A névoa abraçava meu corpo assim como a escuridão da noite invadia as vielas enegrecidas. Em um dia específico de cada semana, era relacionado para fazer a ronda noturno e, nesse dia, não foi diferente. Não gostava muito, meus hábitos diurnos temiam que me acostumasse em trocar o dia pela noite.

Estava tudo calmo, alguns comerciantes chegavam ao portão principal com intenção de venderem seus produtos na feira que começa no raiar do dia. Meu trabalho era inspecionar as mercadorias, catalogá-las, além de verificar se os documentos batiam com as autorizações apresentadas pelos comerciantes. Longe de ser um trabalho difícil, às vezes, até mesmo monótono.

—— Pode prosseguir. —— Terminei de inspecionar os diversos tipos de peixes que o velho careca e barbudo carregava sobre uma pequena caçamba de madeira. Ele sorriu como forma de agradecimento, enquanto levei a destra sobre a hip-pouch, buscando uma folha de coca para aliviar meu vício. Com certeza não gostava desse tipo de serviço. Mil vezes ir para uma missão de vida ou morte do que ficar responsável por autorizar a ida e vinda de comerciantes e afins. Que droga! Pensei comigo mesmo, com um semblante nada agradável sobre minha face.

A noite continuou calma, um ou outro visitante sendo obrigado a dar meia volta por conta de documentos irregulares, até que, observando o meu entorno, julguei ver uma sombra estranha, de um homem completamente coberto por um manto enegrecido, com somente o rosto amostra. Um rosto familiar, único. Larguei a prancheta com as informações da comerciante que esperava minha confirmação, de forma natural, sem sequer pensar nas consequências.

Os outros militares me olharam com preocupação e, conforme corria na direção do homem de sobretudo enegrecido, ordenei. —— Preciso resolver uma coisa. Vocês já sabem o que fazer aí, não se preocupem comigo. —— orientei aqueles que estavam sob minha supervisão. Eles consentiram com a cabeça, mesmo não entendendo o que estava acontecendo. Ninguém entenderia, afinal. Se estivesse certo e não sob efeito de uma ilusão, se tratava de assuntos familiares, a muito tempo esquecidos.

—— Se eu conheço bem esse merda, deve ter ido até aquele galpão… —— sussurrei correndo, mantendo velocidade moderada, em direção ao reduto industrial do vilarejo, mais especificamente em um galpão a cerca de dez anos abandonado. Era onde eu e ele treinávamos quando era apenas uma criança ranhenta.

—— Dessa vez eu vou te matar, filho da puta. —— meu semblante representava todo o ódio preso em meu âmago, a muitos anos reprimido. Com as sobrancelhas arqueadas levemente para baixo, os dentes cerrados, punhos semicerrados, com o olhar fixo na fachada do imenso galpão.

Podia ser uma armadilha, como também uma ilusão, entretanto, tudo parecia muito real. A raiva tomava conta da razão, fazendo com que me movesse rapidamente na direção da única entrada do galpão. De frente pra colossal porta dupla feita de metal, minha primeira intenção seria dar um soco, visando quebra-lá, mas não era um mutante qualquer ou mestre em Taijutsu para fazer de forma tão fácil e precisa. Esse, com certeza, não era meu estilo e, apesar do ódio exalado de meu corpo, respirei fundo pelo menos três ou quatro vezes, de frente pra grande construção, tentando analisar alguma entrada secundária, principalmente por conta da degradação ocorrida pelo tempo.

A sensação de estar sendo observado pelas incontáveis janelas de vidro me faziam ter certo calafrio e até mesmo hesitar, com um misto de raiva e medo. Não sabia ao certo controlar as emoções a esse ponto, não contra meu pai.

—— Shi, seu maldito! —— gritei aos quatro ventos, esperando que ele pudesse escutar enquanto praguejava sua morte. Não me importava com nossos laços sanguíneos. Tudo o que ele me fez passar, ou até mesmo minha mãe. Os incontáveis dias que ela precisou trabalhar para me criar, ser submetida a todo tipo de serviço a que qualquer outro lixo sequer se submeteria.

—— Você fez de nossas vidas um inferno… retribuirei na mesma moeda, pode ter certeza. —— rogue mais algumas pragas a ele, sem sequer saber se estava me escutando, apesar de ter a sensação de que sim, ele me observava e conseguia escutar com precisão.

Juntei uma quantidade ínfima de chakra, principalmente em meus pulmões, sentindo o fogo esquentar meu âmago. Cuspi a massa alaranjada pela boca, vendo ela tomar forma de uma rajada contínua, atingindo a porta dupla de metal. Só parei de conjurar a manipulação de Katon quando a entrada finalmente estivesse aberta, à força. O fogo começava a se desfazer graças ao vento e a temperatura baixa do vilarejo, principalmente à noite.

Tomei cuidado ao entrar no galpão, para não ser queimado pelos resquícios do fogo e, obviamente, para não ser pego de surpresa pelo homem. Observei a parte de dentro, olhando para todos os lados. Pilastras firmes faziam com que o teto permanecesse de pé, mesmo após tantos anos sem ser utilizado. Meus olhos afiados buscavam apenas uma presa e, no topo do primeiro andar, notava-se o corpo do homem que jurei matar quando encontrasse de novo, ainda quando criança.

A escuridão invadiu minha mente. Já não pensava mais antes de agir. Parti irracionalmente na direção dele, com um semblante irreconhecível. Nem mesmo contra o loiro, em Kumogakure no Sato, havia sentido tanto ódio como agora. Ele mantinha um sorriso característico. O mesmo de quando cortou meu rosto e deixou a cicatriz firmada em minha pele.

—— Nunca esquecer dos motivos d’eu ter vindo a este mundo? Me poupe, filho da puta. —— disse conforme levei a dresta até as marcas do passado em minha face. No centro do hall de entrada do galpão, julgando estar a cerca de quinze ou vinte metros de distância dele, como uns cinco de altura, retirei com a canhota uma única shuirken e, após isso, realizei os selos característicos do Shuriken Kage Bunshin no Jutsu, conforme lançava a arma básica, criando incontáveis réplicas dela. O homem permanecia estático, gargalhando, o que fazia com que eu olhasse com ainda mais ódio na direção dele, percebendo meu chakra fluir sobre meu corpo com ainda mais intensidade, potencializando um pouco a técnica que tanto utilizei em missões anteriores.

As armas viajaram até o homem, cortando o ar à sua volta, ficando cravadas em toda a escada, e plataforma de madeira em que ele se encontrava. As que estavam próximas de se cravarem na pele do homem, foram redirecionadas por, aparentemente, chakra puro, como uma barreira invisível a olho nú. Olhei incrédulo. Não imaginava que Shi pudesse ter tamanho poder, apesar de ser muito mais experiente que eu.

—— Parece que você cresceu, pequeno Rekken. E não digo só em tamanho… foi uma boa utilização, entretanto, esse ódio infundado acabou prejudicando a técnica. Ter ódio é bom, mas não saber como utilizá-lo a seu favor pode ser nocivo para qualquer idiota. —— sua voz perfurou meus ouvidos como um soco no estômago. Tinha certa verdade em suas explicações. O ódio me fez errar a mira, mas não só isso, fez com que a criação desenfreada por conta de mais aplicação de chakra do que o habitual na técnica fizesse ela perder força e fosse facilmente repelida.

Um sorriso amarelado brotou em minha face, conforme flexionava ambos os joelhos, levemente, quase que imperceptível, pronto para uma resposta de meu pai. Ele balançou a cabeça de forma negativa.

—— Nunca atacaria uma cria minha… bem, talvez uma ou outra vez eu tenha feito isso. —— ele apontou em direção a marca que havia deixado em minha pele a muitos anos atrás. —— Não se irrite. Vim ver você, como cresceu e no que anda fazendo. Vejo que se tornou um ninja respeitável… precisa melhorar, evoluir, ainda assim, se tornou uma sombra do que fui no passado. Um tolo preso ao sistema. —— a gargalhada dele me fez ficar ainda mais enfurecido. Talvez esse fosse o verdadeiro propósito dele, fazer com que eu perdesse o controle.  

Respirei algumas vezes de forma descontrolada, tentando manter um ritmo conforme respirava mais e mais vezes. Quando me acalmei um pouco, ainda sem tirar os olhos de meu pai, peguei uma folha de coca da minha hip-pouch, mordendo ela e sentindo meu vício me acalmar à medida que sentia seus efeitos pulsando em meu sangue. Percebi que Shi olhou com uma cara estranha, meio incrédulo com o que estava vendo.

—— O que? Achou que tudo o que você fez não traria sequelas? Isso aqui é só uma forma de me manter um pouco mais calmo, esquecer o passado. Bom… sua estratégia de me levar ao extremo, tirando minha concentração não vai mais funcionar. Agora poderemos lutar de verdade… sinto que meu chakra está mais forte, talvez pela raiva que sinto em te ver e, com certeza, utilizarei dessa raiva para potencializar meus ataques e te matar… enterrar nosso passado de uma vez por todas e me livrar dessas amarras. —— ele manteve o mesmo sorriso de sempre, desdenhoso.

O ser desprezível se manteve estático. Não havia outra forma de confrontá-lo se não com o poder latente do sangue que herdei dele. Senti meu chakra se revirar por todo meu corpo, como se estivesse pedindo para que eu agisse e assim fiz. Não podia usar minhas técnicas de fogo em larga escala, isso era óbvio. Minha intenção era matar Shi e não causar um incêndio durante a noite, com possibilidades dele se alastrar pelo centro comercial e matar aqueles que não envolvidos na história familiar. Entretanto, não havia outra forma de atacá-lo que não com fogo e, portanto, deveria manter um controle refinado do meu chakra, como também da expansão dele, para não criar um caos desnecessário.

Acumulei chakra nos pulmões, sentindo o calor proveniente do fogo circular pelo meu corpo em consequência. Depois, cuspi uma torrente de chamas na direção de Shi, em forma de espiral, se envolvendo em toda a madeira disposta dentro do galpão, fazendo o andar em que meu pai estava ruísse, conforme ele girava no ar caindo no mesmo andar que eu. Agora, podíamos nos ver na mesma altura, frente a frente.

—— Sua manipulação ficou mais forte. Parece que aprendeu um pouco com seu velho, né? Se fortifique a partir do ódio, mas não deixe ele te dominar. Use essa força potencializada para ser letal e não atacar feito um idiota. Não te fiz pra isso. —— a gargalhada dele tomou conta do galpão que começava a ruir por conta do fogo. Ele estava certo, não podia deixar o ódio interferir nas minhas habilidades; precisava sim manter controle total sobre meu chakra, ou pelo menos um bom controle, como também potencializar o uso do ninjutsu para acima do mestrado, me tornando quase um especialista. Estava quase lá, podia sentir isso. Depois daquela aventura em Kumogakure, não me restavam dúvidas de que estava pronto para tal.  

O ar de soberania que ele me olhava fazia com que eu duvidasse dessas aptidões em ninjutsu. Eu de fato havia me tornado mais forte e estava progredindo a cada dia, muito por conta de ser um prodígio desde criança. Mas por quais motivos não conseguia acertar aquele homem? Assim como aconteceu com o loiro da Nuvem. Nada fazia efeito, nenhuma técnica e por mais que eu quisesse usar aquelas de maior escala, tinha todo o problema de estar dentro do meu vilarejo, no reduto comercial que, por mais que estivesse de noite, sofreria com o caos que minhas chamas são capazes de causar, e isso estava longe da minha vontade de proteger a Névoa que, com toda certeza, se sobressai as vontades de querer matar o verme à minha frente.

—— Quer um convite para continuar? —— seu deboche tentava me desestabilizar, entretanto, de nada tinha efeito. Já sabia da estratégia dele, me manter calmo era mais necessário do que perder a cabeça e partir para cima de Shi como um animal encurralado. Eu era o caçador, e não a presa. Pelo menos era assim que imaginava que seria.

Realizei os meus selos de outrora, aproveitando uma das minhas shurikens para replicá-la em incontáveis números, fazendo com que as pequenas armas cortassem o ar à nossa volta, rompendo a distância com facilidade. A diferença de poder para a outra utilização era notável. Principalmente pelo trato refinado no chakra que havia impregnado durante a conjuração, assim como maior facilidade em fazê-la. Dessa vez ele teve que se mexer para desviar. Ficou envolto por uma grande massa de chakra e chamas, capaz de repelir todas as armas, fazendo-as voltar na minha direção. Não tive reflexo para desviar, senti algumas delas perfurarem meu corpo de forma irrelevante.

O que veio a seguir das shurikens, me pegou completamente desprevenido. Um golpe seco em minha nuca, fazendo com que eu desmaiasse por consequência do duro golpe.