“A que ponto cheguei...”, pensava comigo mesmo, enquanto percebia que os dias continuavam a correr no seu fluxo natural. Com isso em mente, era capaz de notar, aos poucos, que o meu tempo nesse mundo ia se esvaindo; e não só isso, como também era capaz de ver a minha obsessão ficando maior a cada dia.

"Talvez já tenha se passado uma semana... Eu realmente não faço a menor ideia de que dia é hoje". Depois que descobrir sobre... as mentiras que fizeram parte de toda minha vida, não conseguia mais sair daquele porão, mesmo percebendo os maléficos que aquilo traria. Em meio a poeira inebriante do lugar, apenas me contentava em ficar lendo os escritos deixados pelo meu falecido avô, na esperança de poder descobrir mais pistas sobre quem eu realmente era.

Conforme as horas passavam, ficava cada vez mais nítido a forma com que meu corpo ia ficando mais fraco – pelo fato de não conseguir engolir nada por vários dias – e também era capaz de notar que se continuasse com aquilo, muito provavelmente, acabaria sucumbindo diante as minhas ambições, que me cegavam e tiravam o meu juízo. Mas, sinceramente, pouco me importava o que pudesse vir a me acontecer, esse era o tamanho da minha determinação, e estava disposto a chegar até as últimas consequências caso fosse preciso. Agora, estava disposto a apostar a minha própria vida em troca da verdade.

"Nada! De novo...". Todo sacrifício que fazia ainda não era devidamente recompensado. Em meio a isso, até chegava a me questionar sobre o que de fato queria (ou esperava) encontrar com a suposta “verdade” que tanto precisava encontrar, contudo, não conseguia ponderar sobre, não agora. Foi então que, em meio a um desses devaneios, me deparei com um item que estava guardado em uma das várias caixas do lugar, item esse que se encontrava soterrado debaixo de um monte de livros e pergaminhos. Protegido por uma bainha tão escura quanto a noite,  esse tal item parecia ser uma espada (Kusanagi). Percebendo esse detalhe, quase como um reflexo, resolvi tomar ela em mãos.

Considerações:

Assim que tomei aquela shikomizue em mãos, quase que de imediato, comecei a ser tomado por memórias de tempos longínquos, as memórias de uma criança pura e ingênua. “Errado... Errado... Eu já disse que não é assim que se segura uma espada”, divagava então por entre as memórias mais recorrentes que tinha do meu avô. Essas, sem dúvidas, deviam ser as melhores memórias que tivera com a figura do mais velho, afinal de contas, essas eram as únicas. Sendo criado a base de treinos exaustivos e incessantes, não conhecia outro tipo de relação que não fosse essa, a de mestre e aluno. Sentindo uma incrível sensação de nostalgia, resolvia então sair de lá de baixo e ir buscar um copo de água na cozinha – o primeiro em dias, diga-se de passagem.

“De novo... De novo! Mais rápido. Anda, está esperando o que?”, em meio a alguns pensamentos em forma de memórias, deixava que a água da torneira tirasse a poeira dos dedos.

Já com aquele copo de água em mãos, circulava pela casa e pelo passado. Naquela curta caminhada, deixava também que os meus pulmões saboreassem um pouco daquele ar fresco, que era totalmente diferente do ambiente empoeirado e mofado no qual vivia enfurnado.

“Parece que é um desperdício de tempo tentar te ensinar alguma coisa. Ainda não sei porque perco meu tempo tentando te disciplinar... Será que você não consegue levar nada a sério?!”, de novo me perdia em lembranças, mas agora estando diante do dojo que tínhamos em casa, sendo esse um dos lugares que mais odiava em todo o mundo. Coincidência ou não, agora tocava o chão polido do lugar com meus pés descalços. Cedendo em definitivo aos impulsos que me levaram até ali, deixava que a minha mente se afundasse ainda mais no passado.

Considerações:

Naquele momento, deixava então que o meu corpo fizesse a única coisa na qual havia sido ensinado a fazer. Desembainhando a lâmina que institivamente havia trago comigo, deixando que a destra repousasse sobre o cabo, fazia com que a espada ficasse o mais afastado possível do meu corpo – esticando o baço o máximo que conseguia. Foi então que deixei que a lâmina pairasse por acima da minha cabeça, e, logo após isso, realizei um corte vertical decrescente com a mesma. “ERRADO... ERRADO... Eu já não disse que tá errado!?”, diferente de antes, essa voz que escutava na minha cabeça não fazia parte de nenhuma memória que tivesse.

Sem entender o motivo de tudo aquilo, continuei com o mesmo movimento, mas diferente de antes, agora me atentava ao movimento dos pés, dando um pequeno passo para frente sempre que desferisse um novo corte. “Eu já disse, mantenha postura! E vê se não deixa esse braço tão rígido”. Entre um golpe e outro, que continuava executar sistematicamente, fazia com que a minha memória muscular me revelasse todos os conhecimento que neguei durante todos os anos de treino que tive com o meu avô.

Não contente com aqueles movimentos simples que continuava a fazer, no final de um daqueles cortes, resolvi girar a espada – fazendo com que a sua ponta agora ficasse apontada para trás e para direita – e comecei uma sequência de golpes na diagonal, da direita para esquerda e, logo após isso, da esquerda para direita; sempre rotacionando o cabo entre um corte e outro.

Sentindo as gotas de suor começando a escorrer pelo rosto e tendo parte da visão obstruída por algumas mechas de cabelo, continuava a brandir a espada, mas só que agora intercalando os golpes verticais e diagonais. “Você realmente acha que pode cortar alguma coisa com esses movimentos?!”, novamente aquela voz tão familiar voltava a invadir a minha mente. As lições aprendidas com anos de treino, aos poucos, começavam a se afunilar, tornando meus movimentos mais naturais e precisos. “Não pare... Vamos!!”. A cada golpe, a cada estocada, a cada giro e a cada novo tipo de ataque, independente de qual nova artimanha fosse, sentia como se agora tudo aquilo fosse algo simples e fácil de se fazer, fácil até demais.

Considerações:

“Isso é tudo que você consegue fazer?”, sem nem mesmo notar a passagem do tempo, apenas continuava a balançar aquela espada de um lado para o outro. Apesar do cansaço, da respiração descompassada, das mãos tremulas e da visão embaçada, continuava a expurgar os meus demônios com golpes cada vez mais vazios e precisos. E embora quisesse parrar, não conseguia, pois, se parasse, significaria então que precisaria voltar a ser assombrado pela grande mentira que a minha vida se tornou. Então, mesmo que desengonçado, forçava o meu corpo a continuar com aqueles movimentos.

Os tremores nas mãos que começaram a se intensificar, marcavam o fim das minhas forças. Parecia que não poderia mais continuar fugindo dos meus problemas apenas balançando uma lâmina afiada de um lado para o outro.

Junto do suor de cobria boa parte do meu corpo e que deixava minhas roupas encharcadas, percebia que a espada começava a escorregar por entre os dedos, e, como se não fosse o bastante, os tremores das mãos haviam se alastrado também para as pernas. Não importava o esforço que fizesse, cada vez mais os joelhos tendiam a ficar flexionados, até que não sustentei mais o peso do próprio corpo e cai de ombros para o chão.

Mais até do que antes, os efeitos do cansaço voltavam a me afligir, e como se não bastasse, agora sentia uma forte pontada no peito, que era acompanhada de tremores generalizados e uma incrível falta de ar. Naquele momento, sem muito o que fazer, me contentava em ficar rolando no chão de um lado para o outro. Como esperado, os meus esforços pareciam não ser capazes de amenizar os sintomas do que quer que tivesse acontecendo comigo.

Assim como antes, novamente era tomado por várias memórias envolvendo a figura do meu falecido avô, onde os seus gritos ecoavam cada vez mais alto na minha cabeça. E pra piorar, enquanto rolava pelo chão, me deparava com uma foto sua que ficava pendurada em uma das paredes. Foi então que um grito de agonia começou a ecoar pelos quatro cantos, o meu grito.

Desde de que havia descoberto a verdade por trás de todas aquelas mentiras, ainda não tinha tido tempo para entender como realmente me sentia em relação a isso, e boa parte disso graças a caçada que havia iniciado. E agora, que estava em estado de choque, entendia que isso me machucava muito. Era doloroso demais saber que a única pessoa com quem você se importava não passava de um hipócrita de merda e um mentiroso, pois apesar de todos aqueles ensinamentos sobre ser uma pessoa digna e descente, ele ainda preferiu me enganar.

Nem mesmo a mais forte das lâminas poderia confrontar o ressentimento que começava a nutrir em meu âmago. Não sendo mais capaz de conter os sentimentos que escondia atrás de um sorriso falso e um olhar frio, me debatia no chão com uma vontade ainda maior. E em meio ao meu surto, acabaria me deparando novamente com aquela espada. Sem nem ao menos pensar no que iria fazer, peguei ela, e, tratando-a como se fosse uma lança, arremessei ela contra o retrato do meu avô que seguia pendurado na parede.

Com aquele gesto catártico, não via somente aqueles cacos vidro que havia acabado de quebrar, mas como também percebia, através do reflexo projetado em alguns deles, a nova coloração que tingia os meus olhos. Sem nem ao menos ter a chance de me questionar sobre, caia inconsciente no chão.

Considerações: