ㅤㅤUre o olhava intrigado.

ㅤㅤMesmo fazendo apenas alguns dias que haviam se conhecido Eru desorientava o pobre Ure como ninguém nunca antes fizera.

ㅤㅤ– O que passou pela sua cabeça quando desafiou o Asahi? – Não pôde conter-se.
ㅤㅤ– Nada. Ele é arrogante e prepotente e tive vontade de chama-lo para um duelo. – As palavras vinham secas em sua garganta tal como a derrota acachapante que havia sofrido para o próprio Asahi, a quem se referia.
ㅤㅤ– E você também não é? – Eru fulminou-o com os olhos após a indagação, em especial pela comparação entre ele e o Prateado.
ㅤㅤ– Não temos nada a ver. Nada. – Era mentira, e ele não sabia. Eram mais semelhantes do que podia imaginar.

ㅤㅤSentava-se sobre a grama, abaixo de uma árvore com folhas verde-musgo e sem nenhuma flor. Ure comia uma maçã e os dois tinham os olhos dispersos por entre o relvado ambientado no cume da montanha. Ao longe o castelo fazia-se visível como uma enorme cidade de pedra escondida pela neblina. Eram seis horas da tarde e a névoa típica do País da Água criava naquele local um clima plácido e frio.

ㅤㅤ– Você dominou muito bem as respirações do paraíso. Foi até o estágio dois, certo? – Foi perguntado e não soube responder. Não se lembrava.  – É uma raridade alguém conseguir usar aquela técnica e você ultrapassou até o segundo estágio em apenas um dia. Incrível, Eru. – Depois do soco não me recordo de mais nada... Asahi tinha lhe humilhado perante a todos os outros aprendizes do mosteiro. Por sorte Kaguya Eru era um jovem orgulhoso e encontrou em sua mente maneiras de explicar e apaziguar a falha para si. Ele já tinha mais experiência do que eu no uso da habilidade. E eu o subestimei também...

ㅤㅤA figura mais citada naquela conversa decidiu fazer-se presente como um fantasma. Asahi de Prata tinha um complexo de superioridade que exalava a quilômetros e seus passos eram altivos como de um senhor Feudal. Não seria surpresa se de fato descendesse de alguma linhagem nobre.

ㅤㅤ– Eru Kaguya. – Lançou-lhe um chamado imponente. O garoto dos ossos fitou sua silhueta coberta pela neblina e se levantou, posicionando-se como se fossem se enfrentar novamente.
ㅤㅤ– O que quer? – O Prateado nada respondeu, contentou-se em apenas parar ali, obstruído pelo nevoeiro e com seus longos cabelos cinzentos esvoaçando. Era como um herói num campo de batalha. Um rei. Verme. – Responda! O que quer? – Alterou a voz e Asahi conseguiu o que queria.
ㅤㅤ– Temo que nada, infelizmente. – O silêncio depois daquilo foi mais doloroso do que uma adaga cerrada. Asahi então desapareceu como havia aparecido.

ㅤㅤSó muito mais tarde Eru conseguiria mensurar o impacto que aquela derrota iria trazer para si, para seu psicológico.

ㅤㅤAmbos, ele e Ure, tornaram ao castelo, e antes que cruzasse o portão principal já havia decidido que partiria naquele mesmo dia. Já chega desse lugar. Mais uma vez seu impulso escapista lhe agarrava pelos pulsos. Mesmo acautelado que o clima mais nevoento dificultava a descida da montanha ele tracejou o caminho até seu sopé.

ㅤㅤ– Acho que... foi um prazer, eu acho. – Ure falava com ternura e um quê de arrependimento. Talvez achasse que havia falhado com Eru.
ㅤㅤ– Foi. O tempo que passei aqui... – Deu um olhar panorâmico para a paisagem, o palácio, o riacho, o pátio à sua frente. – Foi legal. É. – O máximo que conseguiu dizer sem que parecesse ser falso.
ㅤㅤ– Se cuida... toma. – Envolveu-lhe com um agasalho feito de linho escuro. – Vai ajudar você a não morrer de frio na descida. Os ventos marítimos atingem as laterais da montanha com bastante força. – Foi um gesto bonito e Eru o agradeceu por aquilo. Não era tão apático quanto aparentava. – Você pode voltar aqui uma outra vez. Estaremos de portas abertas. Já sabe onde nós estamos. – Mais um olhar abrangente para aquele cenário e foi rápido em encontrar a resposta. Não. Nunca mais quero ver esse lugar.
ㅤㅤ– É possível. – Foi o que respondeu contudo.

ㅤㅤApanhou tudo o que havia trazido e rumou pela trilha delimitada da descida. Os monges não desciam até a base da montanha, exceto por um deles, que fazia essa viagem para buscar suprimentos e mantimentos, fora este nenhum outro quase nunca tinha contato com o mundo externo ao mosteiro. Isso não é para mim. Era um espirito livre demais para que se prendesse ou filiasse a alguma coisa. E algo tão restritivo como aquela ordem não poderia apetece-lo.

ㅤㅤOs pés e as mãos iam apoiando-se nas rochas protuberantes que outrora serviam de escalada. A visibilidade tênue o dificultou consideravelmente a ponto de em mais de um momento ter que usar de seus ossos para não despencar montanha a baixo. Droga...

ㅤㅤPegou-se fixado por uma projeção de seu úmero expelido e lhe servindo de apoio, um outro ossos servia de base aos pés, senão isso já estaria com o corpo estirado no sopé do grande monte. Fez então como uma alpinista, furando a rocha com a extremidade pontiaguda de suas estruturas calcificadas e seguindo para baixo. Furava, certificava e furava novamente, e este esquema se repetiria até que chegasse a mais ou menos cento e dois metros da altura do mar. Levantou a vista e viu lascas de pedra e pó caindo sobre seu rosto, e logo em seguida uma maior o atingiu. Com quase um metro de comprimento o pedregulho atingiu sua face e o fez soltar-se das estacas de ossos que usava para se manter preso a montanha.

ㅤㅤA queda o mataria com certeza. Pensa. Pensa! Fez se expelir de seu corpo três ossos com mais de três metros de comprimento, de relance óbvio, puro extinto de sobrevivência. Por sorte as ossadas conseguiram encostar no rochedo e teve sucesso em impedir seu tombo mortal. A respiração era ofegante como a de alguém que acabara de se afogar. O coração doía, apertado como num nó duplo. Fitou o que estava abaixo e um alivio miraculoso lhe acometeu.

ㅤㅤ...Agora, eram apenas vinte e nove metros que o separavam da terra firme. Porém, muitos e muito quilômetros o afastavam de tantas outras coisas...

Notas:

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