O zéfiro gélido adentrava o quarto de Yami vorazmente por conta de um pequeno descuido antes de dormir, deixar as venezianas da janela abertas. — Dormir já não vem sendo fácil, com esse frio então... — os pensamentos invadiam a mente do jovem enquanto seus olhos ainda permaneciam cerrados. —— E lá se vai mais uma noite de sono. —— praguejou para si mesmo, erguendo o corpo. Em ocasiões passadas, ter seu descanso noturno interrompido acabaria ocasionando uma série de acontecimentos ruins ao longo do dia, mas Yami já havia acostumando-se com a situação e preferiu manter ideais otimistas, buscando encontrar sentido para manter-se desperto.

O cheiro de café inundou toda a casa — diminuta, diga-se de passagem — e preencheu as narinas do Jōnin, trazendo-lhe uma sensação de êxtase momentâneo, que também pode ser percebido no primeiro contato da bebida quente com os seus aspectos gustativos. Enquanto o líquido esvaziava-se dentro do recipiente, uma determinação egrégia surgia sobre o peito do nobre moço. —— Melhor eu me apressar. —— disse, apanhando seus equipamentos e trajando a capa negra que já lhe acompanhara a tanto.

[...]

Era possível desfrutar do aroma agradável que envolvia o ambiente. Terra molhada. —— E pensar que alguns dias atrás essas mesmas ruas estavam cobertas por neve. —— praguejou para si mesmo enquanto vagava na direção indicada pelo pergaminho. Algumas dias atrás, o homem fora abordado por um senhor de aparentes cinquenta anos. — Garoto, siga as instruções desse pergaminho. Não irá se arrepender. — disse o velho.

Desde que retornara do treinamento com seu mestre, Yami percebera o quão medíocre ainda era o seu poder e por isso resolvera investigar do que se tratava. — "Yami, perder a oportunidade de transformar os seus erros em experiência pode te levar a um caminho de tristeza e escuridão. Seja luz." — ao reviver aquele momento nostálgico, o Jōnin foi capaz de ouvir claramente a voz do seu instrutor em sua mente. —— Seja luz. —— reiterou, cerrando os punhos e seguindo em frente.

Paciente, o jovem shinobi trilhava o caminho descrito nas instruções com uma percepção insólita. Yami não lembrava-se o por quê, mas, não recordava de ter visitado aquela parte distinta dos arredores de Kumogakure até aquele momento. —— Curioso. —— proferiu a si mesmo, descrente.

A paisagem era bela. Inata. O contraste ilógico entre o avermelhado da construção com o verde das folhas induziu um novo nível de percepção na psique do Jōnin. O ruído singular provindo da residência ajudava a tornar a cena mais memorável, ainda assim, intrigante.

A experiência em batalhas do nobre garoto lhe instigava a prever a pior das possibilidades naquele cenário. A porta estava aberta, indicando desleixo por parte do seu proprietário ou uma invasão as pressas. A chaleira a bradar apontava para uma situação onde não havia ninguém no recinto, ou, não havia ninguém vivo.

—— Só lhe resta investigar, Yami... —— concluiu, cerrando os punhos e, em seguida, apanhando o seu Leque de Guerra. Os passos minuciosos, a respiração profunda e silenciosa e os olhos atentos, revelavam a preocupação em ser emboscado. — Certo, vamos lá. — considerou mentalmente antes de adentrar o local.

A quebra de expectativa fora tamanha. Uma sala comum com uma decoração comum. A destra que antes matinha-se cerrada e ansiosa, deleitou-se e o Leque de Guerra foi reservado novamente em suas costas. —— Certo... —— disse, enquanto seus olhos vasculhavam o ambiente.

Dentre os objetos que compunham o cenário, o mais singelo clamou pela a atenção do homem. Um pequeno porta-retrato, talhado em Carvalho branco, alojava a foto de uma bela mulher e uma criança pequena. A mão direita lentamente galgou na direção da moldura e Yami passou a observar os detalhes que constituídos na imagem. Naquele momento, o símbolo familiar trouxe a tona a efígie de seu pai, esvoaçando a suas memórias. —— Você veio? —— disse uma mulher, entonando surpresa.

Ao submergir em seus próprios pensamentos, a capacidade perceptiva do garoto fora limitada e o impediu de notar a aproximação da proprietária da residência. A moldura lhe escorregara dos dedos. O vidro fragmentou-se a medida que o Jōnin tornou na direção da mulher. —— Eu sinto muito, não foi a minha intenç... —— as palavras cessaram-se por um instante. A beleza estonteante e os cabelos negros como uma noite sem luar deixaram o jovem estático brevemente. —— [...] intenção. —— concluiu.

—— Venha, estou fazendo um pouco de chá. Há alguns biscoitos na mesa. —— enunciou, retornando para o cômodo de onde viera. Não era possível identificar o motivo, mas, Yami sentiu-se de uma maneira como nunca houvera antes. —— Sua voz é tão... doce. —— proferiu, em um tom ameno. O aroma do chá invadiu-lhe as narinas, propiciando uma sensação agradável e Yami a seguiu.

—— "Sem armas na mesa..." —— reiterou mentalmente. A sensação nostálgica preenchia sua mente. Aquela cena realmente já teria acontecido ou era apenas a sua mente lhe pregando peças. A verdade era que, naquele momento, o rapaz não sabia responder. —— Você tem razão, sem armas na mesa. —— proferiu o Jōnin. Seu semblante era brando.

A casa estreita, com certeza, não fora construído para uma pessoa com suas características. No entanto, o esforço parecia irrelevante mediante a calmaria aquele lugar exalava.

As duas armas foram alocadas próximas a dispensa, encostadas na parede, uma ao lado da outra. Com dificuldade, o rapaz se aconchegou em uma cadeira estreita de madeira escura e com mais dificuldade ainda, manteve seus pés sob a mesa.

O chá amarelado aparentava delicioso. O aroma lhe irrompia as narinas fazendo-o ansiar por um gole da bebida. —— Sim, o farei. —— respondeu prontamente ao ser convidado a experimentar o líquido, e assim o fez.

O sabor adocicado mesclado a temperatura morna, tornaram a bebida deveras agradável. Só de imaginar qual seria a sensação de unir aquilo aos biscoitos de chocolate que repousavam no forno, os olhos de Yami brilhavam. Talvez fosse assim que todos devessem viver a vida, aproveitando um bom chá e deleitando-se no prazer de uma companhia agradável.

—— Por que eu gosto de lutar... —— disse, lentamente, em um tom inaudível enquanto segurava a xícara de chá com a mão direita e fitava o teto da casa. A pergunta adentrara em sua mente de uma maneira surrealista. — Por que eu gosto de lutar? — indagou-se mentalmente o nobre rapaz.

Sua vista escureceu e, ao retomar a visão, encontrou-se como um menino. O pai de Yami repousava em uma namoradeira a alguns passos e mantinha suas mãos ocupadas com um livro, sua boca, com palavras. Era uma história deveras interessante sobre um grupo de heróis que salvavam pessoas e lutavam contra grandes exércitos.

A paisagem novamente ofuscou-se, levando-o para uma de suas primeiras missões. O superior do garoto o parabenizava pelos seus feitos. Uma entrada súbita, um assassinato limpo e uma relíquia recuperada. Era possível perceber no semblante dos dois a felicidade e a satisfação. De um lado, um instrutor animado pelas conquistas do seu aluno e do outro, um menino satisfeito em ser reconhecido.

O devaneio chegou ao fim, trazendo o Jōnin de volta à cozinha. A mulher continuava sorrindo para ele. O aroma dos biscoitos de chocolate dentro do forno estava mais intenso. —— Talvez eu tenha sido condicionado a isso. Treinar e lutar para ser o mais forte. Eu fui ensinado a ser assim desde pequeno. Que mal tem nisso? —— respondeu, num tom ameno, a senhorita. —— A propósito, qual é mesmo o seu nome? —— aquele questionamento ainda era um mistério para Yami desde que chegara a residência..

—— É uma pena que ele tenha partido... —— disse, e, em seguida, uma breve memória de seu pai lhe afligiu a mente. —— Ficar com você... —— um devaneio lhe pôs no colo de seu pai. O rosto de Eijiro estava ofuscado por uma luz clara. Os olhos de Yami permaneciam semi-cerrados. A sensação de paz circundava seu corpo tal qual a água gelada de um riacho que abraça qualquer pessoa que nele mergulha. O rosto do seu progenitor mantinha-se ofuscado, dificultando e, subitamente o Jōnin não conseguia recordar-se da aparência de Eijiro.

As palavras da bela mulher lhe trouxeram de volta a realidade. —— "Por sorte, você está aqui, não é? Vai ficar comigo, não é?" —— disse ela, com o mesmo tom ameno de quando começara a falar. —— Existe algum porquê para eu não ficar? —— respondeu-a, sorrindo.

"Meu amado filho, Yami, esta espada agora é sua."

A frase ressoou em sua mente. —— "Quem me disse isso? Que espada é essa?" ——  indagou-se mentalmente. Por mais que a sensação agradável lhe preenchesse por inteiro, algo não parecia certo. As palavras que surgiram em sua mente já pareciam ter sido revisadas diversas vezes por Yami, não obstante, não era possível recordar quem lhe havia dito elas

"Seja a luz que ilumina o caminho!"

—— Pai... —— disse o rapaz, enquanto seu semblante mudava. A imagem de uma espada de pele de tubarão tornou a sua mente e, em seguida, o nome. —— Samehada. —— falou abruptamente ao mesmo tempo que seu corpo virava-se para a direção a qual havia guardado as suas armas anteriormente. Elas não estavam lá. —— O que fez com minhas armas, moça? —— Yami levantou-se, desengonçado por conta de seu tamanho e pelo tamanho minúsculo da casa. —— Algo não está certo... —— finalizou, fechando os olhos e buscando manter a calma.

O corpo do rapaz quase entregou-se quando a mulher tornou a investir com palavras doces e gentis. —— Você tem razão, está sendo generosa... —— respondeu, tornando a ser anestesiado pela serenidade do ambiente. Seus olhos tornaram a abrir. Os cabelos negros brilhavam sob o sol forte que entrava pela claraboia do seu quarto; seu rosto estava quente e sua língua amarga. Lentamente, Yami levantou seu corpo da cama, caindo de volta no acolchoado em seguida. Permaneceu deitado, imóvel, por alguns segundos, concentrando sua energia para tentar levantar-se mais uma vez e então o fez. Um arrepio transpassou-lhe a espinha ao mesmo tempo que seus pés sentiram a friagem no solo, uma sensação que apenas a manhã nas cordilheiras proporcionava.

Uma mão foi a boca tentando inutilmente conter um bocejo, enquanto a outra, esfregava-lhe os olhos, tornando-os avermelhados por conta do leve descuido ao fazê-lo. O aroma do café guiava os seus passos quase como um hábito em todas manhãs e seu despertar completava-se apenas a partir do seu primeiro gole da bebida amarga. Aquela parecia uma manhã normal, tirando o fato de algumas coisas estarem diferentes, por exemplo, o barulho que assolava a residência.

—— Yami, venha tomar café. —— clamou, da cozinha, uma mulher. Uma sensação de Dejavu lhe cobriu a espinha, no entanto, era como se faltasse algo. Após fitar os arredores do quarto, encontrou uma namoradeira vazia ao lado de um espelho. Ao aproximar-se, um semblante sério e um corpo robusto foram refletidos. —— Mas eu sou apenas uma criança... Como pod... —— sua fala fora interrompida pela do homem no espelho. —— Você nunca será mais forte que o seu pai já que não consegue perceber o que tudo isso significa. —— vociferou, como se tentasse lhe alertar sobre algo. —— Mas quem é meu pai? —— retrucou, fortemente, cerrando os olhos em seguida.

A pergunta reiterou-se na sua mente repetidas vezes, até que um clarão lhe trouxe a resposta. —— Eijiro... —— respondeu a si mesmo. Lá estava Yami, de volta a cozinha enevoada onde a paz reinava. Os olhos do Jōnin fitaram o da mulher a sua frente. Durante alguns momentos, em meio a devaneios repentinos, o jovem a encarou. —— Seu filho não voltou e eu sinto muito, mas não posso preencher o vazio no seu peito. Apenas você pode. Além disso, há algo pelo qual eu preciso lutar e uma convicção a qual eu preciso proteger. —— finalizou, enquanto buscava manter-se concentrado nos olhos da mulher a sua frente.  

A medida que as palavras cóleras eram proferidas pela mulher instável, o mundo ruía.

Por um breve momento, a vista tornou-se escuridão.

—— "Genjutsus são técnicas que são empregadas do mesmo modo que o ninjutsu, requerendo chakra e selos de mão. Porém, a diferença primária entre ambos é que os efeitos do genjutsu são ilusórios; ao invés de atacar o corpo da vítima, como taijutsu ou ninjutsu, técnicas de genjutsu manipulam o fluxo do chakra no cérebro da vítima, conseqüentemente causando uma perturbação nos sentidos." —— citava o instrutor da Academia Ninja da Aldeia da Nuvem.

Os olhos de Yami permaneceram fechados até o final da explicação e para sua surpresa, não foi possível abri-los. Por mais que não houvesse como enxergar aquilo que o rodeava, o ambiente aparentou silenciar-se, lentamente.

Daquela maneira, o Jōnin começou a examinar diversas situações que constituíram a sua vida. O seu treinamento com Sasaki; as primeiras dificuldades enfrentadas como um Genin; As primeiras missões bem sucedidas, tudo. A sua coragem e firmeza desmanchavam-se a cada cena. —— "Esse é o meu fim?" —— questionou-se, mentalmente, enquanto observava Iroshi alegrando-se com suas conquistas.

Após um momento imerso em um verdadeiro mar de escuridão, uma imagem veio a sua frente. De início, Yami imaginou que era a efígie de seu pai, no entanto, era a sua própria. —— Você se tornará um homem maior que o seu pai, Yami. Mas você precisa querer livrar-se das amarras mentais. Essa situação é apenas um pequeno obstáculo, quando comparado contra os que estão por vir. Desvencilhe-se e cresça... —— concluiu, esfumaçando-se em seguida.

—— Eu não posso desistir. Ainda há muito para conquistar, senhora. —— disse o rapaz, respirando profundamente e mantendo a calma. Yami percebeu que o seu fim ainda não chegara. —— Esse é apenas o começo... —— completou, buscando uma maneira de desvencilhar-se das amarras ilusórias que o estorvavam.

As palavras de Yami foram silenciadas e uma modificação mais acentuada fora formada sobre a realidade ao seu redor. A sua visão fora recomposta a tempo de observar os traços angelicais e sublimes, da mulher, desfazendo-se. As marcas do luto. As marcas da perda. As marcas da solidão. Era possível observá-las através dos traços desgastados dos olhos e das marcas de expressão.

—— Sinto muito, de verdade. —— disse o garoto, antes de ser engolido por uma torrente de escuridão. Rapidamente o cômodo fora inundado por uma espécie de gosma preta e fria, que o fez adormecer os músculos.

Seu corpo flutuava, leve, através do mar obscuro. Era possível ouvir uma respiração ofegante através do vazio. Não restava outra opção ao Jōnin senão apegar-se aquilo que lhe motivara a seguir em frente. Aquilo que lhe fazia ansiar por vencer todos os obstáculos a sua frente; aquilo que lhe fazia levantar-se após os fracassos.

O homem respirou profundamente.



As sentenças ressoaram em sua mente como um mantra harmonioso. A calmaria transmitida através daquelas palavras era indescritível. Algo que nenhum Genjutsu jamais pudera lhe proporcionar, nem mesmo os prazeres da carne ou da vida.

Palavras da pessoa mais importante.

—— Seja luz, Yami. —— concluiu o garoto, antes de ser preenchido por uma serenidade inexplicável.

E assim foi. Yami tornou-se luz.

O brilho da sua serenidade resplandeceu através do ambiente e suprimiu as trevas que o circundavam. A ilusão fora desfeita. Demorou alguns segundos até que as pupilas se acostumassem com o brilho natural do ambiente.

—— E-eu, sinto muito, senhora... —— disse o garoto, enquanto observava o corpo desfalecido, da mulher, estirado no chão. Os móveis detinham um aspecto desgastado, a poeira sobre os mesmos reforçava ainda mais as suposições do Jōnin. —— Você realmente deve ter sofrido muito. Espero que tenha alcançado a paz, depois de tanto tempo... —— concluiu o garoto, enquanto aproximava-se, para retirar os cabelos alvos do rosto da mulher e para fechar-lhe os olhos.

O arranhado da madeira deslizando contra a parede e em seguida o baque da arma caindo no chão, tomou a atenção de Yami brevemente. As suas armas estavam no mesmo lugar onde as havia guardado. Após alocá-las novamente em suas costas, foi possível observar os outros cômodos, antes não visitados. Móveis empoeirados e desgastados. —— Você passou muito tempo sonhando com a possibilidade de alguém preencher o vazio que o seu filho deixara e esqueceu de viver. —— falou, suavemente, enquanto observava através do arco da porta, o corpo moribundo.

Estranhamente, Yami permanecia em seu estado calmo, este que fora adquirido alguns momentos antes. —— Obrigado por me ensinar algo... —— concluiu, apanhando o corpo da senhora e o carregando até o hospital, para que pudesse ser devidamente velado.