Os pecados de um ser humano são as criaturas mais inconvenientes em toda a Criação. Por mais que você deseje, eles tendem a não gostar de ficar no passado, e vez ou outra retornam para te atormentar. Os pecados gostam de nos lembrar de sua própria existência, e de que somos seus progenitores legítimos. Filhos bastardos, nascidos do ódio ou do medo, impregnados na carne e no espírito.
Sorriem por detrás do véu, esperando para nos arrastar até o inferno.

Quando sua porta foi feita em pedaços, e principalmente quando já estava na sala de interrogação após ter sido arrastada por um esquadrão de ninjas mascarados, Shinzō se deu conta de que havia cometido um erro. Em um capricho de vingança, mandou aquele homem para a cadeia, apenas para que ele vivesse sabendo que ela o havia derrotado. Agora se dava conta de que deveria tê-lo matado.

— Acreditava que esse assunto já tivesse sido encerrado há cinco anos — ela questionou o mascarado à sua frente.

— Você só fala quando mandarmos você falar — ele disse, a olhando de cima. — Agora responda: qual o seu envolvimento com o plano de golpe de Estado de Chinoike Akira?

Ela suspirou, buscando, através de sua linguagem corporal, demonstrar desinteresse por tudo aquilo. Felizmente era fácil para ela manter os batimentos calmos, uma vez que tinha perfeito controle sobre a própria corrente sanguínea.

— Tal como deve constar em seus relatório, eu fui uma vítima daquele homem. Ele queria me treinar para ser sua serva, então, quando a oportunidade surgiu, eu o entreguei para o governo. — Ela apenas repetiu a mesma história contata aos nove anos.

Ele jogou uma pasta sobre a mesa, provocando um eco pela sala fechada.

— Está mentindo.

Considerações:

— Este é o relatório da denúncia feita por Chinoike Akira, onde ele aponta que treinou sua filha para ser uma agente infiltrada nas forças militares de Iwagakure. Segundo ele, ela o teria traído para assumir o controle da operação e ganhar a confiança do governo.

"Filho da puta!", plaguejou em silêncio, lutando para colocar na face uma expressão de incredulidade e surpresa, ao invés de espanto e medo.  "Eu subestimei aquele homem, não achei que arriscaria tudo dessa forma."

— Eu... Eu não sei como podem dar crédito a qualquer coisa que ele diga — ela fazia sua voz tremer, tentando simular um tom chocado. — Esse homem é extremamente perigoso, ele me usou a infância inteira como se eu fosse uma arma em desenvolvimento. Só pode estar alucinando achando que eu ainda seguiria os planos dele.

Um momento de silêncio, onde, embora ninguém tenha dito mais nada, a tensão no ar era tão densa que poderia ser cortada ao meio com uma faca. O sujeito então apenas fez um gesto com a mão, e dois outros AnBus saíram dos cantos da sala. Um deles agarrou os braços da garota por trás e a fez ficar em pé, então a empurrou em direção ao segundo AnBu, que enchia um grande barril com lama mole.

— Nesse país, acreditamos que é mais eficiente afogar alguém com terra — o líder deles disse.

— Ei, não, espera...! — antes que conseguisse terminar a frase, aquele que a segurava forçou sua cabeça para dentro do barril, a afundando na lama pegajosa. A sensação era horrível em níveis surreais; ela não estava apenas sufocando após alguns segundos, mas também qualquer tentativa de puxar ar resultava em terra entrando por suas narinas e/ou boca. Shinzō tinha certeza que se aquilo entrasse em seus pulmões ou estômago a mataria em algum momento e então tentou resistir ao impulso de respirar, mas isso também fazia seu peito arder como se fosse explodir.

Alguns segundos que pareceram horas se passaram, e o AnBu a puxou de volta pelos cabelos. Tossindo, ela cuspiu e espirrou os resíduos que havia inalado, com lágrimas saindo pelos olhos que haviam se irritado.

— Agora diga a verdade. Qual sua relação com a tentativa de golpe de Estado de Chinoike Akira?

— Eu não...

— Ele ordenou que você o entregasse?

— Isso é ridi...

— Mergulhe ela de novo.

Sem que conseguisse reagir, seu rosto foi novamente empurrado para baixo. A mesma sensação de afogamento, só que mil vezes pior do que se fosse com água.  

"Eu vou me assegurar que todos vocês morram", ela pensou, ciente de que precisava manter o domínio sobre seu psicológico o quanto fosse necessário. Eles não iriam matá-la, isso era quase certeza. Era uma genin oficial, herdeira de uma linhagem sanguínea raríssima. Enquanto não tivessem provas concretas ou uma confissão, não poderiam se dar ao luxo de descartá-la.
Pelo menos, era nessa teoria que ela tinha que se agarrar.

— Tem... cof cof... cinco anos que eu não falo com aquele homem — ela disse, quando ergueram sua cabeça. — Imagino que tudo que ele queira é se vingar por ter arruinado seus planos.

Ela manteve o olhar fixo na máscara do líder daquele equipe, que a fitava em silêncio. Era extremamente difícil ler uma pessoa quando você não enxerga qualquer centímetro de sua pele, e a garota não se arriscaria a usar o ketsuryugan para tentar invadir sua mente. Ainda, estava se concentrando a aprender a interpretar o AnBu através dos pequenos movimentos que ele fazia com o corpo, o movimento em seu peito indicando sua frequência respiratória, se ele sustentava ou desviaria o olhar dela. Estaria ele confortável torturando uma criança? Queria encerrar aquilo logo de uma vez?
Toda e qualquer informação, por menor que fosse, ela trataria de encontrar e usar como suas armas naquele jogo de cartas.  

Considerações:

Ela havia sido novamente presa e levada para outra sala com o rosto vendado. Tentava imaginar onde aquele longo corredor terminaria; julgando pela temperatura e circulação do vento em contato com sua pele, eles estavam se enfiando cada vez mais fundo nas entranhas do Quartel General, o que significava que não iriam ver o Tsuchikage.

O líder do grupo falou alguma coisa em código e uma pesada porta foi aberta, com a Chinoike sendo introduzida ali. A porta se fechou atrás de si e ela pôde ouvir a voz saindo por um aparelho de som:

— Pode retirar a venda.

E ao fazê-lo, deu um passo para trás, com sua feição mudando para espanto.

— Quanto tempo, Bara. Não vai abraçar seu querido pai?

Chinoike Akira. Apenas cinco anos haviam se passado desde a última vez que o viu, mas ele parecia ter envelhecido uns quinze na prisão. A barba estava a muito tempo por fazer, com vários fios grisalhos se destacando entre o ruivo, e haviam olheiras terríveis ao redor de seus olhos.

— O que esse homem está fazendo aqui? — Ela aumentou o tom de voz, olhando para os lados em busca de tentar adivinhar atrás de qual parede os observadores estavam. — Vocês não podem me colocar sozinha com ele!

Akira deu um passo em direção a garota, que recuou mais um, agora sentindo a porta metálica em suas costas.

— Algum problema, Bara?

— Não me chame assim, esse não é mais meu nome! — Vociferou, fazendo o papel de um animal que, quando encurralado, começa a mostrar as garras e tentar parecer maior. — E não se aproxime!

— Mas é o nome da sua mãe, já que é tão parecida com ela. Como tem passado?

Ela soltou uma exclamação de raiva e nojo, batendo o punho fechado contra a porta, mas sem dar as costas ao homem ali presente.

— Você… É tudo culpa sua. Criou a sua trama, me criou para fazer parte dela, e quando eu enfim consegui sair você tenta me puxar de volta.

— Bara… — ele deu mais um passo, o que fez a garota explodir e tentar o empurrar para trás.

— Não. Chegue. Perto. De. Mim!

— Bara, eu preciso saber — ele a segurou pelos punhos, tentando forçar contato visual, mesmo com ela desviando o rosto e tentando se libertar. — Olhe para mim. OLHE PARA MIM. Eu preciso saber se você ainda é minha garotinha e… — ela o chutou nas partes baixas, aproveitando o momento para se soltar e deslizar por baixo de seu braço, correndo até o outro extremo da sala contornando a mesa de centro.

Akira torceu a cara em uma mescla de dor e raiva, e quando voltou a falar seu tom havia mudado, ficando totalmente agressivo.

— Eu sabia, você nunca passou de uma imensa falha. Apenas a encarnação de minha vergonha como cientista. Mas isso acaba agora.

Ele então, simplesmente usando as mãos nuas, arrancou umas das pernas metálicas da mesa e se preparou para arremessar como uma lança em direção a genin. Sem ter para onde escapar, ela fechou os olhos e virou o rosto de lado, como se apenas esperasse pelo inevitável… até que nesse momento a porta se abriu de súbito e os AnBus entraram, facilmente subjugando o velho com Ninjutsu.  

— Venha — o líder ordenou se dirigindo a garota e ela obedeceu sem hesitar, passando o mais longe possível de Akira enquanto o mesmo berrava a amaldiçoando.

Já longe dali, após conferir se estava tudo bem com ela (ou, talvez, a revistar?), o mascarado pareceu enfim mudar de tom.

— Ainda tinha minhas dúvidas, mas me parece estar claro agora que o homem é apenas louco. Você já pode ir.

“Nem sequer um pedido de desculpas?”, ela pensou, cheia de ódio assassino, mas sem deixar que aquilo transparecesse em seu rosto, que no momento era uma cara de choro. Murmurou algumas palavras quase inaudíveis sobre fazer uma queixa, e dei as costas para tomar o rumo em direção a saída.

Antes de continuarmos, porém, vamos ver o que realmente aconteceu naquela sala.

A AnBu existia para fazer o serviço sujo. A missão deles ali era descobrir se Shinzo se tornaria uma ameaça ou não no futuro, então nada os impediria de ir a extremos para isso, mesmo que ela fosse quase uma criança. Assim, a possibilidade de uma jogada como aquela já havia sido cogitada pela mente da garota, mesmo que ainda tenha se surpreendido por realmente jogarem tão baixo.

Akira era um homem louco, nisso ela não mentiu em momento algum. Seus planos, porém, tinham um objetivo concreto. A reclusão cedo ou tarde o levaria a querer informações do mundo exterior, e principalmente da filha, que ele ainda via como sua arma. Levantar novas suspeitas contra ela para fazer os AnBus a trazerem ali era uma jogada arriscada, mas que ela poderia respeitar.

Porém, no instante em que ele começou a falar, ela percebeu que iria ferrar com ela de verdade. Sua mente já estava fundindo, esteve a algumas palavras de perguntar o que não deveria. Naquele momento, Shinzo tirou proveito do ponto cego criado pela grande massa de carne na sua frente para discretamente ativar seu doujutsu, mas mesmo assim mantendo os olhos fechados por precaução. No instante em que estabeleceram contato físico ela lançou nele o Genjutsu: Ketsuryugan, transmitindo para sua mente uma projeção de si mesma lhe dando instruções:

“Sim, está tudo seguindo conforme o plano. Agora aja como se estivesse desapontado e me ataque.”

A partir daí, bastou manter a interpretação. Antes de desativar o Ketsuryugan e sair correndo pela sala,  ela usou uma manipulação de seu próprio sangue para fazer com que este corresse mais rápido pelas veias, acelerando seu batimento e simulando efeitos do medo.

Felizmente uma parte racional do cérebro de Akira ainda funcionava, e ele conseguiu se lembrar da época em que era bom em interpretar papéis. Mudou sua pergunta de forma natural e seguiu o script que ela lhe deu, resultando na tática tendo sucesso e ela sendo liberada.
Falta só mais um detalhe agora.  

Considerações:

Como se fosse um presente dos deuses pelo seu esforço, aquilo que ela precisava vinha descendo as escadas em sentido contrário. Embora usasse uma máscara cobrindo o rosto, seu traje não era dos AnBu, indicando que a moça trabalhava servindo ao QG. Uma copeira, talvez.

Shinzo era esperta o suficiente para saber que nunca conseguiria fazer aquilo com um dos shinobis especiais da aldeia – não hoje, pelo menos – mas com uma quase civil a história era outra. A escada em caracol era um raríssimo ponto-cego naquele complexo, ela só teria uma chance para fazer funcionar.

No instante em que se cruzaram, a jovem fingiu tropeçar no degrau e trombou na mulher. Segurando em seu antebraço como que para não cair, Shinzo ativou mais uma vez seu doujutsu por um flash de instantes, apenas o suficiente para transmitir seu genjutsu.

A garota era naturalmente habilidosa naquela arte, e durante seu treinamento lhe foi ensinado que a maneira mais fácil de se controlar alguém é induzi-la a fazer aquilo que ela mesmo já deseja. Muitos usuários de genjutsu gritam “Não me mate!”, quando tudo que o inimigo mais quer é te matar. Isso coloca uma imensa pressão sobre a mente do alvo, tornando mais difícil o controle.

Além disso, ela havia passado o dia treinando a como exercer domínio psicológico sobre quem a rodeava. Entender quem a pessoa era, entrar em sua mente e usar os pensamentos do alvo contra si mesmo.


Sendo assim, naquele ínfimo instante, através de seu Genjutsu: Ketsuryugan, a jovem Chinoike buscou uma parte do cérebro da mulher onde ela armazenava sua raiva, frustração e tristeza, para então abrir aquelas portas muito bem trancadas. Usando desses sentimentos, ela lhe deu um comando a seguir: “Mate Chinoike Akira, diga que foi ordem dele e depois se mate”.

Tão súbito como começou, o contato físico entre ambas se desfez, com a genin se afastando e desativando o doujutsu. Um pequeno instante de checagem, e assim que a mulher saiu andando sem dizer nada, nem sequer esboçar uma reação pela colisão entre ambas, confirmava que o feitiço havia sido plantado.


Horas depois naquele mesmo dia – que parecia não ter um fim – ela pôde escutar uma batida na porta. havia acabado de trocar as trancas, então agradeceu mentalmente por não as terem destruído outra vez.

A figura parada do outro lado era inconfundivelmente um dos AnBu’s, mas o padrão na máscara era diferente daqueles que a haviam interrogado. Ele não se demorou, estava ali apenas para lhe entregar um comunicado oficial, junto aos pesares da cúpula do vilarejo.
Não haveria funeral público, mas ela poderia participar da cremação do corpo do pai caso quisesse. O relatório oficial dizia que, após perder todas as esperanças, Akira havia induzido uma das funcionárias da prisão a matá-lo e depois tirar a própria vida, como último ato contra Iwagakure.
Ela agradeceu, mas decidiu que não iria.  

Considerações: