Umedeceu os lábios pela milésima vez, o suspiro exasperado indicando a impaciência. Não era só a atividade em si que a incomodava, claro... Para além daquela brincadeira mental estúpida, ainda tinha de aguentar Okami torrando a pouca sanidade que ainda lhe restava. Era um teste, em todos os sentidos possíveis para a palavra! Um jogo idiota com algumas peças de madeira empilhadas, equilibradas de maneira quase aleatória. O pequeno duende colorindo sua vista, disparando provocações vez ou outra.

A ideia era desmanchar a torre sem derrubá-la, nunca pegando as peças do topo e, sempre que possível, evitando também as da base. Uma forma quase ingênua de praticar tanto a paciência e a estratégia quanto a noção espacial na leitura da forma como outros corpos se inseriam no mundo. Isso, óbvio, sem citar os benefícios que a acometiam em relação à convivência com a própria esquizofrenia. Oras, não era mesmo para qualquer um realizar uma atividade de tamanha destreza com uma peste multicolorida fingindo chutar os blocos.

“Seria mais fácil se só fizesse assim!” Disparou a voz em sua cabeça no segundo em que o duende se aproximou correndo da estrutura, executando uma perfeita bola de canhão. Foi o suficiente para Keiko arregalar os olhos, cogitando ter perdido todo aquele tempo de montagem para nada... Mas o pequeno simplesmente atravessou a superfície, afundando no meio do jogo com um peso nulo, transpassando qualquer tipo de matéria. Okami parecia-lhe sempre tão presente e verdadeiro que era difícil encarar o fato de que aquela coisinha não existia de verdade.

- Oras, não pode fazer isso! Assim nunca serei muito esperta! – Resmungou em voz alta, sem preocupar-se com a possibilidade de alguém ouvir. Estavam na segurança da pequena orla ao entorno de Konoha, ainda muito cedo – quase madrugada – para qualquer pessoa sensata cogitar um passeio ao ar livre. O lugar preferido da Hyuuga no horário preferido de sua alucinação! Ali podia responder livremente aos estímulos esquizofrênicos sem ser alvo de olhares tortos.

“Já somos inteligentes! Lembra na semana passada quando conseguimos pegar algumas frutinhas? Foi inteligência pura!” O pequeno tinha a estranha mania de se referir à ambos como um único ser... O que, no fundo, era mesmo verdade. Estava convencido e com o peito estufado, saindo da arapuca de madeirinhas para se erguer altivo ao lado da torre, ambos com cerca de trinta centímetros. Fingiu escorar-se nela e, sem qualquer aviso, começou a cantarolar uma canção qualquer.

- Isso não é inteligência, Okami... Não de verdade! – Retrucou a maior, tentando concentrar-se na tarefa auto imposta. Com a ponta dos dedos puxava os retângulos empilhados. No início era muito mais uma questão de destreza! Um aqui, um ali... Tentava manter-se impassível enquanto o duende multicolorido afundava música, agora também reverberando em sua mente.  Era quase sem querer que a entonava na mesma velocidade... Às vezes tendo a certeza de que apenas ela a cantarolava, até seu olhar estremecer e voltar a focar o companheiro. Era a única coisa quase certa que tinha em sua vida.

Muito logo, porém, o jogo deixava de ser automatizado. Precisava pensar em quantas peças faltavam em cada lado e tentar calcular mais ou menos o peso que distribuiria às outras caso retirasse alguma. Não bastava mais apenas sorte! Muito menos o trabalho puramente manual. Sendo assim, por muitas vezes se arriscou e testou possibilidades, derrubando e remontando a torre por uma boa parte da manhã. Vez ou outra trocavam alfinetadas, claro! Mas quando o sol já começava a chegar em seu ápice, calaram-se ambos.

Guardou o jogo em uma caixa também de madeira, limpou a roupa chapiscada de grama... Com um olhar satisfeito e um meio sorriso, afastou-se da segurança das árvores, ostentando Okami no ombro direito, sentado com um ar feliz. Cantarolavam outra vez uma música sem letra, entoando uma melodia sobre voltar para casa e meninas espertas. Não precisavam de muito para se entenderem! Oras, eram, afinal, a criatura e sua inocente criadora.

Observações: