[FILLERS] Yasunari

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[FILLERS] Yasunari
[FILLERS] Yasunari

Kádmos

Genin

Seg 22 Jan 2024, 18:08

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00 — Propósito

Estrelas brilhantes salpicavam o céu noturno do país do fogo, uma aragem morosa trazia consigo o aroma irresistível de massa e carne suína cozida, revelando de modo convidativo a proximidade da hora do jantar. Yasunari apoiava-se na sacada do seu quarto, que tinha uma vista limpa para a área rural de Konoha. As curvas dos pequenos planaltos no horizonte revelavam-se à luz natural da lua, com muita dificuldade notava-se também a vegetação movendo-se ao longe, uma espécie de borrão verde-escuro, cuja aparência parecia brotar de uma pintura. Estava tomado por um sentimento pesado, soturno; seu coração opresso, sem saber muito o que fazer na situação em que se encontrava.

Há momentos onde, independente do grau de controle que um indivíduo detenha sobre a sua própria vida, a soma dos elementos que vêm do mundo e são alheios à sua vontade se faz notória ante a parcela que representa os esforços totais em direção a um fim pessoal. Tais momentos de inflexão exigem sobretudo uma capacidade formidável de adaptação, seja ela mental, na medida em que o sujeito se vê ameaçado pela possível não realização de algo que almeja, seja ela física, na medida em que o ambiente o pressiona de todos os lados. Yasunari, todavia, vivenciava uma situação colateral a esta, com a diferença de que via-se livre de inclinações pessoais maiores, ao passo que, dado que já era um iniciado na carreira militar, o começo da vida adulta o forçava a definir um rumo mais concreto para si. Tinha tempo de sobra, mas o que fazer com ele? Sempre se mostrou interessado pelos mais diversos assuntos, mas em nenhum fixamente. Por algum motivo, talvez pela intimidade intrínseca do dilema, ninguém nunca o havia falado acerca deste tema, tampouco o encontrara dentre os assuntos tratados na academia ou entre os livros mais renomados, no entanto, lá estava ele, tão sólido quanto uma pedra no seu caminho. Sua decisão final foi a de consultar os seus pais, concluiu que eram as únicas pessoas, além dele mesmo, capazes de ajudá-lo. [...]

— Farei isto amanhã. — Murmurou, deixando-se, aliviado, levar pelo cheiro da comida preparada por sua mãe, saltando inopinadamente em direção ao lance de escadas que desembocaria na cozinha.

***

Um médico? — Inquiriu vagamente, seus olhos, embora fitassem sua mãe, davam ares de distanciamento. A mulher sorriu, reconhecendo na feição do próprio filho traços genuínos de interesse. A medicina era uma área do conhecimento vasta o suficiente para permitir que ele exercesse a sua natureza dispersa, mas grave o bastante para demandar o máximo de sua atenção, parece perfeito. Haviam discutido por alguns minutos e o assunto irrompeu com certo imediatismo, mais um daqueles elementos acidentais do destino que parecem ser metodicamente arranjados por alguma força maior e inominável. Sua mãe, que trabalhava há muito tempo como bibliotecária, conhecia os meandros que lhe permitiriam acessar tal área do conhecimento de forma plena.
— Sei de um grupo de médicos disposto a treinar pessoas interessadas. Já fazem isso há bastante tempo. — Disse, enquanto levantava-se do sofá em direção à janela da sala, uma brisa matinal revitalizava os ares internos da casa. — Mas será necessário um treinamento básico primeiro, eles só aceitam pessoas com predisposição verdadeira. É uma profissão muito séria. — Finalizou Shiori, com austeridade na voz, reclinando-se sobre o parapeito da janela e firmando a vista num horizonte difuso. Pensava em Kyousuke, seu marido e pai de Yasunari. O homem infelizmente não pôde estar presente, precisou antecipar uma das rondas no exterior do vilarejo porque havia o boato de que um grupo de ladrões ameaçava um trajeto na logística de alimentos da vila, mas com certeza não encorajaria o menino a tomar uma atitude impetuosa. Yasunari, não obstante, parecia já ter se convecido de que aquela era uma boa opção, em verdade, sentia-se tão solapado pela miríade de possibilidades distintas que se pincelavam de modo indiscernível no quadro branco representado por sua vida que, ao encontrar o primeiro caminho claramente definido, decidiu agarrá-lo com todas as suas forças.

01 — Anatomia

Uma luz tênue iluminava a sala, a chuva de verão abatia os telhados altos do hospital e o ruído intenso preenchia o ambiente de um aspecto inóspito e frígido. Que horas são? Pensou, estranhando a ausência da professora. Era um cômodo pequeno aquele, com uma mesa comprida ocupando uma parede inteira, sobre ela uma sorte incontável de frascos e potes de vidro que, contendo soluções incolores conservantes, deixavam entrever restos de tecidos humanos intumescidos pelo líquido. Ainda sobre a mesa, duas peças destacavam-se livres, preservadas por uma substância glicerinada que tingia a pele de uma tonalidade amarela - um braço adulto e outra coisa que na meia claridade era indiscernível. Em outra parede havia um quadro negro e nele rabiscos detalhavam o funcionamento de um coração comum, seguido por uma réplica impecavelmente desenhada. Uma escrivaninha no centro da sala tomada por pergaminhos e calhamaços, visivelmente surrados pelo uso, encerrava a mobília. Era o escritório de Nami, e, nas horas vagas, servia de sala de aula para um grupo seleto de estudantes. Yasunari tinha um relatório de centenas de páginas em mãos que discorria sobre as diferenças entre os tecidos musculares, redigido a próprio punho a pedido de Nami. Havia uma ética rigorosa facilmente perceptível a quem quer que fosse agindo como guia para o plano de estudos, era importante para a médica imprimir em seus alunos valores humanitários e, sobretudo, a noção de que a vida de seus companheiros dependeria, mais cedo ou mais tarde, da qualificação de cada um ali. Precisavam estar prontos para qualquer situação.

Yasunari aguardou por algum tempo e acabou perdendo as esperanças de um retorno da sensei ainda naquele dia. Deixou o relatório ao lado do caderno de anotações da mulher, que estava entreaberto sobre a mesa de estudos. Não pôde conter a sua curiosidade ao vê-lo, decidindo por folheá-lo quase que de maneira voraz, imaginando uma forma de refinar as suas próprias descrições na medida em que as comparava com os registros feitos pela professora. Tinha adquirido, com aquela rotina de estudos e treinos regulares, uma disposição constante para extrair o máximo de vantagens possíveis das situações, reconhecendo a valiosidade de cada momento ímpar que a vida lhe apresentava. Uma vez satisfeito com a análise rápida do diário, desapareceu dali, saboreando uma ou duas balas de café, enquanto percorria a fachada com pressa.

***

À medida que as semanas passavam, o interesse pela matéria, assim como seu conhecimento e domínio dela, aumentava vigorosamente. A admiração por sua tutora cresceu em proporção direta, do mesmo modo. A mulher lecionava sempre com a mesma aura de seriedade, seus cabelos vermelhos conjurando um estranho viço e determinação, sua fisionomia tomada por um ar de constante vigilância e seus movimentos ao manipular as ferramentas e produtos químicos esbanjavam uma extraordinária delicadeza de toque e equilíbrio. Yasunari saudava com avidez cada novo problema, devassando, por vezes, noites em claro; Nami tinha prazer em, caso fosse necessário, ajudá-lo na resolução, alimentando de maneira saudável a busca genuína por respostas.

Uma das partes mais maçantes da matéria concentrava-se nas nomenclaturas, cada membro do corpo humano parecia ser subdividido incalculavelmente em seções distintas, cada seção recebia um título próprio e era dotada de funções específicas. — Vocês não precisam decorar todos os mínimos detalhes,... — Disse claramente aborrecida, certa vez, quando questionada sobre a extensão exagerada da matéria. É humanamente impossível. — ...mas compreender a função e a importância das principais áreas é indispensável, assim como elas se articulam umas com as outras.

Uma das principais técnicas de fixação era o desenho, somados às dissecações, os desenhos permitiam uma noção do funcionamento real de cada traço do organismo, uma vez que era necessário desenvolver senso das proporções reais de cada órgão, por exemplo, além de sua ligação com o restante do sistema e sua fisiologia própria. Outro detalhe que tinha a importância reforçada, de maneira recorrente e quase insuportável, era a necessidade em conservar de forma ideal as peças anatômicas, porque o estudo debruçado sobre uma amostra comprometida acarretaria categoricamente em conclusões erradas e, dentre as inúmeras consequencias possíveis, estaria a de prejudicar um ente vivo.

Ao cabo de alguns meses, já tinha um certo domínio e desenvoltura própria na matéria, permitindo-se realizar, conforme a disponibilidade das amostras, experimentações de cunho pessoal e que não tinham ligação direta com o curso. Em uma ocasião especial, pelo falecimento de um gatinho de seu vizinho, o velho Yamabuki, dissecou o animal em casa mesmo, improvisando uma maca com uns pedaços de madeira e um tecido acolchoado inútil, o excesso de fluidos do animal lhe causou certo arrependimento entretanto, uma vez que teria de limpar tudo depois sozinho. O idoso pediu, em troca do cadáver felino, que Yasunari o tratasse de graça futuramente, caso se tornasse realmente um médico, ao que o menino assentiu, sentindo-se no fundo lisonjeado.

No fim do curso, agradeceu a oportunidade dada a ele por Nami e assegurou a ela que perseguiria o ofício da medicina.