Fazer parte de uma investigação não era nada do que o Hattori imaginava; por algum motivo, tudo o que fazia era ler. Isso porque tinha sido incumbido de encontrar a motivação por trás dos experimentos realizados com aquelas mulheres, passando a maior parte do dia lendo quase sempre as mesmas palavras e vendo fotos de cadáveres, repetidamente. Como se não bastasse, ainda tinha de lidar com seu parceiro; hora eles se provocavam e trocavam palavras ásperas um com o outro, hora Ethan tinha que bancar o professor, esclarecendo algumas terminologias e conceitos que Denji não compreendia plenamente. Em ambas as situações, nunca se queixava; na verdade, com o passar do tempo, começara a apreciar as discussões e provocações matinais, que serviam como um pontapé inicial no trabalho que se estendia durante todo o dia. As pausas pontuais, por sua vez, eram reservadas para idas ao banheiro e para os minutos contados que possuíam para as refeições, um dos poucos minutos do dia em que Ethan não pensava em toda a crueldade que um único homem poderia proporcionar. Era como se seu corpo tivesse sido treinado para se comportar de determinada forma ao sentir o gosto neutro do mesmo arroz de sempre, comprado religiosamente em um restaurante localizado nas redondezas.
Embora buscasse dedicar toda a atenção no que fazia, reconhecendo a importância da tarefa, às vezes, Ethan aproveitava os sentidos aguçados para espionar os colegas. Afinal de contas, conforme os outros membros da seção 09 voltavam de missão, havia sempre algo de interessante acontecendo. No pouco mais de um mês que passou com eles, descobriu sobre a infidelidade de alguns, sentindo um cheiro bem peculiar sendo exalado por eles logo pela manhã; teve a oportunidade de descobrir sobre seus hábitos mais íntimos; sabia como cada um cuidava da própria higiene; e, principalmente, sempre recebia as informações em primeira mão, ouvindo-as enquanto a Major conversa com Yudi na privacidade de sua sala.
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Pessoas sendo subornadas para fazerem vista grossa? O tem de novo nisso? — Nas primeiras semanas, a major recebia Yudi em sua sala. O velho havia passado alguns dias fora investigando algumas pistas.
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Isto é só a ponta do iceberg, Major. Bom, como sabe, todas as empresas que trabalham com a produção e distribuição de certos produtos e substâncias são obrigadas a guardar um registro sobre seus clientes. Não é como se qualquer um pudesse chegar em uma dessas instalações e comprar produtos capazes de causar catástrofes inimagináveis à vontade. Em uma dessas empresas em particular, descobri algumas irregularidades nos seus registros, além de pequenas adulterações na contabilidade. De fato, isso por si só não é alarmante o suficiente. Mas após comparar os dados que coletei de algumas delas, cheguei até o rastro de algumas empresas de transporte de fachada, que tinham conexões com empresas fantasmas. O mais curioso é que, há cerca dois anos, esse mesmo conjunto de transportadoras declararam falência após um incêndio na sua sede. Nem consigo contar a quantidade de informações levadas pelo fogo. Quanto as empresas menores, elas até geraram alguns rastros, mas ele sempre acabava em laranjas que não sabiam de muita coisa. Um intermediário, que não sabemos quem é, fazia a captação e os pagamentos em dinheiro. Desse modo, a operação deles durou, no total, cerca de três anos. — A cada declaração, Yudi apresentava suas anotações e arquivos recuperados.
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Ou seja, o que quer que estivessem contrabandeando, eles encontraram outra forma de conseguir. Quem sabe legalmente. Não acha, Ethan? — Como de praxe, a Major sempre sabia quando Ethan estava ouvindo as conversas. Ethan, por sua vez, sempre voltava a ler os livros de cunho científico quando era descoberto, dedicando toda a atenção àquilo.
O tempo que passou na companhia dos membros da Seção 09 durante as investigações, de certa forma aprendendo um novo ofício, havia sido desanimador, ao mesmo tempo que se provou gratificante. Ethan não podia negar todo o conhecimento obtido sobre aquele teto, tendo uma quantidade significativa de livros à disposição. Naquele mês e meio, havia preenchido as lacunas em sua formação, aprendendo sobre como a realidade à sua volta funcionava. Aos seus olhos, o simples ato de fazer um chá se tornara algo complexo e carregado de princípios elementares. No entanto, à medida que os dias passavam, o brilho em seus olhos desaparecia, visto que já não se impressionava tanto com as descobertas. Em vez disso, todo o glamour da pesquisa havia sido substituído pela pressão por resultados. A cobrança não vinha apenas de terceiros, Ethan começava a sentir que ruiria caso não conseguisse alguma reparação por todas aquelas mortes. E foi em meio a toda essa pressão que suas alucinações começaram. Não importava para onde olhava, tudo o que conseguia ver eram os rostos de todas aquelas jovens. Em um julgamento silencioso, elas o encaravam, sem ao menos dizer uma única palavra.
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Essa merda nunca vai acabar, não é? Mesmo se resolvermos esse caso, eu… sinto que essa sombra… nunca vai me deixar. — Em uma das várias madrugadas que passava em claro ao lado de Denji, perdidos em palavras infindáveis, Ethan colocava toda sua vida em perspectiva. Além disso, o gesto mostrava a estiva que o Hattori havia adquirido pelo parceiro. No início, os dois não se suportavam, por vezes trocando olhares desdenhosos. Mas o tempo, como sempre, conseguiu mudar o pensamento de ambos. Eles conheciam o pior lado um do outro, suas fraquezas e dificuldades, e isso tinha sido capaz de aproximá-los. Nunca admitiriam o fato abertamente, mas o sentimento era reciproco.
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Você está certo. Lembro do meu primeiro caso aqui como se fosse ontem. É... depois daquilo nunca mais fui o mesmo. Gostando ou não do preço que esse trabalho cobra, tudo que você precisa fazer é tentar encontrar uma forma de continuar vivendo, mesmo com todas essas merdas, pois garanto que esse sentimento nunca vai desaparecer. Pode tentar se lavar quantas vezes quiser, sempre que se olhar no espelho perceberá que não tem nada que possa fazer. Tudo sempre continua intocado.—
MERDA! É ISSO, DENJI! — Foi também nesse dia que Ethan resolveu o caso, aquela última frase foi o
(clichê) detalhe imperceptível que mudou tudo. —
“Tudo continua intocado”, essa é a fantasia que ele tenta recriar. A princípio, todos pensaram que a forma como ele as arrumava e montava a cena do crime era o fetiche dele, a representação mais sórdida que o desgraçado idealizava no seu inconsciente. Mas e se enxergamos isso do jeito errado? Por acaso nunca percebeu como as vítimas estavam conservadas, mesmo depois de tantos dias? — Quando o frenesi em sua mente atingiu um nível insuportável, ele começou a correr de um lado para outro, revisando cada detalhe que comprovava sua hipótese.
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Ethan, me escuta. Não tem como ser isso. Forçar uma narrativa para levar a investigação para onde você quer não vai adiantar. É perda de tempo.—
Como você não percebe?! Os produtos químicos transportados durante anos, e que simplesmente sumiram, nunca fizeram sentido. Você sabe que nós dois tentamos encontrar uma explicação, algo que ligasse eles aos assassinatos e às representações, mas falhamos todas às vezes. Agora, pela primeira vez, temos uma explicação que conecta todos os pontos. — Apesar das tentativas do mais velho, Ethan continuava irredutível.
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Se está tão certo disso, e quanto a você? Por que encontramos o seu nome e sua foto com a última vítima? — perguntou Denji, tentando alcançar o Hattori enquanto o mesmo ia de um lado para o outro.
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Ainda não sei qual meu envolvimento com ele, mas vou descobrir.—
Como assim?—
Estou indo atrás dele, e garanto que isto acaba hoje. — Ethan então deu um passo em direção à porta.
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Sem chance, não é como se eu fosse deixar você fazer o que quiser. Antes de mais nada, não se esqueça que esse caso é da Seção 09. Vamos esperar até amanhã, até a Major e o Capitão chegarem. — Em reposta, Denji rompeu a distância que o separava da porta em um instante. Àquela altura, já tinha decidido fazer o que fosse preciso para pará-lo.
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Denji, lembra o que a Major disse no dia em que nos conhecemos? Vocês nunca chegaram a me prender aqui, eu que escolhi ficar. — Após deixar um sorriso pesaroso escapar, Ethan se desculpou mentalmente com o parceiro e saltou pelo espaço-tempo, reaparecendo diante do hospital do vilarejo.
Na conclusão da técnica, enquanto rumava para o oeste, o Hattori foi invadido por memórias remotas, que até então nunca foram importantes o suficiente para terem sua atenção. Há cerca de dois anos, Ethan, um recém-formado na academia, tinha sido designado para uma missão de escolta. “O cliente atuava como pesquisador em uma companhia de renome, algo relacionado a melhorias na fórmula do carro chefe da empresa”, informaram na época.
Como ordenado, ele acompanhou o homem de meia-idade, com cabelo lambido, óculos redondos e bochechas coradas por uma viagem pelo país. Na ocasião, seu eu mais jovem não se importou nenhum pouco com o sujeito, mal dirigindo a palavra a ele e ignorando quaisquer brechas para entender um pouco mais sobre seu trabalho. O homem até tentou dialogar com o Hattori algumas vezes, mas todas as investidas eram recebidas com respostas vagas e curtas. Na época, Ethan nunca imaginou que aquele havia sido o seu maior erro. O caso era que muitas pessoas influentes estavam dispostas a matar para conseguir as pesquisas do mesmo, e foi exatamente o que tentaram.
Nesse dia, Ethan lutou como nunca. Ainda sem dominar plenamente sua Kekkei Genkai, e em menor número, tudo que pôde fazer foi cobrir seu corpo com uma camada despretensiosa de cristais de gelo e correr na direção dos adversários com uma Kunai em mãos. Era verdade que Ethan não era habilidoso, mas ele compensava todas as deficiências shinobi com sua teimosia. Os inimigos o acertaram duas, três, quatro vezes, porém, independente dos danos sofridos, ele continuava refazendo a armadura translucida. No fim, alguns fugiram pronunciando a palavra “demônio” sem parar, enquanto outros simplesmente caíam inconscientes no chão.
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Há quanto tempo, Dr. Kanou — disse Ethan após invadir o galpão no qual o cientista trabalhava. —
Parece que foi ontem quando o senhor me procurou na academia ninja. O estranho é que nunca soube o porquê dos agradecimentos, e muito menos soube o motivo por trás do “em breve todos poderão ser iguais a você”. A propósito, recebi a mensagem que mandou com a Yumi, e agora vim retribuir a gentileza. — A mão do Hattori repousou sobre a empunhadura da Kusanagi. Em um piscar de olhos, o fio da lâmina estava apontado para o homem.
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Não entende, Ethan? Já está feito, e me matar não mudará absolutamente nada. — Ajeitou os óculos com o dedo indicador. —
Se você está aqui, então quer dizer que perdi a aposta. Sabe, eu mesmo não acreditei quando o “Joker” disse que seu eu envolvesse você em tudo isso, acabaria sendo pego. Enfim, se me dá licença, preciso fazer as malas. Ethan! Cadê seus modos, temos um convidado especial? — Assim que a ordem foi dada, de um canto escuro do galpão uma criatura gigantesca que atendia pelo nome Ethan emergiu.
Mesmo com o surgimento do monstro criado pelo cientista, Ethan não alterou seu foco, ignoraria tudo e todos para alcançar Kanou. No entanto, quando estava prestes a dar seu primeiro passo uma sensação desagradável percorreu seu corpo. Ele tinha medo, e mesmo não o nutrindo por vontade própria, seu corpo reagia de acordo. A cada passo do gigante, o chão tremia, e o medo se intensificava; Ethan nem mesmo conseguia respirar. Contudo, ao ter um vislumbre de todos aqueles rostos que o perseguiram durante as investigações, sua ira manifestou-se por meio de um brado. Com isso, cada uma das amarras invisíveis que o envolviam cederam. A tensão posta em seus músculos era aparente, mas mesmo assim Ethan teve forças para envolver seu corpo com uma camada fina de cristais de gelo e para avançar, patinando no chão concretado, buscando alcançar o cientista.
O monstro, entretanto, não deixaria o garoto fazer o que bem entendesse. Ao passo que o Jounin patinava pelo lado oposto, ele o acompanhava. Copiava seus movimentos, replicando até mesmo a forma como seus braços se moviam durante o deslizar. E quando Ethan se deu conta, era obrigado a permanecer na defensiva, utilizando a espada imbuída em chakra para aparar as investidas do outro. A situação se prolongou por cinco minutos, onde não importava as artimanhas usadas pelo Hattori, a criatura colossal sempre conseguia se desvencilhar das armadilhas e truques. As lanças gélidas perfuraram seus pontos vitais, o frio corria pela sua carne, mas ele se mostrava imune aos efeitos da Kekkei Genkai gélida; havia sido criado justamente para isso: ser um reflexo do potencial que Ethan Hattori um dia já demonstrou.
Após incontáveis falhas, Ethan sentiu que seu tempo estava se esgotando, em breve o cansaço acabaria se provando seu maior inimigo. Diante disso, em uma investida suicida contra o colosso, ele não fez mais questão de aparar quaisquer golpes, apenas seguiu em frente. No último instante, no entanto, conseguiria flexionar os joelhos e sair da trajetória do cruzado de direita que visava arrancar sua cabeça. Sem nada para impedi-lo, posicionou-se entre as pernas do gigante e tocou sua perna esquerda, fazendo com que o chakra frio fluísse por todo o membro.
Independente do sucesso em acabar com a habilidade do outro de se mover, o Hattori voltou a ignorá-lo. Assim, todo seu ódio era destinado à figura do cientista. Porém, esse foi o último erro que se permitiu cometer, uma vez que não esperava que seu clone também conseguia esticar os braços, como se eles fossem feitos de borracha. Logo, não demorou muito até aquelas mãos enormes o envolverem, em um aperto que pretendia esmagar cada osso do seu corpo.
O Dr. Kanou não tinha tempo para acompanhar de perto o confronto entre os dois, já que estava preocupado demais em conseguir levar o máximo de coisas que braços franzinos aguentavam. Mas por um instante, ao ouvir os gritos ensandecidos do Hattori, desviou o olhar brevemente. Foi nesse momento que ninjas e investigadores invadiram o galpão — todos liderados pela Major. Por fim, com um sorriso no rosto, levantou as mãos e se entregou.
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Ethan! Acaba com ele agora! — Em um último esforço, o cientista daria a ordem derradeira para sua criação.
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Sem chance. Sou eu que vou matar esse idiota — dentre as dezenas de ninjas, a voz de Denji ecoou. Ele estava tão sério quanto no dia em que ele e Ethan se conheceram. Então, ao levantar as mãos e apontá-las na direção do gigante, ele fez com que o algoz fosse reduzido a uma poça de sangue. Primeiro a pele do clone começou a borbulhar, como se estivesse fervendo. Depois, seus olhos saltaram e respingos de sangue/vísceras sujaram todos que estavam em volta.
Nos dias seguintes, a força tarefa dedicada a decifrar os experimentos de Kanou trabalhava incansavelmente, e ao lado deles a Seção 09 tentava desembolar a teia de conspirações que possibilitaram os experimentos do homem. Contudo, Ethan já não agia mais ao lado deles — na época, ainda estava internado no hospital. Para ele, os dias não contavam mais com toda aquela agitação do quartel-general. Ainda assim, vez ou outra, recebia algumas visitas de Yudi e Denji, sendo constantemente informado sobre o progresso que a operação de codinome “XIIV” fazia. E por fim, quando estava pronto para receber alta, deixava boa parte daquilo para trás, seguindo o conselho do parceiro e tentando encontrar uma forma de conviver com toda aquela merda que acontecera.