Tive a sorte de encontrar um bar vazio para a rotineira noite de apostas e comidas com Kaname. Bom, no caso dela estendia-se a bebidas também, o que eu não apreciava muito. Às vezes um fuminho ou outro, mas o álcool jamais me desceu, certamente pelo gosto horrível. Independente dos gostos, comemoraríamos minha promoção, o que fazia da noite não tão rotineira assim e, segundo ela, proporia um desafio diferente, jamais sequer considerado antes. Talvez eu até considerasse o desgosto pela maldita bebida e a provasse um pouco.

Os dez primeiros minutos de atraso quase não existiram. Ocupei minha mente com umas dezenas de coisas importantes e sequer notei a pequena porção e entrada já pela metade, sem Kaname. A partir do décimo quinto minuto os olhos já começaram a ficar mais ágeis, atentos nas entradas e nos fragmentos de rua que as brechas nos vidros do bar deixavam escapar. Com meia hora de atraso já estava aguardando a chegada de um frasco com trezentos ml do que a desgraçada sempre pedia. Quando chegou, aproveitei para garantir mais duas porções de batata e carne e deixar tudo devidamente acertado.  

Subestimar seus oponentes e desafios é sempre infantil e extremamente burro de se fazer. Abre brechas para inúmeras situações de desvantagem, surpresa. Para o meu azar, ou sorte, fui ingênuo o suficiente para subestimar meu inimigo. Na verdade, fui garoto ao sequer considerá-lo inimigo. Houve um intervalo de cinco minutos entre o primeiro e segundo gole. A última vez provando bebida fora há anos, ainda na infância e em meio a floresta, no auge da curiosidade infantil e capacidade de ignorar o que nos faz mal em nome da descoberta. Agora eu já sabia qual gosto teria, sabia o que viria pela frente, mas mesmo assim tornei a virar a segunda, terceira e quarta golada que secou o recipiente. Confesso que na segunda alguma coisa já soava diferente no tato do meu rosto.

Começou com uma insensibilidade na pele do rosto, uma liberdade estranha no corpo e na mente e nada em seguida. Depois eu estava em um beco, na verdade parecia um, mas tinha um espaço circular limpo, calçado e escuro. Quatro silhuetas grandes e certamente masculinas me cercavam, tenho certeza que minha capa estava envolvida na história. Depoios, nada. Novamente no beco, agora com dois corpos caídos ao chão e contorcidos de formas antinaturais. Ainda me cercando restavam os dois rapazes, nitidamente assustados e indecisos sobre o que fazer. Sem esperá-los agir, fui veloz como vento em direção ao da frente e o pé direito enroscou no chão na metade do caminho. O que seria uma queda dura e direta na calçada se transformou em uma rolagem rápida e habilidosa para frente, um chute mirado no queixo e cancelado no último instante, dando lugar a rasteira com o outro pé que deveria estar servindo de apoio para o corpo, mas quem fazia eram as mãos. Depois, escuro novamente.

Acabei por acordar “próximo” de casa, poderia ser pior que dois quilômetros longe, mais de doze horas depois da comemoração falha. No mesmo dia e na semana seguinte inteira, ouvi boatos sobre ocorridos que me remetiam às poucas, mas vívidas memórias daquela noite. Certamente iria atrás das lembranças perdidas de alguma forma.

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