Jaziam sob a relva gélida dois corpos. Um homem e uma mulher, ambos shinobi da vila da Folha. A expressão fúnebre em seus rostos denotava uma surpresa estranha, como se houvessem sido acometidos por um golpe peculiar e inesperado. O assassino, obscurecido pela incerteza, reinava incontestável nas vítimas que tinha; não deixava rastros e curiosamente atacava pessoas que em seu arsenal esbanjavam técnicas únicas, o que demonstrava ser um guerreiro habilidoso. Sua próxima vítima, todavia, parecia certeira naquele dia.

Os olhos carmesim e cabelos desenfreados ao vento perambulavam sob as vielas invernais de Konohagakure no Sato. Seu galgar era incerto e desenfreado, e a garota não parecia se importar em ter um destino. A noite logo mais cairia, e com ela o sibilo dos ocultos.

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Galgava sem destino perante as vielas de Konoha, sem saber o que exatamente buscava. Tornara-se rotina simplesmente trilhar trajetos inconclusivos, que não levavam à canto algum; quiçá pensassem que eu era uma mendiga vagando por ai, e realmente era o caso, parando para pensar. Há quanto tempo não repousasse em uma cama decente? A natureza havia se tornado minha residência, de modo que conseguir comida ou abrigo era simples, mas estressante. A bênção da deusa da caça rondava meu ser, porém, em meu ultraje ainda burguês, queria ao menos uma vez poder comer algo um pouco mais luxurioso. Pequenos sonhos de alguém sem nome.

Sim, meu eu sem nome. Shigure ou Velvet, parecia que chamavam-me por fonemas indescritivos que não jaziam em seu núcleo valor algum. Fazia tempo que mantinha aquela dupla identidade póstuma, e até então apenas Shizuke, com seus sentidos canibalescos que poucos eram "abençoados" de ter, fora capaz de notar a diferença. Fitei-me de cima, a figura ligeiramente mais baixa e de aparência completamente diferente. A transformação criara até mesmo óculos falsos que contrastavam com minha visão relativamente perfeita; as lentes eram praticamente nulas, como se fossem uma armação oca e meramente estética. Ainda assim, estava há tanto tempo presa naquele espectro tão anômalo que gradativamente seus encantos afloravam em mim, no mais profundo âmago de meu ser já estava acostumada em ser outra pessoa. Fascinante, e ao mesmo tempo macabro.

Indagava-me sem hesitar, e quase não notei o pôr-do-sol que assolava o mundo mais uma vez. Era tempo: sempre que o badalar do fim de tarde era anunciado, rumava ao descampado mais desértico que pudesse encontrar e passava a habituar-me em novas práticas. Dessa vez, teria eu como aprofundar-me em minha linhagem e no Shikigami no Mai?

Parti.

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As árvores desvencilhadas permaneciam. O alvorecer da destruição ainda era pertinente ao descampado no qual a mulher se encontrava, irradiando de seu chão sem vida pequenos fragmentos de poeira reluzente. Por qual motivo sempre retornava para a planície desértica se não uma mísera pitada de auto reconhecimento de suas capacidades destrutivas, um pouco de combustível para manter a fagulha de seu caminho acesa. Caminho este, tão longo em sua trilha, que demandava sacrifício imenso. Tateou o solo com o bico da bota e virou-se para o horizonte. Absorta em devaneios, pôs sua mente de prodígio para trabalhar. Traria do vazio experimental uma dança tão magnífica que superaria àquela que já ostentava em seu âmago sublime arte; uma dança efêmera.

Não obstante à meditação da garota, as folhas — as poucas que restavam, pelo menos — farfalhavam distantes, banhadas pelo luzir do astro lunar. Tilintavam, como se o espectro da morte pairasse sob elas. Era um campo difícil de se manejar a furtividade, mas para a figura oculta pelo manto descolorido era uma tarefa simplória, ainda que de grande irritação. Saltou, a inércia abandonando seu corpo no momento em que postou-se ante o topo do tronco deformado. E então, fitou. Fitou a forma estática que dos sonhos serenos e ininterruptos tirava uma nova força. A força que, para ele que tanto aguardava pela espada absoluta que pudesse perfurá-lo, transfiguraria-se sem tardar.

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Bailaram ante o ar os papéis sinuosos e não tardaram em cobrir o descampado. O pouco vento que batia denunciava que algo estava errado, o fenômeno deveria cessar de existir no instante que a nuvem alva deixara seu lugar de origem e as folhas haviam de murchar no solo. Todavia, não o fizeram. Carregavam consigo camadas consideráveis de chakra que as faziam crepitar em seu voo sublime. A Dança do Shikigami se completou logo então, e pus-me a praticar a teoria que findara em minha mente momentos antes. Manejei a aura para que encobrisse os papéis com seu esplendor, adicionando um talento nato: a manipulação de Poeira. Infelizmente, não era completamente meu domínio a natureza, afinal, viera à luz sua existência em um momento inoportuno que recuso-me a lembrar salvo por breves reiterações; o tormento celular e mental degenerando memórias e espírito, transmutando minha linhagem implantada naquilo que de fato deveria ter. Por tal, não era espantoso minha inabilidade de mesclar as duas técnicas: ambos se limitavam em áreas diferentes e sua união deveria nascer pela maestria na liberação de Poeira.

As horas se foram, atingindo o pico da madrugada. Dei graças aos talentos inatos com que os deuses haviam me abençoado. Cada falha culminou em nova experiência, alojando-se em uma bola de neve que acometeu nas barreiras criativas e orgânicas que me impediam de acessar todo o potencial que tivera; porém, faltava algo além. As folhas pareciam fogos de artifício e agiam como tal: os pequenos bolsões explosivos choravam de seu interior uma luz intensa e dourada, e tão logo quanto surgiam cessavam de existir. Tão efêmeras quanto a vida. Daí, findou-se um título apropriado para o jutsu. A Dança do Shikigami efêmero.

Teria o hospede inconveniente gostado da performance? Postava-se tão veemente, absorto naquela apresentação por horas. Quiçá esperasse anular os ruídos com sua chegada, mas o deserto que estávamos guardava muitas obstruções na empreitada.

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Sua impaciência crescera com fervor e quase eclodiu em sua característica dança mortal. Tahomaru era seu nome, ainda que seu passado não importasse. Em seu corpo repousavam magníficas zero cicatrizes, e se orgulhava de dizer que nunca havia sido atingido por qualquer arma enquanto em combate. Oriundo do país do Aço fora dito ser o escudo mais formidável que passara pelo novo mundo Shinobi: nem mesmo os praticantes do Ninshuu eram capazes de perfurar seu escudo de bronze, indo ao invés disso ao encontro com a naginata que empunhava. Até que, por ironia do destino, Tahomaru se encontrou no ócio do combate; incapaz de ser ferido, buscou mais e mais oponentes em prol de uma vez sequer ser capaz de sentir qualquer resquício de dor, qualquer prova que fosse que estivesse vivo.

Os fantasmas de seu passado o fizeram recolher o manto da furtividade.

—— Fora capaz de me perceber, admirável.

Os ventos rugiram, farfalharam as folhas que jaziam em cinzas e as ressuscitaram de seu sono eterno. O homem convocou o tornado póstumo e de seu lugar saiu a figura robusta e impenetrável de um shogun. Era um homem de poucas palavras: esperava que a mera miragem denunciasse suas intenções; parecia, inclusive, outra pessoa. O homem que se valia das sombras para viver não mais estava entre eles, dera seu lugar ao genuíno escudo supremo. Bradou o longo e afiado bastão e proclamou, com seu imensurável bravado, seu desafio.

—— Sou Tahomaru dos Sete Lanceiros de Ashina, aquele que se conhece como o "Impenetrável". Hei de agraciar-me com a dor da batalha, ou terei sua cabeça!

E irrompeu em um espectro remanescente de trovoada.  

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O peso de seu corpo ribombou a relva acinzentada e estardalhou a pouca fauna que se preservava. Outrora, julguei ser um assassino astuto que estava ali para ceifar-me a vida — arauto de Artorius, cujo intento de retribuição logo se manifestaria. Espantoso, porém, era a verdadeira figura que se maculava com o véu dos dissimulados antes de atracar-se contra seus alvos.  Alto, robusto, trajava consigo uma couraça oriental que lhe dava o título de shogun; uma longa lança com uma lâmina afiada na extremidade e, o mais visível e característico, um escudo largo e adornado com saliências e deformações ligeiras. Oriundas, com toda a claridade de seu discurso, das guerras que travou.

Investiu com louvor perante a mim, apesar dos pesados aparatos seus movimentos eram tão ágeis quanto os de uma gazela, de modo que o sibilo de seu pique desembaraçou alguns fios de cabelo ao passar próximo destes. Irrompi para trás e cortei a proximidade ligeira que tivéramos. Sua resposta ríspida veio na forma do dardo que acometeu o ar e minha garganta. Não me deixaria amedrontar, todavia, e logo teci selos habilmente em prol de disparar a técnica que não há muito dominara. Qual fosse as intenções do guerreiro assíduo, mostravam-se irrelevantes no calor da batalha e minha vontade incessante de viver, quase como a de um animal selvagem.

Os Sete Lanceiros de Ashina. Dentro da curiosidade que habitava meu ser, quiçá buscasse conhecê-los.

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A lança capaz de perfurar deuses atravessou os céus em um resplendor áureo, cortando o ar e desmantelando as moléculas de oxigênio que perpassavam seu trajeto. Quem fosse o alvejado pelo feixe hei de estremecer em terror, tal era a capacidade destrutiva da liberação de Poeira; porém, de um ímpeto orgulhoso, o shogun findou o grande escudo ao chão e postou-se ante este, como se estivesse preparado para subjugar até mesmo um exército. E de fato estava, pois Tahomaru parecia crédulo de ser capaz de apaziguar a cólera dourada que o acometia.

Claro, já passara por situações como aquela. Seria descabível se auto proclamar a defesa absoluta se não pudesse confrontar com absoluta dominância as práticas do Ninshuu. As inúmeras guerras que travou e saiu vitorioso não ostentavam meros samurais com espadas de aço se digladiando em um confronto humano: seu histórico de vitórias denotava uma lista avassaladora contra shinobis de várias etnias, de várias habilidades diferentes, todos deitados sobre a mão de ferro do lanceiro indestrutível. Seu orgulho repousava no escudo de bronze cuja bênção de nunca ruir perdurava até então; os deuses já haviam predeterminado sua vitória ante a jovem no momento em que esta usufruiu de sua linhagem supostamente absoluta. Todavia, sentiu um leve desconforto com o prolongar da luta: ponderou no que trilhava tanta resolução na garota, que, ao contrário de incontáveis de seus oponentes, não tremia perante seu nome. A faísca que forjava sua determinação e veemência no combate o trazia algo próximo de temor.

Não obstante, era seu fim. O escudo recebeu em todo seu âmago a rajada áurea e proclamaria então o crepúsculo do embate. Os ventos ribombaram com o choque, fazendo a poeira erguer-se em uma cortina que pairava pelos lados do shogun. A surpresa da kunoichi não era de espanto. A lança absoluta foi parada pela defesa absoluta, então era natural um evento tão agressivo como o que demarcava o campo. O bronze rangeu em um som estridente ao mesmo tempo que o feixe se desfazia em pequenas partículas. E então, luziu em um tom de safira que contrasteava com o assolado que estavam, aumentando o ruído agudo que emitia com o fenômeno. A lança também retornou às mãos, o fumo esbranquiçado realçando sua forma.

O que se sucedeu abalou as estruturas que pouco restavam; a onda de choque explodiu o descampado e varreu para longe tudo que ousara permanecer em seu caminho com uma força descomunal, refletira com o dobro de poder a técnica que outrora amparava. O trunfo que trazia consigo a vitória certa, assentiu Tahomaru.

Para a donzela de olhos carmesim sobrara apenas o fantasmagórico breu quando se viu lançada pelos ares.

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Tudo que se via era a escuridão.

O impacto reverberou em meu corpo como uma pedra em um rio, restando apenas meu cadáver espatifado ao chão após segundos de voo a deriva. Se não fosse a dor de cabeça estridente que nauseava meus sentidos, estaria crédula de que havia desmaiado com o contra-ataque súbito. Ademais, estava claro que enfrentava um oponente formidável, quiçá aquele que quebraria minha barreira entre a liberação de Poeira. A confiança exacerbada parecia absoluta tolice, mas a certidão de minha sobrevivência havia de ser legítima: afinal, precisava cumprir minha promessa de matar Artorius, simples assim.

O tirintar de meus lábios provindo do choque repentino fez os dentes rangerem, ao passo que o movimento capenga eriçou-me de volta ao mundo real, ainda baqueada pela técnica que o escudo de bronze proferira. Não obstante, estava viva, e era só isso que bastava, por agora. Espreitei o olhar abstruso até que sua nitidez se manifestasse,  então, ereto no mesmo lugar que disparei o jutsu, fitei-o. O shogun fez uma careta que julguei ser surpresa e reformulou a mesma feição dura que outrora tivera. Assumiu a postura de combate mais uma vez.

A epifania ocorreu em menos de milésimos.

O espírito da destruição possuiu-me, às ordens de Shiva comandou-me ao pináculo da criação e destruição. A maldição de Brahma decairia sob o guerreiro pela heresia de ousar equiparar-se aos deuses. Ao fiel avatar restara o conhecimento e a verdadeira espada da dissolução, sua nova arma para brandir no caminho que traçava tão assiduamente. A maestria se soube tão subitamente que quase não percebi estar usando-a, lembrando um remanescente de ilusão pelo tão pouco tempo levado para a formação do feixe desmantelador.

Senti as paredes se desprenderem e abrirem um novo horizonte diante de meu vislumbre: e corri adiante, buscando um novo limite.

Quiçá o shogun estivesse tão surpreso quanto a mim ao ver a mesma investida de antes. Tão logo veio seu amparo, indistinguível  de antes, mas de tamanha inutilidade. As barreiras físicas haviam se rompido para mim, e tudo que restara de seu corpo robusto fora poeira e fumaça. O quão anticlimático fora a morte de Tahomaru, o Indestrutível.

Nem ao menos pude saber quem de fato era. Artorius poderia estar à espreita, havia de me preparar para o pior. As lágrimas de prata que emanavam do astro lunar decaiam sobre mim, da mesma maneira que as pequenas partículas de energia, extinguindo-se perante o obscuro véu da madrugada. "Já é tarde, hei de partir", concluí ao final.

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