Sinto-o em mim, arfou. Sua testa estava ensopada de suor, seu fôlego o abandonando. Levou a mão à bochecha: nada. A fraca chama da vela bruxuleava suas sombras naquele pequeno cubículo, mas não havia nenhuma mancha de sangue em seus dedos. Acalme-se, obrigou-se.

Naquele pequeno quartinho abafado, abarrotado entre caixotes exalando aromas exóticos de especiarias, Naritoshi retornava de sua missão em Sunagakure. Como era de se esperar, dormir não era fácil. Uma imagem violenta vinha-lhe à tona: a morte de Kira. Fechava os olhos e a cena brutal do garoto de cabelos brancos o visitava. Levou a mão ao rosto de novo, aonde um esguicho do sangue do rapaz o pincelou. Nada. Havia se lavado violentamente nas águas do rio antes de pegar carona naquela embarcação mercantil; esfregou-se de forma tão brusca que podia sentir o rosto ardendo. Mesmo ali, horas depois, ainda sentia o sangue nele.

Mal o conheci. Não se lembrava sequer de ter trocado palavras significativas com o garoto. A única afinidade que tinham era a idade, os dois mais jovens daquela missão, cercados por shinobis mais experientes. Então porque não consigo parar de pensar nisso? Sabia a resposta. Jamais havia presenciado a morte de frente daquela forma. Ainda mais com tanta brutalidade. Angustiado, Naritoshi sabia que Kira e o Rei Vampiro seriam alimento para seus pesadelos por muito tempo.

Preciso espairecer, concluiu, e decidiu abandonar aquela dispensa abafada. Tão logo saiu, foi abraçado pelo frio noturno do alto mar. Casa. O cheio salgado e úmido lhe era muito mais característico que a paisagem desértica de outrora. Uma garoa fraca também ajudava a refrescar. Seu vício em água o chamava: sem muito pudor, Naritoshi abriu a boca para cima e bebeu um pouco da chuva. O amargor lhe era convidativo. O calor definitivamente não lhe aprazia. Graças à sua imunidade baixa, era corriqueiro sofrer leves desmaios durante as incomuns ondas de calor em seu vilarejo. Felizmente, nada assim lhe ocorreu durante a missão. Ainda assim, foi inutilizado de outras formas... Kira. Abanou o pensamento para longe.

Já devia ser madrugada, mas o convés da embarcação estava salpicado por algumas figuras. Talvez sintam tranquilidade no mar assim como eu. O balançar das ondas mesclado ao breu noturno eram curiosamente apaziguadores para Naritoshi. Não podia admirar com tanta fixação, entretanto, já que enjoava com facilidade — um detalhe igualmente cômico e trágico, dado o clã a qual pertencia. Ali, entre ele, notou: alguns marinheiros cantarolando canções do mar; alguns bêbados aqui e ali; e funcionários da tripulação carregando caixotes mesmo tão tarde da noite. Piratas, assentiu.

Não tinha tido bons momentos de interação na viagem de ida, afinal era uma criança franzina cuja bandana amarrada no pescoço pouco significava alguma coisa. O capitão quase não lhe deixara subir, mesmo com Naritoshi apresentando o pergaminho que comprovava sua missão e sua disponibilidade de ir em qualquer lugar. Talvez devesse pensar que, caso o Genin morresse — o que deveria parecer muito provável —, seria mais problema para lidar. Por fim, Naritoshi conseguiu sua carona, adquirindo também inúmeros olhares mal encarados e risinhos debochados de todos aqueles adultos. "Vê se não morre pra não me arranjar problema, moleque", o capitão lhe disse, confirmando suas suspeitas.

Passeou pelo convés sendo evolvido pela canção do mar, tanto a natural quanto a desafinada pelo marinheiro. Todavia, uma delas se sobressaiu; um dos bêbados agora se aventurava debruçando-se pela murada. Brandia a garrafa contra o mar, derramando a bebida e uivando uma música desconexa. Se continuar assim, vai cair. Tal qual tivesse recebido uma visão profética, foi exatamente isso que se seguiu: após um balançar do navio com a quebra de ondas, a cantoria do bêbado foi interrompida por um berro seguida do desequilíbrio trôpego do mesmo. Poucos instantes depois, ouviu-se o som de queda d'água.

Uma aglomeração pequena se formou ao redor da murada, muitas pessoas dando risada. Naturalmente, Naritoshi aproximou-se para olhar. O velho debatia-se freneticamente enquanto o navio afastava-se devagar. Está se afogando?, questionou. A dúvida logo foi comprovada, quanto mais assistia: estava. Não vão ajudá-lo?

"Joga uma boia pra ele", berrou um tripulante do alto do paio do mastro. Ali embaixo, dois outros apenas se entreolharam e deram de ombros. Naritoshi percebeu com certo terror que a aglomeração estava se dissipando, cada um voltando pros seus afazeres; o marinheiro cantor já se preparava para iniciar a próxima música. Naritoshi olhou para baixo: o velho parecia com mais dificuldade ainda para se manter submerso.

O Genin aproximou-se de um tripulante, cutucando-o o no braço. "O-onde está a boia, moço? Ele vai morrer!" O homem olhou-o com surpresa, como se só então tivesse o notado ali. Sua expressão tornou-se raivosa e deu um forte empurrão em Naritoshi, empurrando-o no chão. "Cala a boca, moleque."

Chocado, Naritoshi se debruçou até a murada. Só era possível ver as mãos do velho, lutando em busca de se erguer, lutando por ar.

Kira.

Um selo veio em sua mente, e tão logo formou-se nas mãos: Tigre. Simples assim, Naritoshi se lançou ao mar.

O Suijō Hokō Jutsu o permitiu manter-se de pé nas águas, e assim correu até o velho. Apenas alguns dedos se sobrepujavam para fora do mar; Naritoshi agarrou-o com força e o ergueu para cima. O bêbado subiu arfando em plenos pulmões, seguindo de uma tosse violenta. Naritoshi passou seu braço ao redor do pescoço e começou a caminhar em direção ao navio. Era uma tarefa tortuosa, entretanto, pois estava ali segurando o peso de dois, sendo o velho muito mais voluptuoso que seu corpo franzino. Ainda assim, marchou. Curiosamente, sentiu certa facilidade na distribuição de chakra entre os pés. Do alto da murada, notou os olhares incrédulos da tripulação. Ah, agora finalmente haviam lançado uma corda conforme se aproximavam. Naritoshi permitiu que o idoso fosse primeiro, auxiliando a amarrar a corda em sua cintura — meio desajeitado, pois ainda precisava mantê-los sob as águas. Toda a questão durou bons minutos. Naritoshi podia sentir seu chakra esvaindo-se quanto mais demoravam.

Chegou sua vez de subir, finalmente. Subiu pela murada e foi recebido, inesperadamente por uivos e exclamações dos marinheiros. Sentiu suas bochechas corarem e não pôde fazer muito além de sorrir. Quando pisou no convés, dando fim à técnica, deixou-se deitar no chão, suspirando. Em meio aos rostos que o cercavam, notou a figura do capitão entre eles.

"Não arranjei problemas", disse ao homem.

Sem esperar a resposta, apenas fechou os olhos e sorriu de novo.

Sem perder ninguém, dessa vez.