Desvaneceu-se num portal peculiar, sendo imediatamente removida do conflito vindouro. Ela retornou para o seu vilarejo incólume, como almejava. O sorriso de alívio projetou-se de seus lábios, e a risada histérica fora ouvida com estranheza pelos militares que presenciaram sua aparição repentina. Quedou a cabeça para o lado, observando de soslaio a silhueta de um dos Jōnin responsáveis pela patrulha naquele momento. Seu tom de voz era sereno, e os olhos azulados refletiam o seu cinismo nitidamente:

— [b[Não há nada para ver aqui, rapazes. Eu iria gostar mais se afastassem o olhar, sou uma mulher tímida[/b] — Allannia riu, ironizando a situação. — Perdi alguma coisa enquanto estive fora?

— Assuntos burocráticos, Tsuchikage-sama. Caso queira podemos... — O sujeito teria começo, antes de ser interrompido com um gesto brusco da Grey.

— Não estou interessada em trabalhar hoje, já fiz mais do que estou acostumada — a mulher bocejou, desconfortável com a sensação estranha que atravessava seu corpo após as suas experiências recentes.

Allannia dirigiu-se ao seu Palácio em passos largos, evitando os olhares de curiosos e alguns reclamantes que surgiam para requisitar favores ou denunciar situações controversas. Nada do que diziam importava, e nas profundezas do seu âmago, ela somente queria que um raio partisse todos ao meio. “Eu não quero saber de suas existências insignificantes, vermes patéticos. Vocês não fazem nada além de resmungar sobre suas vidas desprezíveis, pois são incapazes de resolver seus problemas por conta própria”, Allannia pensou consigo mesma, num lapso de fúria, quando abriu caminho a força pela multidão que estava sedenta por saber o que ela estaria fazendo ou seria feito a partir daquele ponto.

(...)

A água fluía em seu corpo, lavando sua alma e relaxando seus músculos. Permitiu-se mergulhar, pela primeira vez em muito tempo, por detestar o ato. A sensação de estar imersa um dia fora desagradável, mas se sentia tão imunda ao ponto de acreditar que quanto mais vezes fizesse isso, maiores seriam as chances de purificar o corpo de seus pecados. Emergiu após alguns segundos, puxando uma lufada de ar antes de encostar as costas nas bordas do ofurô, reflexiva.

— Eu não sou uma kunoichi. Nunca fui. O que eu sou, então? Os shinobi pelo menos possuem algum propósito neste mundo, mas qual o meu, de fato? Se eu me acovardei no meu único momento de significância, o que será de mim a partir de agora? — Allannia pensava que a dor de sua escolha seria fácil de lidar, mas o seu orgulho deixava um sabor amargo em seus lábios. Ela detestava se sentir mais incapaz do que realmente era, ao mesmo tempo que valorizava a vida o bastante para preferir não se arriscar.

O som do líquido cristalino escorrendo pelos seus dedos dava voz aos seus pensamentos, e a cada segundo que se passava parecia uma eternidade. Não soube mensurar quanto tempo esteve naquele estado de absoluto transe, mas quando ergueu o corpo úmido e pôs os pés fora do recipiente, ela soube que havia sido o banho mais longo de sua vida. Envolveu a silhueta em sua toalha fina e macia de linho. Os fios prateados e longos caíam ensopados em suas costas, e a sensação de frescor mantinha o corpo imerso numa sensação prazerosa. A sensação era realmente condizente com a de uma mulher que supostamente passou sete anos adormecida.

E a lembrança desagradável retornou, mais uma vez, recordando de sua maturidade atingida precocemente. Allannia Grey não desejava se sentir mais experiente ou próxima da velhice; ela se sentia na necessidade de sempre agir como apropriado de sua juventude evidente. O semblante da prateada estava eternamente condenado a exibir uma jovialidade anormal, mas mesmo que pudesse se orgulhar de não possuir o rosto marcado pelo tempo, o sentimento desconfortável não desaparecia. Mesmo que sua aparência pudesse esconder, ou que permanecesse sempre atraente e sedutora, a realidade destoava de todas as mentiras que pudessem ressoar de seus lábios.

Allannia preferiu não utilizar nenhum traje distinto em seus aposentos particulares, se isolando da mesma forma que veio ao mundo. Quando se deparava com dilemas, ela preferia remanescer solitária, e decidir o que faria a partir daquele ponto. Por longos três meses a Grey saía de seu quarto somente para se alimentar, fazer suas necessidades básicas ou limpar o corpo. Suas funções como Tsuchikage foram completamente deixadas de lado, e caso os assuntos estivessem pendentes, deixou para que seu Assistente resolvesse. “No final das contas, ele precisará governar sem mim no futuro”, refletiu, imaginando que a sua sucessão poderia estar mais próxima do que planejava.

Apesar preferir permanecer inerte, Allannia mergulhou nos livros e pergaminhos. Incapaz de compreender a si mesma e a própria sina, decidiu desbravar os mistérios do universo. A ciência se tornou parte fundamental de sua própria essência, auxiliando sua psiquê a compreender circunstâncias determinantes para o funcionamento dos ecossistemas e da própria natureza como um todo.

Estudou Química, Física, Matemática, Biologia e a Filosofia Clássica, desbravando em todos os tipos de conhecimentos que estavam em seu alcance. Ela nunca foi uma aluna genial, ou talentosa em seu ramo, mas possuía uma disposição natural para a busca incessante por aprimoramento. Quando algum assunto interessava a Sandaime Tsuchikage, ela estaria disposta a dedicar-se de corpo e alma para obter o máximo de informações sobre. As fontes de conhecimento eram limitadas para sua persona, e tampouco conseguiria mais do que aquilo a partir do próprio acervo, mas estava ciente de que sua busca não precisaria terminar a partir daquele ponto.

Rauros, sua Leoa, quase não se fez presente em sua rotina. Após recitar sobre sua fuga, a felina preferiu se abster de quaisquer opiniões. Ela estava desgostosa de quem Allannia estava se tornando, e começava a se questionar cada vez mais se era a mesma pessoa que havia tomado por amiga no passado. Na condição de uma criatura inteligente, a mascote possuía opiniões fortes acerca das condutas adotadas pela mulher que denominava Tsuchikage. Mais afeiçoado aos humanos que outrora detestava, a criatura começava a ver nos outros seres alguma importância fundamental, principalmente naqueles que asseguravam a segurança desta. Diferentemente de Allannia, Rauros possuía um bom coração. Até mesmo Raymond Hatake, o rapaz que ela detestava, não era de todo um mal para a criatura. Mas a sua suserana não parecia se importar com nenhum deles. E se ela nutria algum sentimento por alguém, ela sabia esconder muito bem.

Algo havia calejado o coração da Grey ao ponto de ela se tornar mais egoísta do que o costume. Talvez as missões constantes em busca do bem maior, algo que não a interessava, afetaram a forma dela enxergar o mundo. Remorso, matança e toda a matança do mundo provavelmente a tornaram mais dura tanto com os outros quanto si mesma. Ou, se nenhuma das hipóteses puder explicar, no fundo a índole dela era naturalmente má. O Caminho da Luz sempre brilhava para aqueles que aceitavam o amor e compaixão como máximas em suas decisões. Mas Allannia Grey, por amar demais, ou ser extremamente compassiva, esqueceu-se de direcionar os seus sentimentos. Ela não se desvirtuou do seu caminho; apenas encontrou um atalho que lhe era mais agradável.

(...)

Naquela tarde, o jornal estava pousado sob a mesa, e com ele as notícias do mundo externo abriram os horizontes novamente para a veterana. A Hydra fora derrotada de uma vez por todas, e todos os seus aliados triunfaram como heróis no combate horrendo que travaram. Allannia não sabia se queria se sentir feliz, orgulhosa ou somente indiferente com a sobrevivência das pessoas que lhe eram queridas, pois no fundo de seu coração enegrecido, se todos fossem mortos, ela teria alguma justificativa plausível para o que fez.

A risada, num tom baixo, antecedeu o ato de despedaçar o papel com as mãos. Não queria se recordar de suas decisões, muito menos imaginar a forma como a tratarão quando colocarem os olhos em seu rosto novamente. A mente a beira do colapso definitivo a atormentava com uma série de pensamentos tortuosos, e sempre que pensava em se infringir dor novamente, uma sensação distinta paralisava seus nervos e a tornavam fria como um cadáver. Rauros observou a silhueta da elfa estática, visivelmente assustada. A felina recuou ao invés de ir ao seu encontro, ciente de que a qualquer momento ela poderia fazer consigo o que havia feito ao jardim secular de sua família.

— Rauros. Qual o valor de uma vida? Ela vale mais do que a glória de uma vitória eterna? — a Grey fez soar, repentinamente, sem mover nem um músculo sequer. Os seus olhos azulados fitavam a ruína de papéis abaixo de seus pés, intrigada.

— Não entendo nada sobre as ambições humanas, mas não imagino nenhuma glória sendo eterna. E se não está viva para ver, do que adiantam as glórias? — Rauros respondeu-lhe, dando sua resposta sincera.

— Errada. Você sempre erra, confundindo humanos com os outros animais. Para nós, uma vida sem glórias é o mesmo que morrer. — Ela finalizou, virando-se para a amiga exibindo uma expressão facial indescritível. — A vida não adianta de nada, se a sua morte não for triunfante.

— O que você quer dizer? Nem parece uma opinião sua. Pelo que eu a conheço, jamais a verei se sacrificar por algo — a felina franziu o cenho, intimidada com os rumos do diálogo.

— Quem disse que isso se aplica a mim? Eu não sou humana — Allannia inclinou ligeiramente a cabeça, num sorriso irônico. — Tampouco sou uma elfa. Nem meus títulos represento. Não ajo como um ser comum, nem como as criaturas do meu próprio sangue e nem diante das convenções sociais que me permeiam. Quem eu sou, Rauros? — a pergunta era retórica, mas o seu tom profundo, indicava que até mesmo ela mesma desconhecia as verdadeiras nuances da resposta que estava na ponta da língua.

— Allannia? Grey? Quem é você? — Rauros não sabia como responder o questionamento da dona, pois a própria natureza da pergunta era desconexa com a própria realidade.

— Esses são nomes atribuídos fora de minha jurisdição, no momento do meu nascimento. Essas palavras são o que querem que eu seja, não o que eu realmente sou — a prateada vagarosamente se aproximou da felina, acariciando a sua pelugem magia. — Eu sou o fogo que arde contra o frio. E enquanto eu existir, quero ser como uma chama, e incendiar tudo em meu caminho. Somente posso explicar minha existência pelas chamas. Há algo mais esbelto do que uma centelha tomando forma até engolir toda uma pastagem? Ou de como elas se debatem e batalham contra a água quando tentam apagá-la? Uma chama suficientemente forte pode queimar para sempre, de tal modo que nem mesmo um oceano possa extinguir sua existência. As estrelas, o fogo que está nos céus, arde por tempo o bastante para que, antes de colapsarem, despejem toda forma de recurso existente nesse planeta. Algumas vezes, deformam o próprio espaço-tempo, e consomem tudo que se aproxima de seu centro. De todas as chamas, eu quero ser uma estrela. No dia que eu for morrer, quero levar todos comigo.