sangue em busca de uma vida tranquila. Shi infelizmente tornou-se um homem quebrado com o tempo. Entretanto, tudo o que fizeram foi por você, Rekken — a voz, anteriormente de repreensão, tornou-se pesarosa.
Escutando cada palavra saindo da boca do mais velho, a feição de Rekken foi tornando-se cada vez mais odiosa. Ele exalava raiva; ódio. Em um movimento impensado, cerrou o punho da destra, socando o espelho que se partiu em vários pequenos pedaços de caco de vidro. O sangue escorreu sobre o tablado de madeira, tirando um grito de susto de sua mãe, que olhou a ação do filho horrorizada.
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Não vim aqui para escutar desculpas, Seiji. Sei de todas as coisas que meus pais abriram mão para me criar em um lugar melhor, mas isso não significa nada nos dias de hoje. Estou farto das mentiras… preciso conhecer sobre meu passado. Quem eu sou? Qual o meu verdadeiro sangue? Você não entende isso, Seiji… viver uma mentira, por vinte e quatro anos… terei que ir atrás de Shi para isso? — era impossível controlar sua impulsividade, por mais que quisesse. A voz foi tornando-se ainda mais atenuada a cada palavra disparada contra o tio, que parecia compreender todo o ódio do sobrinho.
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Me escute, Rekken — a voz doce da mulher foi acalmando aos poucos os sentimentos conturbados do filho, que voltou-se a olhar em direção à ela.
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E não me interrompa — ele consentiu com a cabeça, acendendo mais um cigarro.
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Nossos antepassados pertenciam a um antigo clã, oriundo de Otogakure no Sato. Lembro-me bem de você já ter visitado esse lugar em uma de suas missões especiais. Éramos, na época, apenas ladrões que utilizavam a música e apresentações para roubar dos outros. Conforme os anos se passaram, as guerras começaram a assolar o mundo inteiro. Nosso clã, Shiin, foram treinados para atuarem no campo de batalha. Em resumo, tornaram-se ninjas exemplares, principalmente focados na arte da ilusão, mesclando o uso do som, tanto ao Genjutsu quanto ao Ninjutsu — a mulher pausou, buscando algo dentro de uma gaveta, enrolado em um pano visivelmente degradado. Ela não demorou em mostrar uma flauta forjada em metal, de aproximadamente trinta e três centímetros.
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Conseguimos, através dela e de um domínio inicial do som, manipular pessoas, utilizar o elemento como forma ofensiva ou defensiva, e etcetera. Acredito que Shi esteja querendo entrar em contato com você, é verdade… mas não se esqueça quem é o homem por trás daquele que carrega sua paternidade. Não confie nele, mas vá, encontre-o, escute o que ele tem a dizer. Seu pai foi considerado um prodígio do clã quando éramos da sua idade — Kumita terminou de explicar, guardando a flauta novamente.
[...]
Tudo estava sombrio. O campo florido tornou-se enegrecido, cercado por uma bruma intensa. Shi estava de frente para Rekken. Os dois se olhando, analisando. A feição do mais velho desdenhava da presença do mais novo por manter um sorriso largo sobre o rosto, quase de orelha a orelha, incitando o ódio de sua própria cria. Por outro lado, conhecendo os jogos mentais do pai, o Espadachim manteve-se calmo na medida do possível, tragando vez ou outra o cigarro mantido sobre os lábios. Procurava por respostas. Não era a hora de se vingar. Não seria ali que a vida de Shi chegaria ao fim.
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Finalmente entendeu os sinais… teve alguma ajuda? — a rouquidão da voz do mais velho se projetou no ambiente.
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E isso importa? — respondeu Rekken, suspirando logo em seguida.
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Talvez. Você pede ajuda a terceiros pra fazer sexo também? — gargalhou, enchendo o âmago de seu filho de ódio.
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Pelo menos nisso eu não te puxei, pai. Não sabia que tinha esse tipo de fetiche — o sorriso amarelo que brotou sobre a face, após provocar o pai foi suficiente para ambos entenderem o rumo que a conversa levaria, se nenhum dos dois desse o braço a torcer.
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Que seja… veio aqui descobrir sobre seu passado, né? Tudo bem… — Shi levou sua mateki à boca, tocando uma melodia forçando Rekken a entrar em uma ilusão.
Tudo à volta de Rekken mudou. Estava em uma espécie de cabana, vendo seu próprio pai em uma aparência mais nova, muito similar a sua, conversando com uma senhora. Ambos sentados, um de frente ao outro, com uma mesa de madeira separando ambos. Nas mãos da velha, um baralho de cartas pronto para ser cortado por Shi. Pelo que entendia, tratava-se de uma memória do passado.
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Vinte e Um. A carta do Julgamento. Isso é grandioso, Shi. Seu filho vai carregar o fardo do Juízo Final nas costas — o suspiro do homem fez a velha pausar seu raciocínio.
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Não me atrapalhe, filho da puta. Não precisamos levar o significado do Juízo Final ao pé da letra, obviamente. Essa carta significa Autoanálise. Transformação pessoal. O fim de um ciclo e o início de um novo. Reflete um despertar espiritual ou um chamado interior — ela pausou brevemente para dar um trago no cachimbo.
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Entretanto, pode significar Autocrítica Excessiva. Estagnação. Negação. Arrependimentos. Essa criança pode carregar consigo tal dualidade. Coisas grandiosas estão guardadas para seu filho, tanto para o bem quanto para o mal —
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Isso é muito difícil de entender, sua velha. Só queria que visse o futuro de Rekken, mas nem eu consegui entender direito —
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Claro, você é burro, Shi. O futuro de seu filho depende dele mesmo. Das escolhas que fará quando a hora chegar. Mas, uma coisa é clara; se descobrirem que seu nascimento carregará a carta XX consigo, temo pela vida dele. Se aceita um conselho, meu filho… parta daqui. Viva em um outro vilarejo. Um que consiga fazer dele um Shinobi de verdade, que consiga se defender sozinho —
As imagens tornaram-se nubladas. Rekken tentou se mover, mas logo percebeu que estava no seu próprio quarto, cômodo improvisado aos fundos da cozinha.
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Shiin, certo? Que seja. Só espero que os pesadelos acabem — disse para si mesmo, encarando a cama bagunçada. Apesar dos segredos, sabia que tudo aquilo havia sido verdade. As conversas com Seiji e sua mãe… o encontro com seu pai… a carta do Julgamento.
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Agora preciso me redescobrir. Som… ilusões… estou de certa forma ansioso para treinar e entender as técnicas derivadas de meu sangue — o coração batia descompassadamente à medida em que falava para si mesmo, encarando, dessa vez, o único espelho ali presente. Não se via mais desfigurado. Seu reflexo parecia normal.
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Rekken Shiin. Shiin Rekken… não soa tão bem — suspirou.
Não havia mais o que fazer. Era altas horas da madrugada. Rekken permaneceu por alguns minutos olhando para fora de uma das janelas da cozinha, observando a movimentação do Centro Comercial de Kirigakure no Sato, enquanto fumava um cigarro e bebia uma dose de bourbon feita por ele mesmo. Tentava entender seu futuro entre os tragos e os goles. A carta do Julgamento ser sua representação trazia mais dúvidas do que certezas, principalmente se as escolhas mencionadas pela cartomante já haviam sido feitas… somente o futuro, incerto, poderia trazer as respostas das quais o Espadachim da Névoa, Anbu da Oinin Butai e Sombra da Lua Minguante precisava.