Debaixo de um sol escaldante de verão, sendo duramente castigado pelo clima infernal do país, Ethan seguia uma criança pelas ruas do vilarejo. Em meio a cochichos e cheiros fortes vindos de todas as partes, encarava fixamente as costas do garoto, enquanto percebia o fluxo intenso de pessoas que não paravam de se esbarrar, forçando sua passagem pela multidão. O mais novo, até o momento, não havia se virado, apenas continuava a seguir em frente, mantendo um bastão de madeira apoiado na destra. Imponente, mantinha uma postura orgulhosa durante as passadas, onde, vez ou outra, acertava com a arma aqueles que cruzavam o seu caminho, dotado de uma fúria atípica. No entanto, mesmo não flagrando o seu rosto, Ethan podia criar uma imagem clara dele pelos detalhes a disposição. Notava que o garoto usava roupas velhas e encardidas, que exalavam um cheiro terrível. Da mesma forma, notava vários hematomas em seus braços e pernas. Talvez isso explicasse o fato dele não parrar de mancar, o Hattori concluiu.

Depois de uma tarde inteira no encalço da criança, percorrendo os principais centros populosos de Iwagakure, como em uma excursão, Ethan se viu em um parque que ficava localizado perto de uma área residencial. Lá, bem no centro do local, flagrou pela primeira vez o rosto do menor. Ainda assim, mesmo após várias horas, não entendia o porquê de segui-lo para todos os lados. Parando para pensar, o Hattori percebeu que não conseguia se lembrar de nada que ocorrera nas últimas semanas. Quando se deu conta, já estava seguindo aquela criança franzina, sem qualquer motivo para tal. Porém, parte das suas dúvidas seriam dissolvidas no momento em que percebesse que o garoto era uma versão sua mais jovem, provavelmente, tendo por volta dos seus 9 anos.


— Quem é você? — Ethan gritou. Sua voz fora forte o suficiente para abalar a estrutura daquela realidade, causado pequenos tremores em todo o mundo. Porém, ninguém pareceu se importar com isso, apenas continuavam vivendo suas vidas como se nada tivesse acontecido.

— Não se lembra? Você me chamou até aqui. Já se esqueceu que estamos doentes? — em um piscar de olhos, a criança desapareceu e reapareceu do lado de Ethan, segurando a sua mão. — É melhor nos apressarmos, temos muitos lugares para visitar. — Voltou a puxá-lo pelo braço, com uma inquietação expressiva.

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Ao passo que consentia com a ideia de seguir o garoto, bastou apenas um passo para que Ethan fosse teletransportado para um lugar completamente diferente, mas, ao mesmo tempo, familiar. De uma hora para outra, a dupla se viu diante de um casebre humilde localizado na periferia do vilarejo, com uma luz amarelada escapando por entre as duas únicas janelas. Entretanto, aquilo não era tudo. Além do suposto teletransporte, que superava, e muito, o Jikūkan Ninjutsu utilizado pelo Hattori, era como se eles tivessem saltado no tempo, indo de um final de tarde abafado para uma madrugada chuvosa. A chuva, por sua vez, também não era comum; era composta por lama, e só. Em um fluxo interminável, formava um rio enlameado nas ruas desertas, ao mesmo tempo que manchava as vestes do Jounin.

— Sabe onde estamos, Ethan? — a criança perguntou, limpando o rosto coberto de lama.

— Sim, eu sei, Ethan. Foi há muito tempo, mas me lembro bem do dia em que fugi daqui. Também chovia muito e me sujei todo. Ainda me lembro de sentir raiva, porém, estava igualmente assustado, sem saber para onde ir — prontamente a versão mais velha respondeu. Diferente do seu eu mais jovem, não fazia questão de limpar o rosto, permitindo que as impurezas se acumulassem.

— Que estranho, não consigo me lembrar por qual motivo fiz isso. Tínhamos uma cama quente, três refeições por dia e um teto sobre nossas cabeças. Isso faz algum sentido para você? Juro que estou tentando entender, mas está tão frio que não consigo me concentrar — o garoto questionou, ainda em um esforço inútil de limpar o rosto.

— A mamãe não estava lá, por isso. Acho que pensei que poderia encontrá-la caso saísse dessa prisão. Também estava com raiva. Não é como se fosse aceitar esmolas de alguém que cuidava de mim só por causa de uma dívida idiota com os meus pais.

Ao fim das perguntas do garoto curioso, a chuva se intensificou, engolfando todo o cenário. As bases das casas cederam e tudo foi empurrado pela lama. No entanto, o silêncio continuava acompanhando o gotejar da chuva; da mesma forma que não havia pessoas pelas ruas, também não havia nas casas. Os dois, então, apreciaram a destruição desencadeada pelo fenômeno natural. — Você mencionou que estava com raiva naquele dia, correto? Depois disso, a raiva passou? Paramos de odiar tudo o que estava diante dos nossos olhos, culpando-os por tudo de ruim que acontecia no mundo? — A resposta não veio e de novo eles foram engolidos por um vórtice.

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Na conclusão do teletransporte, a dupla estava agora em um beco. Nele, era possível ouvir gritos e xingamentos. E, assim como outrora, o clima se transformou de repente, onde a chuva cedeu lugar para uma tarde ensolarada. Por fim, antes de seguirem os gritos, ambos perceberam que já não estavam mais cobertos de lama, desta vez, o suor enxarcava as suas roupas e um filete de sangue escorria por seus narizes, simultaneamente.

Ainda segurando a mão da criança, Ethan não precisou caminhar muito para se deparar com a fonte de todo o barulho que sua audição apurada podia captar. Por algum motivo que a dupla desconhecia, alguns garotos estavam brigando naquele corredor urbano. Em volta, um grupo de jovens na mesma faixa etária assistia o desenrolar do confronto. De um lado, havia um garoto rechonchudo com golpes lentos e pesados, tentando agarrar o adversário e espremê-lo. O seu oponente, por outro lado, era um garoto franzino com um olhar penetrante. Aquele olhar desesperançado era inconfundível, nenhuma outra criança na vila tinha um olhar tão intenso quanto o de Ethan. Olhos que buscavam força. Olhos transbordando de ódio e sede de sangue. Naquele momento, enquanto apanhava de um garoto mais velho, amaldiçoava o mundo inteiro com aquele mesmo olhar. O sangue e a dor que vinham em resposta apenas nutriam o poder contido em seus olhos.

— Você mencionou que estava com raiva naquele dia, correto? Depois disso, a raiva passou? Paramos de odiar tudo o que estava diante dos nossos olhos, culpando-os por tudo de ruim que acontecia no mundo? — A criança ao lado de Ethan, preocupava com seu futuro, voltou a repetir a pergunta. Contudo, assim como da última vez, eles foram sugados para um portal antes que a resposta viesse.

Após a última lembrança, foram enviados para diversos momentos significativos da vida do Hattori. Visitaram a primeira vez que Ethan havia se metido em uma briga; a primeira vez que precisou roubar para ter o que comer; a primeira vez que foi enganado por alguns vigaristas locais. Como em uma espécie de julgamento, era obrigado a reviver os momentos mais difíceis da sua vida, enquanto encarava seus maiores erros, aqueles que tentou enterrar há muito. A versão mais jovem de Ethan, por sua vez, tendo a voz silenciada diversas vezes pelo vórtice que surgia repentinamente, continuava tentando obter a resposta que lhe traria um pouco de conforto.

— Você mencionou que estava com raiva naquele dia, correto? Depois disso, a raiva passou? Paramos de odiar tudo o que estava diante dos nossos olhos, culpando-os por tudo de ruim que acontecia no mundo? — conforme o seu estado de saúde piorava, com o sangue escorrendo aos montes pelo nariz, e o tossindo na mesma proporção, insistia.

No fim, a dupla foi teletransportada uma última vez pelo vórtice singular, sendo enviados para um local desprovido de luz. O chão sob seus pés e as silhuetas dos prédios de cabeça para baixo no horizonte eram compostos por uma lama escura e viscosa. Ethan olhou para os pés, tentando dar um passo adiante, mas estava preso. Foi nesse momento que percebeu que aquela massa estava sendo gerada a partir das solas dos seus pés, da mesma forma que as marcas da maldição intricadas na substância gosmenta. Em meio as suas observações acerca do caso, o Hattori, enfim, deu ouvidos à pergunta feita pelo seu eu mais jovem.

— Bom… — Quando Ethan estava prestes a destruir as esperanças daquela criança, pondo um fim à sua inocência, foi interrompido pelo mesmo.

— Você mencionou que estava com raiva naquele dia, correto? Depois disso, a raiva passou? Paramos de odiar tudo o que estava diante dos nossos olhos, culpando-os por tudo de ruim que acontecia no mundo? Por favor, me diz que ainda temos salvação? — O mesmo questionamento de antes foi feito, porém, sua voz não possuía mais aquele tom inofensivo e envergonhado. Desta vez, soava como se sua voz fosse a junção de mil outras vozes em uníssono. O tom grave, por outro lado, só não era mais forte do que o aperto que imprimia na destra de Ethan, quase conseguindo destruir completamente o membro. Mas o aperto também não o impediu de alçar voo com a ajuda de um vórtice lamacento, enquanto os olhos brilhavam e a gosma preta saltava pelas órbitas, liquefazendo-os.

Quando as emoções de Ethan alcançaram seu ápice ao vislumbrar o seu eu mais jovem daquela forma, ele entendeu finalmente o que todas as memórias de antes queriam dizer. Tudo dizia respeito àquela massa de ódio que nutriu durante toda a vida, enquanto acreditava que o sentimento traria algum significado para o abando e, consequentemente, para o caos que sua vida se tornara. Mesmo relutante, entendia que o que acontecia com a criança já aconteceu com ele um dia. Há tempos, enquanto vivenciava o pior que a solidão tinha a oferecer, havia aprendido a usar o vórtice de sentimentos destrutivos como mecanismo de defesa, tal como a versão mais jovem acabava de fazer, sendo envolvido por uma esfera negra, perdendo qualquer senso de perspectiva. A partir desse momento, entendia que cada escolha que tomou o levou até aquele momento. Todas as brigas acabaram o levando a se tornar um ninja. O sentimento de inferioridade o levou a buscar poder e controle. As missões e as mortes o afundaram ainda mais na escuridão. O trauma em Wokka o levou ao fundo do poço, onde recorreu a meios nefastos para conseguir poder, ao mesmo tempo que se punia. Então, a busca por poder foi o pivô para que encontrasse o equilíbrio e a aceitação. Por último, veio a doença que tirou toda sua esperança.

— Sim, você vai conseguir se livrar de toda essa raiva um dia. Não será uma tarefa fácil, exigirá mais do que está disposto a abdicar, mas conseguirá. Então se prepare para errar e para se sentir um lixo. Se acostume com a dor, pois ela será uma amiga inestimável. Aproveite os momentos felizes, já que esses serão escassos. E viva como se não houvesse amanhã, sem arrependimentos. Pode achar engraçado se quiser, mas, no fim, vai chegar o dia em que uma criança vai te ajudar a perceber que você foi um idiota, e vai ser ela que vai te mostrar que existe uma saída, um modo de viver além desse ódio — antes de acordar em um leito de hospital, tendo passado por uma metamorfose física e espiritual, Ethan respondeu.

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