Ethan

Era de madrugada quanto Ethan resolveu se sentar no telhado de casa. Sob um céu estrelado e um clima abafado, ele encarava o horizonte para além dos muros de Iwagakure, inquieto com o que o futuro lhe reservava. Levou a mão até a perna quebrada por um instante, revivendo a sua jornada até aquele ínterim. Via cada momento como um expectador, contemplando uma vida repleta de arrependimentos. Diante de tantas palavras não ditas, um amargor permanecia na sua boca, como um lembrete constante do fracasso que estava destinado a ser. Sabia disso melhor do que ninguém, porém, não podia fazer nada para impedir os pensamentos recriminatórios que despejava sobre si.

Por um momento, deixando tudo o que passou para trás, pensava sobre o tipo de futuro que teria, caso continuasse seguindo pelo mesmo caminho. Ele tentava ser otimista com os devaneios, acreditando em todas as mentiras e promessas de um futuro melhor, onde o seu passado permaneceria enterrado. Contudo, a ilusão não passava disso, um meio para que Ethan conseguisse conviver consigo mesmo. E apesar das tentativas, seu pessimismo sempre o trazia de volta para a realidade. A mão pesou novamente sobre a perna, e a dor servia para lhe proporcionar um pouco de conforto. Em meio ao caos, aquela sensação era a única dignidade que se permitia ter. Mas, no fim, ela o abrandava e os pensamentos melancólicos retornavam.

Naquela madrugada, Ethan não era a única alma atormentada que tentava encontrar uma forma de passar o tempo. Raizo, seu mestre e amigo, também buscava um refúgio sob as estrelas cintilantes. O velho também era acometido por dores crônicas, tão profundas que já nem conhecia sua origem, e segundo ele, as caminhadas o ajudavam a afastar os problemas. E na esperança de encontrar o pupilo ainda acordado, caminhava despretensiosamente rumo à sua casa. Desse modo, logo se viu diante do casebre caindo aos pedaços, fez um julgamento silencioso ao ver o desleixo do garoto. A porta correr ameaçava se partir em mil pedaços. As janelas, despedaças, encontravam-se igualmente avariadas. Além disso, a tinta desbotada não escondia com maestria a presença dos cupins.

— Acho que não é muito educado ficar encarando a casa dos outros — ao avistar o mais velho, Ethan comentou. — Sei que o trato social não é o seu forte, mas, por favor, pense no que as pessoas vão dizer.

— Você não para de me surpreender, garoto. Tenho que admitir. — Um riso e um aceno em desaprovação sucederam à fala. — Sinceramente, não acredito que continua chamando isto de casa. Se precisar, sei de algumas casas para alugar. E não se preocupe, elas são melhores do que esse amontoado de madeiras com um teto em cima. Também não é como se houvesse uma casa pior do que essa — disse, tentando encontrar o rosto do garoto em meio ao breu.

— Olha quem fala. A sua casa não é tipo… uma caverna? De qualquer forma, muito obrigado pela oferta. Quem sabe não penso em me mudar quando decidirem aumentar o meu salário, caso contrário, esse lugar tá de bom tamanho. Não tenho problema algum com os vizinho. Aqui é bem localizado, dentro do possível. Sem contar que o aluguel é tragável.

— Aumentar o salário de um ninja que não consegue nem ficar de pé com as próprias pernas? — Raizo começou a gargalhar, reagindo ao absurdo dito pelo outro. — É mais fácil cinco raios caírem no mesmo lugar. E só para constar, não se esqueça de me chamar quando for pleitear o aumento de salário. Quero estar na primeira fila para rir da sua cara.

— Cara, tinha me esquecido do quão gentil a terceira idade conseguia ser. Mas que bom que ainda consegue manter o senso de humor, mesmo com seus 150 anos, vovô. Em todo caso, que tal me ajudar com o aluguel? Sabe, as pessoas comentam. Imagina se descobrem que você deixa o seu aluno desamparado? Iria ser desconcertante, consigo até imaginar a cena.

— Acho que você chegou um pouco tarde. Mesmo sem fazer nada, eles já têm motivos o bastante para falar pelas minhas costas. Bom, acho que é o preço por viver tanto. Agora, se já acabou de perder tempo aí em cima, queria te mostrar algo. E então, o que me diz, Ethan?

— Claro! Até parece que você adivinhou que eu estava com vontade de me arrastar pelo vilarejo enquanto sinto dores insuportáveis — com um sorriso ligeiramente falso no rosto, respondeu. Após isso, pegou a espada no quadril, fazendo-a de muleta, e começou a segui-lo pelas ruas do vilarejo.

Entre uma Iwagakure ainda desperta, com a vida boemia compondo o ambiente em volta, com músicas, risos e bebedeiras, eles faziam o seu caminho. Para Raizo, todos aqueles estímulos não passavam de burburinhos que podia facilmente evitar. Mas, para o até então Hattori, a junção de tantos elementos distintos, como sempre, deixava-o com fortes dores de cabeça. Mesmo tentando filtrar as informações, eram como se aquelas vozes e cheiros estivessem dentro da sua cabeça, como se não passassem de uma alucinação passageira. No entanto, assim como todos os dias, ele tentava não pensar muito naquilo. Naquela noite, em específico, encarava as sombras projetadas pelas luzes neons dos letreiros, dividindo a sua atenção entre o jogo de cores sobre o chão e os passos do mais velho, que seguiam intermináveis. Enquanto isso, o som da bainha indo ao encontro do chão seguiam anunciando a condição do autoproclamado Hattori.

No fim da caminhada, Ethan se via diante do monumento da pedra. Olhava em volta, mas até então não entendia por que estava ali. Seguiu os passos do mestre enquanto o mesmo tomava alguns minutos para prestar as homenagens para os companheiros que perdeu há muito. Nesse momento, Ethan lembrou-se do dia em que conheceu Raizo, reparando que as suas feições estavam iguais àquele dia. Estava visivelmente cansado, contudo, seus olhos diziam mais do que as aparências. Em meio à fadiga, havia tristeza em seus olhos, um reflexo do que a vida, no fim das contas, tinha a oferecer. Na velhice, tudo o que tinha restado para aquele shinobi eram mais arrependimentos do que podia suportar, onde residia uma vontade oculta de mudar o passado. Ao mesmo tempo, os orbes denunciavam a falta de fé em relação ao futuro. Talvez, Ethan pensou, aqueles eram olhos de alguém que esperava pacientemente pelo dia em que teria o direito de morrer.

Depois disso, quando o bater de asas de algumas aves chamaram a atenção de Ethan, o velho se aproximou de um banco de pedra e se sentou. — Isto é engraçado — disse Raizo, olhando para os seus pés.

— O quê? — na mesma hora, Ethan o questionou, tomando um lugar ao seu lado. Antes de se sentar, no entanto, limpou a poeira do banco com as mãos, deixando a espada de lado.

— Acho que me refiro à vida como um todo. Mas… esquece, não é como se alguém tão novo pudesse entender o que estou dizendo. Você pode até entender, mas acho que a compreensão sobre vai muito além do racional. Acho que você está uns 35 anos adiantado para esta conversa. O tempo…, só espero que ele seja melhor para você do que ele foi para mim. Às vezes, acho que estou amaldiçoado a permanecer aqui, vagando como um morto-vivo, à espera de um milagre que jamais acontecerá.

— Bom, pelo menos a sua vida inteira não foi baseada em uma mentira. Durante todo esse tempo, tentei me enganar, imaginando que algo em mim era especial. Tentei criar uma ilusão que jamais pude sustentar. Mas, quer saber? Nunca ganhei nada me escondendo atrás desse nome. No início, eu realmente acreditei que as coisas seriam diferentes, mas é como dizem: as pessoas não mudam. Então, cá estou eu de novo, atrás de alguma compensação que jamais vai suprir minhas expectativas. Por isso, é só questão de tempo até eu decidir de novo que tudo é uma mentira. E, em um passo de mágica, vou passar uma borracha em tudo, reescrevendo a minha própria história.

— Ethan, só me responda uma coisa: você sente que essa é a escolha certa? Você é jovem, então não é como se você fosse a única pessoa burra que tem certeza de algo. Eu passei por isso, assim meus filhos passaram pela mesma coisa, e garanto que esse ciclo não vai acabar com você. Como eu disse, você é jovem demais para ver as coisas como elas são.

— Que estranho… nem parece mais a pessoa que ficava me chamando de idiota na primeira oportunidade que aparecia. Mas, respondendo à sua pergunta, sim, nunca estive tão certo de algo na minha vida. — Ethan entrelaçou os dedos, esfregando um polegar no outro.

— Então chega de mentir! Talvez você esteja enganado porque é jovem e, consequentemente, burro, mas isso pouco importa. Saiba que, aceitando isso ou não, quando você for mais velho, esse vai ser só mais um dos arrependimentos que colecionará. Eu não posso voltar atrás e refazer a minha vida, não posso retirar todas as palavras ditas, tampouco posso passar os meus dias com todos que amei; porém, acho que mesmo se pudesse, eu não mudaria nada. No fim, só demoramos a perceber que essa é a beleza da vida.

— Meu nome é Ethan. Sou um órfão e um ninja de Iwagakure. Não possuo nenhuma habilidade especial e por muito tempo criei a ilusão na minha cabeça de que era descendente de um clã nobre. Era tudo mentira. Os meus olhos não brilham e meu toque não é frio. Meu nome é Ethan e não passo de uma vergonha.