Sentada na varanda da casa, brincando com as madeixas de seu cabelo negro, seu pensamento estava disperso sobre o céu azul de Kumo, como um pássaro. Os pensamentos iam e viam, acompanhando os passos de todas as pessoas que atravessavam a lamacenta rua onde sua casa ficava. Seu irmão tossia forte ao fundo, completando uma orquestra natural, cotidiana, melancólica e, de certa forma, angustiante.

Uma gota de lagrima descia do seu olho esquerdo enquanto bocejava sonolenta, com a pequena mão cobrindo a boca. Uns pés, pálidos, eram visíveis por debaixo da greta do portão que fazia parte do muro que circundava sua casa. Imediatamente a eles, uma carta foi lançada por debaixo da greta, a ninja, obviamente surpresa, abre o portão no maior de sua velocidade e, com uma kunai na mão, preparando-se para qualquer surpresa que poderia surgir, contudo, a figura de cabelos vermelhos cor de sangue, já desaparecia no horizonte.

— O que será? — abriu o envelope e leu, ficou surpresa ao ver que a carta continha informações de um local e data. Uma rajada intensa de vento sibilou e lhe acordou de suas divagações sobre o que fazer, olhou para trás e viu que seu irmão dormia, sua aparência lúgubre era certeza de que dormiria até a hora do jantar.

— Não é muito distante daqui, melhor ir vê do que se trata.

Levantou-se com delicadeza e partiu em direção ao local indicado na carta.

Considerações:

Não esperava que o caminho até o ponto marcado no mapa fosse tão fácil, e nem mesmo que a distância fosse tão curta, apesar de levar a um local coberto de gramíneas, o que não era algo muito comum em Kumo.  Deitado no chão, um homem conversava com um garoto de aparência extravagante e comportamento que não ficava muita atrás.

À medida que se aproximava, sentia que trazer suas espadas talvez fosse desnecessário, mas sua face, obscurecida por aquilo que supôs ser uma perda de tempo, não era suficiente para esconder a curiosidade daquele encontro tão singular. A mão direita estava repousada sobre sua espada maior, a Tōken, enquanto a outra mão pendia graciosamente no ar quando parou de frente as duas pessoas, um homem e um menino, como havia distinguido a distância pela silhueta daqueles indivíduos.

Ouviu a apresentação do homem com olhar frio, a iris brilhava em duvida de todas aquelas palavras, mas manteve um mórbido silencio quando, por fim, respondeu a apresentação com vênia.

Depois se virou para o “rapazinho”, talvez um pouco surpresa por sentir que já havia visto aquele rosto infantil antes, mas apenas respondeu com mesura, não estava ali para perder tempo com coisas insignificantes, contudo, apesar de seu comportamento quase aristocrático — resquícios de sua antiga vida — não podia evitar sentir simpatia pelo garoto que, na situação que se encontravam, era a pessoa mais normal entre os dois desconhecidos, e abriu um sorriso meigo, simples e sem nenhum brilho, a não ser o do constrangimento que advinha da situação.

Não teve muito tempo para analisar melhor o rosto e o comportamento dos presentes, pois, antes que pudesse chegar a uma conclusão definitiva sobre a situação, foi interrompida pelo questionamento do homem.

“Treinar? Quem disse a esse homem que eu queria treinar alguma coisa?”

Perpassou seu olhar no rosto do menino ao seu lado que, como um idiota desbocado respondeu o que queria, com uma facilidade e transparência que mais parecia uma enchente fluindo a esmo.

— Kenjutsu. — disse de súbito, surpresa por ter sido levada pela enchente que era o “rapazinho” ao seu lado.

Colocou a mão sobre sua Tōken e a retirou com velocidade, sua feição era aflita — “Que espécie de doente esse homem pode ser?”

Manteve-se em posição defensiva.

Considerações:

A pessoa que se intitulava Noone utilizou-se de um jutsu peculiar para materializar a espada em sua mão, o que, para o espanto de Enma, segui-se de uma duplicação de sua pessoa, com as espadas — que sofreram do mesmo processo — presas ao chão, as duas laminas reluziam de maneira tênue, mas fascinante para a ninja que, a partir daquele momento, estaria a considerar as habilidades do homem a sua frente. Não estava de brincadeira — pensou.

Trocou a espada da mão direita para a esquerda, não podia evitar sentir tremores em seu corpo, espadas não eram brinquedos, as laminas cortavam, matavam, faziam jorram sangue e assim fizeram ao longo de toda a história. Em sua vida até então, havia utilizado apenas espadas de madeira para treinamento, e mesmo mostrando uma habilidade inata com a ferramenta de assassínio, sua confiança perante uma arma se reduzia a nada. Apenas a idéia do sangue lhe fazia querer chorar, mas manteve-se firme, encarando com seriedade aquele que seria seu oponente.

O homem partiu em sua direção, a intensidade em que se dirigia a ela, e a maneira como desferia os golpes era de modo tal, que apenas revelava sua intenção assassina. A força e o manejo do adversário com sua espada eram de tão extraordinária maestria, que dificultava as respostas da garota que, a cada tilintar, a cada encontro entre os fios das espadas, sentia-se esvair de seu corpo, toda a força que relutantemente reunia em momento anterior ao combate.

O suor lhe escorria a testa, pela primeira vez parecia incomodar, atrapalhar a dança das espadas, mas continuou, persistiu, respirando um pouco e tropeçando em alguns momentos, mas seu ritmo melhorava e seu semblante, apesar de relativa desconfiança, adquiria, ao longo do combate, uma segurança, não em si mesma — longe disso — mas em sua espada, sua companheira, escudeira.

— Quantas vezes eu usei a espada? — respondeu ao questionamento, reunindo o pouco de tempo que lhe restava entre um embate e outro entre as duas armas — Talvez ela tenha nascido comigo e eu não saiba.

Dada a resposta que, a priori, poderia significar qualquer coisa, mas, para ela, tinha conotação totalmente pessoal, seu irmão acamado e enfermo talvez fosse o único a entender o que queria dizer, mas no fim, eram apenas palavras e, sem resposta no campo de batalha, nada significaria — continuou o combate.

Por fim, num ultimo e majestoso movimento o homem guardaria a espada em sua bainha e a retiraria em igual velocidade lançando-lhe um golpe veloz, respondeu o movimento interceptando-o com toda sua agilidade. O retinir das duas laminas fez um som oco, como se fosse uma declaração intima de que era a vez dela de combater. Usou da técnica ensinada por seu irmão.

“Takeo... Me ajude agora!” — e partiu em direção ao seu adversário.

Aquela cópia, ou que quer que fosse aquilo, apesar de habilidosa, havia demonstrado uma habilidade equiparada a dela que talvez, na ausência de tal técnica, possivelmente se mostraria muito superior, contudo, resignou-se da missão de se inferiorizar e continuou seu movimento.

Conforme se movia, seu cabelo dançava conforme a musica e seu olhar intenso e cansado ditava o ritmo, sua expressão austera revelava a devida concentração e respeito ao adversário sendo que, a concentração era tanta, que nem ao menos prestava atenção no combate ao lado.

Num movimento rápido posicionou a espada em direção oposta ao do corte de sua lamina, sem ao menos tirar o olhar de Noone. Partiu em direção ao homem direcionando a ele três golpes, um em direção a perna esquerda, e os outros em direção ao braço esquerdo e direito, respectivamente. A força aplicada nos golpes superaria a sua própria, tendo como objetivo destruir a igualdade que aqueles dois tinham demonstrado até então, realizada essa seqüência de golpes, se afastou para trás, relutante e sem a confiança que havia exibido anteriormente.

Mesmo que preocupada com o “rapazinho” ao seu lado, permitiu-se apenas sentir por ele a mesma compaixão que sentia por si e permaneceu com seu olhar pousado contra o homem de cabelos rubros.

Considerações:

Não mais podia negar a si o privilegio da tentativa e, assim que o fez, viu todos os golpes serem eficazmente defendidos por seu adversário. Talvez o embate se estendesse por mais tempo do que imaginava, e por isso conseguia ver, pela primeira vez, sua técnica ser sobrepujada de maneira tão rápida, prepotente e humilhante; ainda era fraca com a espada. Recaindo sobre o colo do medo e da resignação, não restava mais nada a não ser aceitar que sua estratégia havia sido completamente um fiasco.

Deitou seu olhar sobre o adversário, ainda com a feição fechada tentando esconder todo o medo e a insegurança que havia dentro de sua alma, mesmo que um fio de segurança ainda se resguardasse em algum lugar de seus olhos. O suor lhe descia ainda mais intenso sobre o rosto fazendo com que a franja grudasse em sua testa, o que de frente aquele sinistro não incomodava, ou pelo menos não o suficiente para perceber, achou melhor assim, pois, sabia que, se tivesse conhecimento de seu esforço, desistiria ali mesmo, por compreender que o adversário era insuperável.

Ouviu a provocação de seu contendor e absorveu as palavras em solene silencio, contraindo as sobrancelhas e o rosto em comedida sensação de labéu. Posicionou-se para tentar se defender do contra-atraque do oponente, sem ao menos vacilar o olhar no entorno.

— Tudo bem... Dance conforme a música e faça a espada ser uma extensão de seu corpo! — pensou, enquanto ainda digeria o que considerou um aforismo do mestre.

Assim que o improvável professor fosse a sua direção, na tentativa de emplacar um golpe, realizaria uma tentativa de defesa pondo sua espada rapidamente na vertical, num ângulo de noventa graus e, segurando o dorso da lamina com a palma da mão direita aberta, usou a espada como uma barreira entre seu corpo e a lamina do oponente. A pressão aplicada pelo golpe fez sua palma ficar marcada e o sangue preso por debaixo da pele coloriu-se de uma tonalidade clara, quase transparente, para rosa, e, no momento em que algum corte mais profundo pudesse ser realizado, se afastaria uns quatro metros para trás.    

— Droga... Muito rápido... — respirou e voltou com a espada em sua posição de outrora, antes do golpe. — Devo tentar de novo...

E assim o fez, realizou dois movimentos utilizando-se da mesma técnica de outrora, dessa vez em direção as mãos do oponente, contudo, cansada mentalmente, os ataques saíram sem qualquer espécie de técnica, velocidade e conformidade, diferente de como realizara anteriormente. O cansaço físico ainda não vencia, mas o medo sim, a profundidade da pressão exercida por sua lamina em seu braço resultado da defesa ao ataque do adversário, quase a fizera sangrar e esse era seu medo, seu calcanhar de Aquiles, era uma espadachim com medo de sangue e da morte, apenas a idéia de sentir o calor e cheiro do sangue fazia seus olhos arderem e sua barriga retorcer enquanto suportava ao máximo a ânsia de vomito ou a vontade de correr dali, chorar no colo de sua mãe e pedir desculpas a seu pai por ter traído a confiança deles por ter se tornado uma shinobi.

Seu corpo tremia mais que o normal, agarrou o cabo da espada com mais força fazendo com que o sangue corrente se concentrasse, tornando os dedos numa única e melancólica coisa, uma tonalidade gélida próxima do roxo. Visivelmente estava atemorizada, mesmo para um treinamento não podia evitar, laminas não eram brinquedos para mulheres — foi o que sua mãe disse uma vez. A imagem de sua infância abastada, cheia de carinho, brinquedos e salões de festas se desintegrava num quadro de doença, ostracismo e pobreza, com a imagem de seu irmão, em outro momento seu sensei, invalidado por uma enfermidade que não podia tratar, completando o quatro.

— Eu... Eu... Não, não quero... — disse tão baixo que nem mesmo o ar próximo a ela pôde carregar sua voz, parou e mentalmente completou — Me machucar.

Assumiu novamente a posição defensiva, respirou fundo e se preparou para a movimentação daquele que propunha ser seu mestre.

Considerações:

Sua animosidade já era notável, mesmo o instrutor nada fez, a não ser questioná-la após defender, sem dificuldade nenhuma, uma série de movimentos sem objetivos, desprovidos de alma, como, ao contrário desse, tinha feito com a seqüência de golpes iniciais. Seu rosto, amuado pelo medo de sangue, pela idéia de ferimento e de morte, pousava sobre a lâmina da espada, com a imagem de seu rosto refletido, pálido, pelo fio da arma.

As imagens de seus irmãos caindo no campo de batalha, um por um, começaram a perpassar pelo reflexo, uma brincadeira de seu inconsciente que insistia em pregar-lhe uma peça. Depois seus pais indo embora e então seu fim numa sarjeta com seu irmão morrendo. Tudo por culpa dos shinobi... E agora estava ali, com aquela coisa na mão; como podia, depois de tudo que aconteceu enganar a seu irmão e aos seus pais que lutavam distante dali para sobreviver? Não havia feito uma promessa de nunca se envolver com os ninjas? De preferir a pobreza, o ostracismo e a infelicidade, do que se deixar levar pelos fios das espadas que ceifaram a vida de sua família, um por um?

Continuou se observando, em silencio, sentiu vontade de chorar, vergonha por ter relutado pelo medo de ver algum sangue escorrendo, como viu escorrer de um de seus irmãos enquanto ele morria sem um dos braços e uma das pernas após uma missão fracassada que realizara bem distante da vila, nos braços chorosos de sua mãe. Não podia se conter, queria correr, sair o mais rápido possível de qualquer vila ninja, carregar seu irmão nas costas e ir a procura de seus pais, viver na pobreza, mas distante do medo — não queria enfrentá-lo, ele era grande mais, denso de mais, assombroso que só ele!

Acordou quando ouviu a indagação do mestre, o rosto rubro, com mais vergonha do que imaginava ter. Ao seu lado, o prosseguimento da luta daquele garoto desconhecido, que enfrentava seus medos, diferente dela, uma covarde sem qualquer tipo de habilidade, se não a de ter pena de si mesma, uma espadachim que temia o sangue.

— N-nada... Podemos prosseguir, por favor?

Levantou seu rosto em direção ao homem de cabelo vermelho, sua visão estava embaçada, as lágrimas que brotavam tímidas lutavam para não escorrer, enquanto ela mantinha-se em posição de combate.

— Que bobagem, eu não estou sangrando... Então por que tanto medo? Eu não posso desistir agora, sabe, então venha, por favor, pode vir com tudo! — sorriu sem graça, pressionou o cabo da espada ainda mais forte entre as mãos, o encarou, as lágrimas misteriosamente haviam sumido.

Desde que não sangrasse, pensava, passaria por mais essa provação sem vacilar, por seu irmão e, principalmente, por ela mesma.

Considerações:

A espada pesava diferente em sua mão esquerda, parecia que todo o medo e insegurança que escondia sua força caiam, um por um, por terra, e iam sendo soterrados por uma vontade de lutar que até então desconhecia. É obvio, ainda tinha medos e talvez nunca os superasse, mas isso não significava que iria se render a eles, as mesmas lâminas que mataram milhões, inclusive destruíram sua família, é a mesma que protegeu outros milhões.

Não mais tremia, nem seu sangue temia seguir seu destino por entre os dedos encarcerados entre o cabo da espada. Observou o movimento do instrutor de cabelos ruivos em sua direção, mantendo o mesmo sorriso confiante, mas não prepotente, pois conhecia o limite de suas habilidades e a diferença abissal com o mestre.

Assim que o homem fez o primeiro movimento, Enma posicionou sua espada perpendicular a lâmina do adversário tentando uma defesa cruzada. Ainda na mesma posição, sentindo como se sua lâmina fosse uma extensão de seu próprio corpo, como se pulsasse, levantou a lâmina por cima da cabeça, paralela ao corpo, para se proteger do ataque vindo de cima. O barulho que as espadas produziam, para a ninja, era como se a própria batalha incentivasse suas movimentações, sua defesa. Por fim o ultimo golpe, uma estocada, com o qual defendeu usando o fio da espada como escudo para a ponta da arma do adversário, segurando a espada com o braço invertido.

Ouviu o incentivo do professor e partiu para o ataque, com o corpo não mais veloz, mas muito mais fluido, como se os movimentos estivessem mais naturais, realizou o estilo da lâmina piedosa mais uma vez. Primeiro direcionou seus ataques contra o braço esquerdo do sensei, dois movimentos consecutivos, rodopiou visando o braço direito, mais dois movimentos consecutivos e, num ultimo movimento, direcionou seu ataque contra o estômago do alvo, mas num relampejo de coragem lançou a espada contra o alvo retirando da bainha a espada menor, com a lâmina também invertida, direcionando contra o estomago do instrutor. O objetivo do primeiro movimento, o de lançamento, era a de distração enquanto o segundo, o real trunfo, tinha como objetivo demonstrar que ela e qualquer lâmina que pusesse a mão, já eram um só.

Considerações: