O corpo humano é frágil. Ponto. Não obstante, também é uma maquinaria complexa. Pode ser objeto de desejo, fonte de vergonha.

Mas também pode alimentar.

Nesse exato momento, vagando sem o mínimo de controle sobre si mesmo, completamente perdido em pensamentos, debaixo da foice da lua, banhado somente numa fraca luz, entrecoberta por nuvens errantes e pela sombras, dedos compridos, dos prédios altos na rua. Havia acontecido tal coisa — o total descontrole, a perda de si — uma vez até então, embora fosse algo destinado a acontecer continuamente enquanto Shizuke não se entregasse de corpo e alma a quem era; tolo, não entendia que adiar cada vez mais seu banquete de carne humana causaria danos muito maiores ao seu entorno, como fazia agora, vagando espectralmente sobre as calçadas, semi-envolvido pela escuridão que se abatia ao início da noite.

Naturalmente, muitos olhavam hesitantes para a aquela coisa, a qual recusavam de taxar como ser humano, pelo jeito como se movia, com olhos fixos e vazios encarando o vazio, cabelos desgrenhados e a espada na mão, raspando a ponta da lâmina no solo por onde passava; mais hesitantes ainda olhavam quando apercebiam-se do brilho da tira de ferro, na qual gravada estava o símbolo da Folha. Naturalmente, também, oficiais desviavam os olhos, a boa e velha conivência com seus colegas de profissão. E assim ele seguia, vagando de beco em beco, apenas esperando pela vítima desafortunada a cair perante ele e sucumbir — claramente, não funcionava mais como deveria, pois um golpe de suas grandes mãos levariam ao solo, de joelhos, implorando, até mesmo um ninja de mesma patente. A fome, aliada a estrutura única de seu corpo, de seu órgão predatório e suas necessidades específicas, roubava-lhe a consciência. Envolto naquela névoa negra, mal podia arranhar a superfície.

E, passado longo tempo, quando as nuvens haviam já se aglomerado em manchas brancas de algodão contra o firmamento, ele veio a encontrar sua presa. Estava já morta, embora o fim fosse recente, o corpo quente. Nesse momento, ao que parece, até mesmo seu corpo foi tomado de confusão, pois não demonstrou nenhuma das respostas fisiológicas naturais: ausente a salivação, as pupilas dilatadas, a elevação dos batimentos cardíacos; nada, apenas Shizuke vestido com seus trapos, apático. O ar saia da boca em pequenas lufadas, as quais transpareciam, ofegantes, o subir e descer de seu peito. Sombras inexistentes passavam correndo, voando, vultos negros o cercando por todos os lados. E ainda assim seus olhos remanesciam mortiços. Pensou ter visto o cadáver encara-lo com olhos bem abertos, não, tinha certeza. Estapeou-o, ouvindo o estalar da traqueia se partindo. Contudo, o morto seguia encarando, sua boca se contorcendo num riso escarnecedor. Estapeou o morto novamente, de novo, de novo. E de novo. Ele simplesmente não parava de olha-lo com aquelas grandes esferas brancas e mortas, pendendo fundas em suas respectivas cavidades, como pérolas não polidas. Começou a bater sem cessar no corpo sem vida, não desaparecendo o semblante de troça, até que um naco de carne e ossos fendeu, dando ao Yoshimura um vislumbre do interior daquele cadáver. O cheiro era horrível, mas aquilo logo lhe veio à compreensão — mesmo uma mente enevoada como aquela compreendia os odores da morte — e ele enfiou a mão lá dentro, remexendo em tudo que era vermelho, sentindo as estranhas texturas que revestem o interior. Quando pegou na sua mão aquela coisa diminuta, o coração do homem, sentia ele batendo fracamente, quase como que ainda vivo, e não tardou para que seu próprio coração assimilasse o ritmo. Batia tão fraco, tão lento, que ele se viu abatido por uma angústia inconcebível, um tsunami afogando-o em suas águas, carregando ele para bem longe junto com casas e um sem número de outras pessoas.

Quando voltou à si o alívio tomou conta. Sabia ter passado o suplício da fome, aquele cenário desolador em que não era dono nem do corpo nem da própria mente. Era refém de quem era e seria ainda, por muito.

Hp: 750. Ck: 1000. RC: 1000.

Spoiler:

Spoiler: