As vezes, o benefício da dúvida é interessante, já que a incerteza é a raiz de nossos problemas. O cordeiro, que no caso, seria eu, caminhara mais que satisfeito na direção do antigo orfanato ao qual habitei. Uma recém recebida carta, indicava que minha presença era requisitada lá, uma vez mais, pelo mais jovens do local. Estaria novamente revendo minha família, sem qualquer sombra de dúvidas, os considerava meus próprios irmãos e irmãs, sem qualquer laço sanguíneo.

Tantas novidades para contar a todos eles, mesmo que estivesse mesmo afim de ouvir suas histórias antes de tudo. Sempre fui muito pacífico, do tipo que prefere ouvir à falar. E com a mente ocupada com ideias bobas de brincadeiras para nos divertirmos, tive sorte de conseguir manter o curso correto até chegar ao local. A mão direita se chocou contra a porta algumas vezes, chamando a atenção de alguém para me recepcionar. Por detrás daquela porta, minha família me aguardava, enquanto algo diferente os aguardava.

O choro vindo detrás da porta não me pareceu ser de felicidade, fazendo meu coração pular uma batida involuntariamente. A porta se abriu, revelando alguém mais que especial —— A-Akane-San? Quanto tempo! —— Gaguejei sem demora, enquanto as maçãs do rosto pareceram amadurecer. A vermelhidão chamaria muita atenção, então tratei de abaixar a cabeça para entrar.

O machucado no rosto de Yuri me chamou a atenção, mas não me parecia nada muito sério. —— Ouça sua irmã, Yuri-Chan. Você ainda não parou de se atrapalhar? —— Debochei, com um sorriso gentil, da jovem. Os outros foram se aproximando, aumentando o número de rostos conhecidos. —— Chihiro-Chan, Kota-Kun, Ako-Chan, Fumie-Chan e Taichi-Kun...há quanto tempo, pessoal! —— Sorri intensamente, estando novamente com minha família.

Toda aquela farra não duraria por muito tempo, já que a senhora Yuki já estava preparando a janta. Como poderia recusar tal convite? —— Mas é claro que ficarei, será um prazer jantar com minha família depois de tanto tempo —— Respondi sua pergunta com os olhos repletos de brilho, estava profundamente feliz com tudo aquilo.

A enorme comoção da família Hyakuya se fazia notável uma vez mais.
Todas as gargalhadas e os olhares, sentimentos que uma pobre alma em agonia jamais seria capaz de esquecer. Como uma simples cena como aquela, em uma reunião de entes queridos, se tornaria um inferno, jamais serei capaz de entender.

Os olhos, pasmos e arregalados, se focavam na pobre Yuri na outra extremidade da sala. Não havia nada o que pudesse fazer para ajudá-la, já está morta, não é? Pensei que talvez pudesse fazer algo por ela, mas nada podemos fazer pelos que já se foram. Me levantei, juntamente de Akane, enquanto a mesma foi até sua irmã, completamente fora de si. Foi então, quando minha razão de viver, foi tirada de mim. A morte de Akane jamais doerá menos do que doeu naquele fatídico dia. Se os anjos devessem tocar as trombetas do paraíso para ambas, poderiam muito bem tê-lo feito mais tarde. Elas eram muito novas para serem mortas.

A queimação se instaurou no meu corpo. Os dentes, se espremendo uns contra os outros, enquanto o desejo de matar era exalado pela pele, contendo cada vontade de circular o pescoço do responsável com minhas mãos nuas. Pensei em gritar, gritar o nome daquela que possuía parte de meu coração, mas de nada adiantaria, então fiz algo mais lógico —— Por que? —— Indaguei ao que se escondia na escuridão, o monstro sem alma que se atreveu a tirar minha felicidade de mim para sempre.

Sequer fui capaz de aguentar uma resposta, aquele monstro deveria sofrer e não tardaria para fazê-lo pagar pelo que fez. —— Você...já era. Hoje, você morre. —— Resmunguei, como se não fizesse questão que ele ouvisse, como se não importasse se ele ouviria ou não, aquilo era a verdade absoluta e nada poderia mudar isso. O tamanho da ira que borbulhava em mim não me impedia de pensar racionalmente, então avisei aos demais que deixassem o local, enquanto ganhava tempo para sua fuga. Os olhos focados na figura sombria que eventualmente visitaria o inferno, se tornaram avermelhados como o sangue de minha amada, que fora derramado no chão, injustamente. Esperaria que ele se revelasse para conduzi-lo a morte rapidamente.

Os olhos amarelados na escuridão não me assustavam, mas seu tom de voz me fazia tremer, por algum motivo desconhecido. As zombarias do desconhecido precederam  o disparo de um punhado de facas. Sorri ao perceber que não teria sido acertado e nem um de meus familiares, mas o sorriso foi arrancado de meu rosto quando as facas explodiram, destruindo todo o cômodo. Cobri os olhos para evitar qualquer resquício de fumaça ou destroços. Sequer tive tempo de reagir, quando uma grande rocha despencou do teto e caiu sobre meu corpo, prendendo-o contra o solo. Tentava mover os braços ou as pernas, inutilmente. Não havia como me mover. —— MERDA! —— Esbravejei, ainda coberto de ira contra o sujeito.

Ele então, se revelou, abandonando a escuridão e sua máscara finalmente pôde ser vista. Os olhos vermelhos e cabelos negros em nada me ajudaram a reconhecê-lo, ele era um total estranho, pelo que parecia. Sequer pude presenciar o que viria a seguir, mas as lágrimas rolariam de minhas bochechas, expressando toda minha indignação em não poder ajudá-los, toda a ira pelo que aquele demônio havia feito e toda a tristeza pelos meus familiares. Logo, a dor física se sobressaiu à psicológica. —— AH! —— Só o que pude dizer, quando a foice do desconhecido atravessou minha mão e seus risos diabólicos preencheram o local.

Todo o esforço em vão, ao que pareceu. Os olhos vermelhos, retomavam a coloração azulada, quando os restos mortais de minha amada eram depositados logo a minha frente, como forma de deboche. —— A-A-Akane...por que? —— Indagava-me, conforme as lágrimas só tornaram a aumentar. Seus olhos, frios e sem vida, tão próximos aos meus, me assombrariam para sempre. As chamas alaranjadas cobriram toda a vista, consumindo as paredes e o teto, enquanto alguns pedaços de tudo caía ao chão, sem sucesso em me atingir. Coloquei os dedos sobre as pálpebras de Akane, fechando-os gentilmente, como um último favor. —— Eu irei...te vingar, eu juro! —— Supliquei, conforme a fumaça no local me fazia perder a consciência, desmaiando no local.

Vozes, tanto de alívio, quanto de tristeza. A penumbra das pálpebras fechadas era tudo que conseguia ver, exceto quando as luzes se acendiam, criando vultos ligeiros e desformes, que sequer era capaz de compreender nos segundos que possuía de consciência. O tempo se passou rapidamente, quase como que instantâneo. Uma doce voz, repleta de nostalgia e doçura, clamou por mim, fazendo com que levantasse o tronco e abrisse os olhos. "Haru-San...", era o que dizia. Nada mais do que uma surpresa desagradável, a voz pertencia a Akane, que se manifestou diante de mim, como uma aparição tenebrosa e sangrenta. O sangue escorrendo de sua cabeça perfurada, fazia meu corpo estremecer por inteiro. "Você me deixou morrer, seu inútil", ela vociferava, demonstrando sua indignação.

Não havia o que fazer para mudar isso, então fechei meus olhos e respirei fundo, até que a voz sumisse e eu me sentisse bem novamente. Um médico entrou no quarto, perguntando como me sentia. —— O orfanato...o que houve com ele? E as crianças? —— Era só o que queria saber.

O único sobrevivente? Pensei, incrédulo com o ocorrido. As lágrimas penduraram-se aos cílios,
recusando-se a deslizar. Isso não pode ser verdade. Lutei em aceitar, mas não havia nada que pudesse fazer para mudar a realidade. Ao menos, minha alta havia chegado, então mal via a hora de me levantar e dar o fora daquele lugar — havia muitas perguntas para fazer.

Com o pé no chão, tateei com a sola o chão gelado, buscando algum chinelo para usar. Com a saída do médico, já estava de pé, analisando o meu entorno. Uma sala simples era essa, sem qualquer particularidade, exceto a figura encapuzada em minha janela. Amigão? Indaguei, sem entender quem poderia ser o indivíduo de primeira. Com a queda de seu disfarce, não foi difícil entender de quem se tratava. —— Sanae-Kun? O que faz aqui? O que houve com seu rosto? —— Foram as perguntas que precisavam ser respondidas no momento, mas quem sabe surgiriam mais.

A risada icônica do garoto já sequer se parecia com o que era antigamente, parecia mais gasta e vazia. E não era para menos, ele também teve de fazer sacrifícios, ele parecia entender o que significava ser responsável pelos demais. Terminado sua história, não pude deixar de mostrar preocupação para com sua irmã —— E ela...sua irmã, está bem? —— Esperei alguns segundos por uma resposta, até me tocar de um detalhe muito mais importante —— Espera...você disse...meses?

Ri, involuntariamente —— Vamos, não tem graça. —— Caçoei da revelação, julgando ser impossível meu repouso ter durado tanto tempo. O tom de seriedade do rapaz me fez enxergar a verdade —— Você...não está brincando... —— Sussurrei, incrédulo. Corri para a janela, apoiando a destra na lombar, no que havia restado da minha velha coluna. Os passos lentos e tropeçantes, demonstravam uma leve atrofia nos músculos devido ao desuso.

A paisagem não era tão bela quanto costumava ser. O ambiente cinza que circulava os arredores me impedia de crer em felicidade. Não haviam crianças e jovens se divertindo nas ruas, sequer podia ouvir suas vozes de alegria. Os mercadores, com suas barracas praticamente vazias e parcialmente destruídas. Algo havia acontecido ali enquanto estava apagado, provavelmente obra do homem mascarado. —— Diga-me...os responsáveis por isso, quem são? —— Indaguei Sanae, com os punhos serrados para conter a ira.

Ouvi atentamente à tudo. Com as fortalezas destruídas, pensei logo que provavelmente meus inimigos já teriam sido mortos. Não fui capaz de vingá-los, mas ao menos eles tiveram o fim que mereceram. Relaxei, respirando fundo e me despedindo de meu bom amigo. —— Entendo...então você realmente me ultrapassou e se tornou Chunin, ein? —— Ri alegremente. —— Espero que nos vejamos novamente, tome cuidado em sua missão. E obrigado por tudo, Sanae-Kun. —— O vi partir, com um sorriso no rosto.

Retirar a roupa de paciente foi o primeiro passo a se tomar, vestindo meus trapos velhos que vestia no momento do ataque. A bandana havia sumido, então precisaria tratar de pegar outra em breve. —— Até que não estou tão mal... —— Soltei no ar, as roupas não estavam assim tão detonadas, então ainda estavam adequadas para uso.

Parti para fora do recinto, olhando os feridos do hospital pelo caminho, notando um numero alarmante de feridos. Seriam todos eles vítimas da Kaoso? Me indaguei, sem tempo algum para me garantir da resposta. Apenas deixei o hospital, galgando até o campo. Precisaria exercitar meu corpo novamente, então um bom treino seria necessário.

Já não era mais o que eu esperava. O campo arruinado e estragado assombrava minhas memórias das plantações verdes e vivas. As imediações estavam vazias, não podia ver ninguém por perto, então pensei ter o campo todo para mim. Caminhei um pouco por ele, para encontrar uma região menos afetada pelos ataques, para que pudesse me sentir mais confortável, mas tudo que encontrei foi um sujeito.

O que esse senhor está fazendo aqui? Pensei em lhe perguntar, mas ele parecia ocupado com o que quer que estivesse fazendo. Quando houve contato visual, ele sorriu, se transformando em dúzias ou talvez centenas de papéis, alçando voo com gigantescas asas brancas. Não pude sequer falar algo, estava perplexo. O queixo foi ao chão no momento que de seu corpo se desprenderam diversos papéis que explodiram de encontro ao chão. —— O que é isso? —— Foi só o que consegui perguntar, conforme sua altitude diminuía gradualmente.

O velho senhor, feito inteiramente de papéis desceu dos céus, se parecendo com um anjo ou algo do gênero. Foi então que a ficha caiu e sua identidade foi revelada. —— Guren-Sensei?
Desde quando possui uma habilidade tão formidável? —— O indaguei, mesmo sendo ignorado e metralhado de perguntas.
—— Sim, eu estou bem, não se preocupe. Os ferimentos foram totalmente curados, pelo que me disseram. Estou pronto para voltar a ativa. —— O reconfortei, esperando que pudesse responder minha pergunta em troca.

Os olhos cintilaram em verdadeiro fulgor, exalando todos os desejos de uma alma atormentada pela fraqueza. —— Por favor, sensei. Me ensine! Preciso ficar forte para... —— Me silenciei, com medo de falar a verdade e perder a oportunidade. —— Preciso ficar forte para que meus desejos se realizem.

Ele se levantou, me indicando para também o fazê-lo. De pé, tratei de acompanhá-lo até onde queria me levar. Com uma bizarra e estranha instrução, talvez não fosse capaz de realizar a técnica, mas meu esforço talvez pudesse me guiar pelo difícil percurso.

Me sentei, com as pernas entrelaçadas, em uma posição típica de meditação. Com os olhos fechados, me lembrei de como meu mestre se parecia ao utilizar a técnica. Papéis, folhas, origamis, tudo se tratava da mesma coisa no fim. O chakra espalhado pelo corpo se dirigia para cada veia, na tentativa de fazer o todo ser transmutado em algo novo. Não sentia qualquer mudança, no entanto, provavelmente aquela tentativa havia sido falha.

A voz melancólica me atingiu em cheio, me fazendo repreendê-lo de imediato. —— Não é mesmo! Simplesmente não é tão fácil assim aprender de primeira, relaxe e... —— Não pude dizer mais nada, sua mão em minha cabeça me transmitiu um conhecimento que não pertencia a mim. —— Isso...é, parece que agora entendi. —— Respondi, sumindo numa enxurrada de papéis contra o vento. Os diversos papeis se entrelaçaram e chacoalharam no céu, criando formas e tamanhos variados. Dado por satisfeito, retomei a forma humana próximo de meu mestre, com um sorriso idiota. —— Não falei? É um ótimo professor!