Fazia algum tempo que não via seu padrinho. Após ter aprendido os fundamentos da técnica sensorial, tornou-se muito arriscado encontrá-lo dentro da vila. Agora que era um dos ninjas da elite da vila ele entendia o motivo. Ryujin era um desertor conhecido como um terrorista, mas cuja procura era pouco feita dadas as poucas informações do paradeiro. Ao menos era isso que os documentos apontavam. Confiar naquilo era acreditar demais que as pessoas dentro dos quartéis se importavam de verdade com Iwagakure ao invés de olharem apenas para elas mesmas. Ninguém era assim tão correto, especialmente naquele país. Havia aprendido do jeito difícil. Aceitar foi mais fácil. Após tudo, ele mesmo não se importava mais tanto assim com a vila.

Batsuki interrompeu os passos abruptamente, no meio do nada, fazendo seu manto sacudir no ar. O esconderijo ficava a alguns quilômetros da vila, uma construção em rochas com buracos que mal dava para compreender ser uma moradia. Ouviu passos ecoando de dentro do local e não demorou mais que alguns instantes para Ryujin aparecer do meio da escuridão em seu manto verde-musgo. A expressão dura não aliviou um instante sequer. Moveu a cabeça, chamando-o para dentro, e Batsuki acompanhou obediente.

— Você vive mesmo neste lugar?
— Às vezes. Soube de sua nova promoção, meus parabéns, Batsuki-kun.
— Obrigado…
— Seu pai ficaria muito orgulhoso.

Ficaria? Ele não conhecia aquela versão de Soratsuki que o padrinho tanto falava. Provavelmente ele só existisse para os companheiros. Ainda assim, ele não se incomodou em levantar questionamentos sobre o genitor, sua visita não tinha esse objetivo. Caminharam alguns minutos até chegarem num espaço amplo com um caldeirão borbulhando sobre uma fogueira. Ryujin fazia ensopado, assim como Kayn antes de tudo piorar.

— Está com fome?
— Não.

Sentaram em rochas espalhadas no ambiente, o mais velho começou a comer. Aquele lugar não era habitável. Durante a caminhada não viu nenhum quarto ou banheiro, pouco parecia haver lugares sem risco de desabamento, assim como não havia eletricidade ou formas de sobreviver com as facilidades que teria em uma aldeia. Suspirando, ele curvou-se para frente com os cotovelos nos joelhos e as mãos entrelaçadas suportando o queixo.

— Está tudo bem, Batsuki-kun?
— Encontrei seus registros, vi quanto sua cabeça vale. A vila acredita que você é um terrorista.
— E você? O que você acha?
— Que a vila está podre. — Batsuki respondeu, encarando-o. Ryujin deixou o prato do ensopado de lado e abriu um sorriso largo. — Por isso vim atrás de você. Preciso ficar ainda mais forte.

Seus olhos não miravam mais o padrinho, mas as próprias mãos, abrindo e fechando-as. Ainda sentia o sangue de Kayn nelas. Cerrou os punhos logo em seguida, escondendo as memórias traumáticas num canto escuro da mente. Encarou-o novamente, dessa vez mais determinado, escondendo as mãos dentro do manto fechado.

— Você é a única pessoa que posso pedir isso, afinal, conviveu com meu pai.
— Do que está falando?
— Quero descobrir como tirar proveito máximo da minha Kekkei Genkai.
— Isso eu não posso ajudá-lo.

A resposta pegou o rapaz de surpresa. Ryujin se levantou e saiu andando para fora. Batsuki o acompanhou até chegarem na entrada outra vez, contemplando o horizonte frio do país.

— Mas vou te levar até alguém que possa.

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— Tem certeza que ele pode me ajudar?
— Absoluta — Ryujin disse, olhando-o por cima do ombro, ambos em movimento constante indo no destino assinalado mentalmente pelo mais velho. — Embora não fosse do nosso time, Kumanin é um ninja excelente e detém uma técnica secreta que deixava até seu pai com inveja.

Aquela era mais uma máscara de seu pai que ele nunca viu. Soratsuki parecia orgulhoso, nunca ia imaginá-lo com inveja de alguém ou de suas habilidades. Não encaixava com a figura séria, distante e forte que tinha diante dele desde que se lembrava da vida.

— Como essa técnica funciona?
— Eu não sei explicar muito bem — confessou. — Pelo que entendo ele mescla o elemento com uma espécie de material inorgânico para criar explosivos que lhe permitiam lutar até de longas distâncias.
— Parece útil. Por que meu pai não quis aprendê-la?
— Essa técnica é proibida, é um Kinjutsu.

Batsuki firmou os pés no chão para interromper a jornada. Ryujin virou-se, também estacionando. Ficaram a alguns metros de distância. Uma técnica só era classificada dessa maneira quando trazia riscos de vida, inclusive ao usuário, pelo menos era a maneira como os professores falavam na academia. Poucos ninjas no mundo tinham coragem e capacidade de usar técnicas do gênero. Menos ainda tinham permissão, porque essas técnicas eram, normalmente, segredos de aldeias, clãs e famílias.

— Você acha que ele me ensinará?
— Sinceramente? Não — anunciou fazendo o rapaz arregalar os olhos. — Kumanin jamais ensinaria uma técnica proibida. A vila não permite o repasse, ele é uma das poucas pessoas que tiveram direito a aprendê-la em Iwagakure nas últimas décadas. Contudo acho que ele pode ajudá-lo com questões sobre seu elemento.
— Entendi…
— Não se desanime, tenho certeza que ele terá lições valiosas para você.

Concordando, ele seguiu estrada com o padrinho, torcendo para que fosse verdade.

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A jornada continuou por mais algum tempo, até a noite cair e se aprofundar deixando uma lua cheia no topo do céu. Ryujin sinalizou para que diminuíssem o ritmo, aproximando-se de uma nova construção no meio do nada, mas essa inteira, com estruturas rígidas, ainda que em meio a muitas rochas. Quanto mais devagar iam mais intenso ficava o frio. O vento forte maltratava-os, deixando as bochechas do jovem levemente coradas.

Um barulho mecânico alcançou os ouvidos deles. Como se peças estivessem sendo trocadas. Ryujin estranhou, mas não disse nada. De repente, seus passos ficaram maiores. A velocidade voltou a alterar. Invadiram a construção rochosa, encontrando eletricidade servindo ao seu propósito com fiações e lâmpadas espalhadas no seu interior. Voltaram a diminuir os passos até entrarem numa sala enorme com muitos cabos, ferramentas e próteses humanas espalhadas, um verdadeiro laboratório onde um enorme homem estava sentado no meio com o tronco aberto revelando uma estrutura metálica.

— Kumanin?! — Ryujin se afobou chegando mais perto do homem gigantesco, entretanto, ele não correspondeu. Continuou manuseando solda contra as peças danificadas em seu interior como se não fosse humano. — Pelos céus, o que aconteceu?!

Não houve respostas.

— Ele é um ciborgue.
— Como é? — Ryujin virou o rosto em completo choque. — Como assim?
— Iwagakure está promovendo experimentos como esse no país. Transformando ninjas em verdadeiras ferramentas ao torná-los em máquinas. Enfrentei um ninja assim há alguns meses.
— Entendi. Você foi mesmo longe demais com seu sacrifício pela vila… — continuou a conversa virado para seu amigo de longa data, que ainda o ignorava e começava a fechar a placa metálica que era seu torso. — Quantas outras coisas terríveis Iwa o obrigou a fazer?

Kumanin se levantou após soldar a placa de metal e mirou os dois invasores, brilho emitindo de seus olhos. Ambos ficaram com a guarda-alta, lado-a-lado, prontos para iniciar um combate se necessário.

— É você mesmo, Kumanin?
— Ryujin-san… como posso ajudá-lo?

Os visitantes ficaram em silêncio de novo. O ciborgue parecia programado para fazer alguma coisa com Ryujin. O homem, porém, não parecia contente com aquilo. Seus olhos estavam furiosos. A vila estava mais apodrecida do que ele mesmo podia acreditar. Esticando a mão fechada para um cumprimento, ele ficou calado enquanto seu antigo amigo tocava o enorme punho metálico fechado. Ao abrir a mão, uma estranha língua balançou para fora, fazendo o mais novo sobressaltar.

— Como está sua filha, Kumanin? — Ele não respondeu. — Espero que ela tenha se livrado das mazelas da vila como você tanto sonhou. Do contrário, seu sacrifício terá sido em vão.
— Eu nunca vi uma modificação corporal como essa — comentou, ainda pensando na estranha boca vista na palma da mão do ciborgue. — Talvez ele sofreu experimentos diferentes dos que conheci.
— Não. Isso é fruto de sua técnica proibida. Kumanin, conte a ele sobre essa técnica.

A voz de Ryujin era triste. Kumanin assentiu e mirou o jovem ninja.

— O Kinjutsu de Iwagakure é uma técnica que me permite amassar chakra através das bocas em minhas mãos e usar com argila especial na formação de bombas com a Kekkei Genkai do Bakuton. Posso alterar o tamanho e forma da argila que tem meu chakra adicionado, criando bombas pequenas e até colossais.
— Você pode me ensinar a usar esta técnica? — Kumanin ignorou-o.
— Kumanin! Você ensinaria ao garoto?
— Como desejar.

Os dois visitantes se entreolharam e o homem saiu caminhando a esmo por dentro da construção com eles logo atrás.

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O esconderijo do ninja ecoava os gritos dolorosos de Batsuki. As veias inchadas destacavam-se na superfície da pele nua, escuras e bombeando tanto chakra que dilatavam os músculos tentando romper a carne. Um enorme círculo de inscrições, semelhantes às usadas em técnicas de selamento, cobria o chão e a cama de pedra onde ele agonizava. O fluxo de chakra percorria cada símbolo cravado e terminava encontrando o peito despido do jovem ninja, marcando-o com uma imagem estranha, constituída de marcas negras, soltando fumaça da carne que queimava com a adição forçada do chakra àquela região.

O sangue começou a borbulhar numa linha sobre o peito esquerdo, vazando aos poucos, criando uma trilha sádica até a rocha e gotejando no chão. Batsuki estava cerrando os olhos havia vários minutos. Implorando, mentalmente, para que aquilo terminasse ou se não morreria. Quando entrou na sala o enorme ninja explicou que seria necessário enfrentar um ritual afim de utilizar a técnica.

— Você sentirá muita dor. Poderá ficar inconsciente no processo. Talvez até morra.
— Mas isso vai me deixar mais forte? — Kumanin assentiu. — Então eu farei.

O corpo inteiro do rapaz se contorceu em cima da rocha que agora mais parecia um altar de sacrifício. Abriu os olhos por um instante, encontrando o teto ficando turvo tamanha a dor atravessando seu corpo. No peito, o sangue expelido era volumoso, porém, ainda mais assustador era o buraco rompido na carne, por onde dentes começavam a serem projetados. A dor excruciante o fez sair de si e mergulhar na escuridão da inconsciência.

Submerso nas trevas ele se deixou flutuar no vazio. Ali dentro não havia dor, nem preocupações, nem traições. Ele não tinha motivos para se preocupar com os problemas da vila. Muito menos em proteger a mãe. Tampouco em cumprir os treinamentos deixados pelo pai em um caderno. Naquele mundo ele não era uma ferramenta militar. Naquele momento, ele era apenas… um ser humano. Fazia muito tempo que não se sentia assim. Talvez desde antes mesmo de seu pai ter morrido. Muito antes de entrar na academia ninja. Estar ali era bom, não, ótimo. Quis poder continuar ali para sempre, flutuando no nada, abraçado pela escuridão.

“Sempre há no fim espaços para recomeços.”

A voz de Kayn ecoou nas trevas. Batsuki abriu os olhos, rompendo o véu e retornando ao mundo real, sobre o altar manchado de sangue. As veias ainda mais dilatadas deixaram seu corpo inteiro escuro e emanando chakra na coloração azulada, característico dele. Uma estranha língua escapuliu do peito, os sons gosmentos espalharam no ar. Linhas vermelhas cruzaram as palmas das mãos dele e fios sanguinolentos desceram sujando ainda mais a pedra suja. A dor ainda era enorme, ainda tentava arrancá-lo do mundo real, mas ele não se permitiria mais; ele recomeçaria.

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Todo chakra concentrou-se no corpo dele e explodiu uma onda de energia. A claridade do fluxo contínuo de chakra desapareceu. Batsuki sentou na mesa, sentindo algo estranho na palma da mão ao se apoiar e ao encará-las encontrou bocas com dentes sorridentes. A enorme língua saindo de seu peito era semelhante, mas ao redor dela existiam inscrições cravadas, enquanto no chão não existia mais nenhuma. Moveu as pernas para fora da cama de pedra e encontrou Kumanin no canto, ainda com um selo forjado nas mãos, os olhos sem iluminação. Ele não entendia muito de ciborgues, somente o que havia observado em combate, mas era como se tivesse acabado as energias dele. Deu de ombros, pegando suas roupas e começando a se vestir. Estava terminando de ajeitar as calças quando Ryujin entrou nervoso.

— Está tudo bem com você, Batsuki-kun?! Meu Deus, seu peito! — exclamou aproximando-se a passos rápidos. Batsuki encarou a enorme boca onde devia encontrar um espaço para seu coração e voltou a olhar o padrinho que estava próximo, ameaçando encosta a mão na boca. — Você conseguiu mesmo dominar isso?
— Parece que sim — disse, sentindo-se ligeiramente diferente. Olhou o ninja-ciborgue adormecido no canto. — Você poderia costurar essa maldita boca? — pediu indicando seu peito, aquilo era desconfortável. Também não lutaria de peito nu, pois isso só o colocaria em mais riscos.

Ryujin assentiu, procurando no estranho lugar agulha e linhas. Costurou sem anestesia, mas Batsuki não se incomodou, apesar de fechar os olhos engolindo a dor. Tudo que havia passado naquele ritual tinha o ensinado algo a mais sobre a dor. Depois de terminar o homem mais velho deu a ele as roupas e ele as vestiu. Capturou do adormecido uma bolsa com argila dentro e enfiou a mão, a boca engoliu um pedaço, Batsuki sentiu algo estranho na palma, um comichão curioso, os movimentos no interior da boca eram claramente notados. Depois, cuspiu a argila na forma de um pássaro pequeno.

— Acho que não poderei contar com seu amigo para me ajudar a dominar isso.
— Pelo visto, não. Eu nem acredito que ele te ensinou mesmo isso…
— Talvez ele tenha sido programado para ajudá-lo, por algum motivo.
— Você está mesmo bem?

Batsuki olhou as mãos com as bocas nojentas. Aquilo o fazia mais monstro do que humano? Assentiu com a cabeça, mas não era respondendo ao padrinho. Jogou o manto sobre o corpo e saiu caminhando.

— Vamos voltar antes que notem minha ausência — avisou, preocupado com as possíveis consequências daquilo para seu padrinho.

Ryujin aceitou e ambos retornaram à vila.

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