Pouco tempo atrás Shizuke ainda estava encarcerado numa cela, pagando por crimes que havia cometido em nome da própria sobrevivência, vivendo numa parte do País da Água onde as chances não eram tão abundantes, tampouco acessíveis como o eram em Kirigakure. Apesar disso, não houve nenhum julgamento, nenhuma chance de que ele pudesse se explicar ou apelar sobre sua sentença. Os anos não foram muitos, mas foram suficientes para ele entender que a Névoa não estava do seu lado. Assim como ele não estava do lado da Névoa.

Por mais que no começo tivesse dito para si mesmo que se tratava de vingança por todos como ele, marginalizados e punidos muito embora não tivessem escolhas, agora se tratava de substituir a ordem estabelecida pela vila e deixar surgir o caos, de ter poder o suficiente para se tornar ele mesmo o agente do caos.

A primeira etapa, como descobriu naquela manhã, estava prestes a se iniciar. Sua solicitação de exame para o próximo posto tinha sido aprovado e agora bastava se apresentar na Academia Ninja para ser testado. Da última vez, à exceção das lições sobre controlar o chakra, nada tinha sido um verdadeiro desafio; esperava ser igual desta vez.

Vestia-se como um civil: uma camisa bege, um tamanho maior do que deveria usar, calças pretas de algodão e um tênis confortável o suficiente para não atrapalhar seu teste. Assim que chegou, apresentou-se ao primeiro oficial que encontrou e avisou que estava lá para fazer o exame para Chunin.

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Como informado, o homem responsável pelo teste estava à espera de Shizuke. Mas ele ficou surpreso ao ver que a figura diante dele não tinha nenhuma pista visual que o fazia se passar por um oficial ou ninja mais experiente, o tipo de pessoa que ele imaginava ser responsável por um exame de graduação. Antes do encontro, Shizuke teria esperado encontrá-lo atrás de uma mesa, em alguma posição burocrática da vila, responsável por intermináveis pilhas de papelada. De todo modo, suas impressões terminaram no momento que o homem falou com ele, dizendo seu nome. Não havia nada a ser dito, nem apresentações a serem feitas — o mínimo que poderia ter dito, seu nome, já era de conhecimento do avaliador.

Shizuke apenas assentiu, seguindo o homem através do caminho que ele liderava. O cenário dos prédios ao redor da Academia da Névoa deu lugar ao centro comercial, cujo espaço era disputado por casas e comércios, uma visão, assim como em todo canto da vila tomado pela névoa, fantasmagórica, com as pessoas em trânsito aparentando serem igualmente fantasmagóricas. A caminhada foi serena, o homem tinha um ritmo que permitiu a Shizuke alinhar os pensamentos e preparar-se mentalmente para o teste, evitando pensar muito nos episódios recentes. Até que a pergunta proferida o atingiu inesperadamente.

— Subir de posto me permitirá ser mais forte para defender a mim mesmo e à vila — respondeu, imaginando que a pergunta fosse parte do teste. Sequer tentou disfarçar o quão mecânica tinha sido sua resposta, mas não revelaria, ao menos não tão cedo, o verdadeiro motivo pelo qual buscava poder e status.

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“Entendo.”

Shizuke havia se cansado de escutar essa palavra há um tempo. Na infância, na juventude, quando teve de se aliar a uma organização criminosa para sobreviver, quando foi preso e quando se juntou a Kirigakure — alguém sempre entendia. A fala deixou Shizuke quase enraivecido. Quase. Ele sabia que momentos como aquele não permitiam deslizes, portanto se deteve. Bem poderia ser verdade a possibilidade mais óbvia em que pensou: o homem estava ali não somente para testá-lo, como também para observar Shizuke bem de perto, como seria o caso com qualquer novo pretendente. O tipo de coisa que acontecia numa vila conhecida por ser a névoa sangrenta.

— Sinto muito que tenha perdido a visão — disse. Não sentia. Passavam ainda pelo centro, atravessando prédios comerciais, uma visão de modernização de toda ausente no bairro em que havia morado, depois por uma floricultura e seguindo. A conversa nem podia ser considerada mundana, era entediante. Uma tentativa artificial e forçada… de quê? Empatia? Compaixão? Nada disso vinha facilmente, não depois de seu passado turbulento. Imaginava se ao menos se davam o trabalho de conhecer o passado dos genins, pois em seu caso, ainda que não fosse gritante o sentimento revanchista, bastaria um pouco de atenção a sua trajetória para perceber que estava muito longe de possuir qualquer motivação para estar do lado da vila.

Apenas esperava que a caminhada terminasse logo.

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A conversa furada e a caminhada que aparentavam não ter fim, encontraram um fim. Ambos pararam num campo de treinamento, uma área úmida e rochosa, um campo aberto tomado pela névoa. Olhando por sobre os ombros, Shizuke percebeu que a vila não estava longe, a área mais parecia um pequeno oásis dentro da crescente e recente modernização do vilarejo. Isso era de algum conforto: significava que estava ali realmente para participar do teste e não para ser morto.

Tinha pouco poderio físico além da velocidade, portanto quando recebeu a ordem de ataque, não hesitou, atacando com o que tinha. Sequer a frase se dissipou no ar e ele estava em movimento.

Tentou encurtar a distância saltando à frente, usando ambas as pernas como impulso, fingindo um soco de baixo para cima com a canhota, que não passava de uma chamariz: o verdadeiro golpe era, ao mesmo tempo, usar a destra para prender na roupa do homem uma tira explosiva, bem no meio do peito e depois saltar em direção ao mesmo ponto de onde partira, ganhando distância o suficiente para escapar do raio da explosão. A ofensiva era simples e a explosão, caso tivesse êxito, seria somente um arranhão. Por ora, estava testando as águas e não havia motivo para ir com tudo que tinha.

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A execução esteve no mesmo nível que o planejamento traçado por Shizuke, mas habilmente o homem cego se defendeu, destruindo a simples estratégia como se fosse menos ainda. Foi necessário certo esforço para conter a frustração e manter o foco enquanto recuava, instintivamente colocando um braço a frente do rosto ao escutar a fraca explosão causada pela tira explosiva. Percebeu que o verdadeiro teste começaria dali em diante. Sua única vantagem, saindo da tentativa falha, foi ter traçado um plano básico, o suficiente para testar as águas de sua graduação, assim como a si mesmo. Até o momento, todos os embates de Shizuke tinham sido contra saqueadores de beira de estrada, bandidos comuns ou civis — todos muito mais fracos que ele, mais fracos até mesmo que um genin recém formado na academia da Névoa, portanto não era de se espantar que a própria força lhe fosse desconhecida. Seu maior desafio desde que vestira a bandana fora enfrentar um lobo selvagem.

Por outro lado, ainda tinha de descobrir se o homem era realmente cego. Nada o impedia de ter os demais sentidos extremamente aguçados, a melhor hipótese, mas também precisava testar a veracidade da cegueira.

“Espero que não tenhamos um limite de tempo”, falou. Shizuke precisava testar suas hipóteses uma a uma durante os ataques, se desejava ter êxito. Com sorte, impressionaria ele e poderia começar a construir uma sólida reputação nas linhas da vila após isso.

Rasgou um pedaço de sua camisa bege, cortando com a extremidade de uma de suas kunais, e depois outra tira exatamente igual. Passou a tira no pequeno orifício que existia ao fim do cabo de suas kunais, deixando duas em cada tira e restando somente sua última kunai em mãos. Amarrou as tiras uma de cada lado da calça, presas ao passador de cinto — considerando que muito raramente usava cinto, era a primeira vez que dava utilidade àquela parte. Seriam como sinos: ao se mover, as armas tilintariam.

Antes de avançar, aumentou a distância entre eles. Os dez metros se transformaram em vinte. Começou andando, depois correu, para aumentar drasticamente os sons conforme se aproximava do avaliador. Ao chegar aos dez metros iniciais saltou adiante, encurtando a distância pela metade e então saltou novamente, diminuindo a distância para dois metros e realizando um último salto. Com este, seu intuito era de saltar sobre o cego, para alcançar sua retaguarda, porém ainda no ar soltou as tiras com kunais, para que continuassem seguindo o momento de seu corpo, no ar, indo numa direção diferente à dele, que agora alcançaria as costas do homem e tentaria atingi-lo na retaguarda da coxa direita.

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Sua estratégia brilhante sofreu um choque de realidade. Mesmo cego, seu adversário era superior, muito superior. O contínuo tilintar das armas foi insuficiente para causar confusão nele e enfraquecer seus sentidos. Como resultado, uma defesa que parecia desnecessária de esforço.

Shizuke sentiu a frustração vir à tona novamente. Nunca tinha sido testado daquela forma e mesmo nos momentos em que fora exigido muito dele, era pouco em comparação ao momento presente. Sua respiração estava pesada, audível, embora sequer estivesse suando — precisava se recompor e manter a disciplina, sem deixar a frustração tomar conta de suas estratégias dali em diante. Aproveitou enquanto era lançado de volta ao ponto inicial para recolher suas armas e colocá-las de volta à bolsa presa na coxa. O tecido, porém, seria perdido, precisaria comprar uma nova camisa e, com sorte, faria isso usando salário de chunin.

Respirou fundo, traçando a nova estratégia. Ainda que não tivesse descartado a audição como um sentido importante no cego, percebeu que seria impossível vencê-lo tirando somente ela. Precisava construir uma estratégia suficientemente boa para minar todos seus sentidos simultaneamente ou então… vencê-lo com velocidade. Se gastasse todas as cartas na manga de uma única vez, também corria o risco de falhar. De volta à distância inicial de dez metros, tirou as armas laminadas novamente da bolsa, dessa vez se limitando a quatro, a quinta ainda guardada. Prendeu as três tiras explosivas restantes e também uma pequena bomba de fumaça a suas kunais, as deixando todas equipadas com surpresas extras.

Dessa vez não foi preciso criar uma cerimônia antes de atacar, Shizuke simplesmente avançou correndo na direção de Yang. Tinha as armas separadas em duas para cada mão, duas tiras explosivas na esquerda e à direita com uma, além da bomba de fumaça. Saltou ao alcançar a metade da distância, lançando todas as armas a cinco metros de distância do cego. O lançamento dos projéteis aconteceu enquanto ele saia do chão, aproveitando de toda sua agilidade para atacar ainda no ar: a primeira kunai com tira explosiva mirava o direito, a segunda mirava a perna esquerda e a terceira mirava um ponto no solo onde ele se encontrava, bem abaixo da base de ambas suas pernas, sendo arremessada em conjunto com a quarta e última arma laminada, que carregava a bomba de fumaça presa por um pequeno cordão. Todas as tiras explosivas explodiriam ao alcançar à metade da distância do alvo, ao mesmo tempo que também o faria a bomba de fumaça, com o intuíto de adensar o ar; a última das tiras explosivas, porém, explodiria um instante depois, somente ao se cravar no solo, visando pegá-lo desprevenido. Shizuke sequer era parte do ataque, mas seu pulo tinha intenção de novamente fazê-lo alcançar as costas do homem, esperando uma possível esquiva do conjunto ofensivo inicial para golpeá-lo na nuca se surgisse a oportunidade.  

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A primeira tentativa o tinha deixado cético quanto a suas chances, o que tornaria mais fácil suportar a decepção de uma segunda falha.

O sucesso teve um gosto amargo — apesar dos esforços, de ter usado tudo quanto podia, preparado o tanto quanto lhe era permitido, a experiência e habilidade de Yang esmagaram a ofensiva de Shizuke, deixando uma cópia para ser destruída pelo golpe. Estava provavelmente ainda a meio caminho da exaustão, mas era difícil afastar o pensamento de que tudo tinha sido em vão. Ele tentou, tentou e falhou mesmo quando teve êxito.

Respirou fundo e afastou a mente daqueles lugares sombrios. Aquela contínua derrota era somente mais um degrau que precisava subir se desejasse punir a Névoa.

A última parte do teste.

Shizuke estava tão silencioso quanto um cadáver, como se a fala ao início do teste tivesse consumido todas suas palavras. Foi pego desprevenido, mesmo em foco absoluto, pela velocidade do cego. Mover-se daquela forma com um sentido a menos só poderia ser um extremo que significaria esforço demais ou esforço de menos. Shizuke dançou para fora do primeiro golpe, inclinando o corpo para trás antes de saltar e ganhar mais distância. Seus olhos tinham acompanhado sem dificuldades o avanço, mas o corpo estava uma passada atrás e teve de recorrer aos reflexos para evadir. O átimo entre sua defesa e o golpe seguinte permitiu explodir sua energia, revelando o verdadeiro potencial do corpo, acompanhando com muito mais facilidade a velocidade do velho para realizar a mesma dança e se impulsionar para trás nos golpes seguintes.

Manteve o equilíbrio até o último instante, enfim saltando para manter a distância de dez metros. Seu silêncio permanecia e ele, obviamente, esperava a aprovação.

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Merda.

Apesar de estar ainda muito longe do cansaço, Shizuke preferia simplesmente receber a aprovação sem a necessidade de continuar tendo de impressionar o avaliador escolhido por Kirigakure. Começava a pensar que talvez, apenas talvez, o verdadeiro objetivo fosse cansá-lo até a inevitável falha.

Um breve momento de reflexão era o suficiente para reconsiderar o aborrecimento: eram etapas necessárias para se fortalecer, para ganhar respeito e confiança suficientes e então… ele sabia o que estava por vir, o que tinha de fazer. Enquanto conveniente, defenderia a vila, se arriscaria, colocaria a vida em jogo, até o momento da reviravolta se revelar.

Resolveu enfim falar.

“Não esperava que acabasse tão fácil”, mentiu, ajeitando a postura e separando ligeiramente as pernas, para criar uma base sólida. O aviso verbal indicava que ainda teria de se defender ou atacar naquele teste, mesmo a contragosto. Tudo que ele mostrou foi insuficiente? Tinha atingido o clone do maldito cego.

Com o corpo ainda pulsando da energia liberada, Shizuke aproveitou e se moveu para além do alcance dos ataques. Os projéteis o caçavam, colocando a não-letalidade do teste em questionamento, mas vinham lentos em comparação ao ataque anterior do cego. Simplesmente sair da rota o colocaria em perigo — Shizuke girou o eixo para sair do primeiro disparo, executando um salto longo para a esquerda no segundo, recuando, rolando para a frente ante o perigo do terceiro e então novamente girando para se esquivar do último, mantendo o olhar afiado e o corpo ainda rijo, pronto, mesmo quando viu não ter recebido nenhuma nova ofensiva.

Esquivar, ao invés de apenas tentar acertar, o fazia sentir-se vivo pela primeira vez em muito tempo. Com as primeiras gotas de suor escorrendo da testa, Shizuke compreendeu que preferia desafios como aquele ao marasmo das missões insignificantes que a patente atual lhe reservava.

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Seu corpo finalmente começou a reclamar pelo esforço. Podia imaginar que cenários mais extremos estariam por vir uma vez que o mundo além dos limites da Névoa Sangrenta se revelassem para ele, mas por outro lado, duvidava que todos os ninjas eram capazes de manter o mesmo fôlego da mesma forma que ele, continuamente. Ao menos para isso devia agradecer a sua mãe e seu pai, quem quer que ele fosse. Sua genética, ainda que não tivesse nenhuma linhagem ou nome para carregar, fazia dele um espécime único.

Enxugou o suor da testa com ambas as mãos, esfregando as têmporas, ficando parado imóvel por longos segundos, esperando que seu corpo resfriasse, sentindo um pouco da dor que era costumeira após interromper subitamente um esforço como aquele. A camiseta rasgada, a bolsa quase vazia das armas gastas na estratégia de ataque, os cabelos grudados na testa, úmidos, a respiração ofegante e os ombros rijos.
Shizuke se antecipou aos questionamentos que ameaçaram assomar a sua mente, dando um passo adiante e pegando a bandana, tentando demonstrar confiança. Diante da pergunta, assentiu, mas depois, ao se lembrar que ele era cego, confirmou verbalmente.

“Farei meu melhor. Vou servir e proteger enquanto puder”, falou, pensando que não havia mentira naquelas palavras, ainda que o sentido estivesse distorcido. A entrega da bandana o dizia que provavelmente ele estava livre para partir, mas tinha algo a perguntar antes da partida.

“Se importa se eu perguntar algo?”, disse, esperando alguns segundos, mas seguindo mesmo sem ter a resposta. “Como consegue sentir o suficiente para se defender? Digo, você é cego, não?”

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No instante que as palavras saíram de sua boca, Shizuke percebeu que era uma pergunta estúpida. O segredo por trás da percepção de Yang estava longe de ser um assunto que lhe dizia respeito, assim como ele não tinha nenhuma obrigação de responder o mais novo Chunin.

Mas mesmo assim o fez.

Shizuke sentiu naquilo uma resposta quase vazia, com nada extraordinário, nada além do que ele imaginava. A verdade é que talvez realmente fosse somente aquilo. Seria impossível chegar onde desejava usando atalhos, ou ele estaria determinado o suficiente, ou alguém penduraria sua cabeça num espeto. Apesar da dificuldade em derrotá-lo, Shizuke sabia que Yang estava longe de ser um dos mais fortes da vila, caso contrário não existiriam motivos para ele estar avaliando as patentes mais baixas do vilarejo.

Assentindo, Shizuke agradeceu, esperando inerte ainda no campo de treinamento enquanto observava o homem se afastar com passos cadenciados até desaparecer subitamente. Sentiu o peso da bandana na palma da mão, passando os dedos no símbolo da vila gravado em metal. Amarrou a tira de tecido ao redor da cabeça e, sem espelho para se enxergar, ficou apenas com a imagem mental que tinha de si mesmo, vestindo o adereço.

Tudo havia mudado? Não. Ainda não.

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