— Não, ainda não. — disse pesadamente o pai.
Isshin sempre fora um homem sisudo em todos os aspecto, inclusive nos dizeres. Era um senhor de meia-idade, beirando os cinquenta, com o corpo tão rígido quanto uma rocha. Era conhecido por ser um dos últimos herdeiros do já extinto País do Ferro, das habilidades dos ancestrais samurais, embora seu filho não soubesse nada sobre isso. Treinavam ambos na área externa da grandiosa residência. O jovem estava pálido de tanto cansaço. Apesar de ser inverno e de trajarem roupas leves, nenhum dos dois sentia qualquer frio. Naquele espaço repleto de grama coberta por geada, disputava com o intuito de praticar a forma física do mais jovem.
— Você não alcançou nem mesmo um por cento do seu verdadeiro potencial, meu garoto. — avaliou enquanto se evadia tranquilamente de todos os ataques lançados por seu filho. — Parece que não és lá grande coisa. Aceitam qualquer um como um Genin nos dias de hoje... — provocou.

Seus sentidos ignoraram aquelas palavras uma a uma. Reiterou a concentração e continuou a utilizar seus punhos com o propósito de atingir o seu pai na altura do estômago, ou quem sabe o rosto com um gancho. E, algumas vezes, também se utilizava de chutes com o propósito de enganar a previsão de movimento paterna. Sem que notasse, as horas correram.  E, logo, se foram também os dias. Ele experimentava, progressivamente, um melhoramento de sua movimentação, bem como de seus golpes. Não se tratava do ganho de força ou velocidade, mas sim de técnica. O derradeiro soco fora aquele parado por uma defesa, e não uma evasão. O senhoria esboçou um sorriso, mas na verdade era apenas uma expressão levemente amena, com sobrancelhas mais relaxadas e os seios da testa menos apertados.
— Esse foi bom... — contou, com satisfação.

Aquela a primeira sessão de um longo treinamento que se iniciara. A verdade é que o lendário espadachim criador do estilo de espada supremo Ono-ha Ittō-ryū, Ittōsai Isshin, não estava plenamente satisfeito com as condições de seu principal aprendiz, Itō. Deveria prepará-lo de uma vez ao manejo de espada. E, para isso, o garoto haveria de trilhar um longo caminho. A começar por sua agilidade.
— Veja, meu rapaz. É verdade que és meu herdeiro e que é dono de um talento único. Entretanto, não se deixe enganar por sua condição. É preciso uma centena de milhares de passos até que consiga alcançar a posição privilegiada de um falcão. É nada senão uma pequena lesma que rasteja, procurando o que lhe deixaram ao meio do caminho para que consiga sobreviver. — fez uma breve pausa e foi a um depósito, de onde trouxe consigo variados apetrechos. — Aqui estão alguns pesos que eu utilizava quando tinha a sua idade. Use-os de hoje em diante, certamente ajudarão com sua mobilidade... — disse ao entregá-los.

Eram pulseiras e tornozeleiras com um jutsu de selamento especial. Uma fórmula negra capaz de fazer com que eles assumissem uma massa colossal ainda que com proporções diminutas. Trajou-as e logo entendeu do que se tratavam.
— Mas o que diabos... — comentou consigo tão baixo que dificilmente seria escutado.
— Não se preocupe. — acalentou o homem ao ver a face reduzida do jovem. — Levei cerca de cinco meses até conseguir mexer os meus braços. Dez até o primeiro trote. E uns dois anos até conseguir correr. — juntou os braços e baforou um ar quente. — Mas não se preocupe com o tempo, estou contigo ao seu lado. Se houvesse um tutor como eu, teria corrido em não mais que quinze dias...  
O pai o guiou nas primeiras tentativas, mostrando-o de onde deveria retirar a força para conseguir se mover, mesmo que por pouquíssimos milímetros.
— Enganam-se os que pensam que a força reside nos músculos. — apontou com o indicador direito ao bíceps contraído. — Ela vem daqui. — apontou para a cabeça. — E, para nós, guerreiros samurais, daqui. — o dedo correu na direção esquerda do peito, de onde batia o coração. — Lembre-se do sentimento ao conseguir atirar a primeira shuriken e acertar perfeitamente no alvo. De quando conseguiu replicar as primeiras cópias. Essa força não vem do nada, mas sim da disciplina de seus sentimentos, da força do coração. É ela que deve buscar, doutrine o seu corpo, mostre que ele pode realizar o aparente impossível. — explicou.

As palavras a ouvidos pouco atentos poderiam não fazer sentido. Todavia Itō não era um rapaz comum e talvez por isso compreendesse tão bem Isshin. Recordou daqueles momentos citados e fez daquilo a sua força.  Fez os músculos estremecerem quando ergueu os braços e se agachou. Estava vermelho de tanto esforço. As veias dilatadas aparentavam uma possível explosão. Relaxou e repetiu. Depois, caiu desfalecido. A priore, aquele treinamento não fazia qualquer sentido. Mas ao prodígio do clã Ittōsai era diferente, era uma rotina perfeita às suas condições genéticas.

Catorze dias correram ligeiramente. Já alcançava uma etapa além, conseguia trotar. Não era natural e a cada passo dado era possível que desabasse. Faltava equilíbrio, força e uma série de outros fatores. Porém, nem mesmo os deuses poderiam ir contra a vontade de um guerreiro devotado. Enfrentou aquilo como uma guerra e a sua determinação veio à tona. A adrenalina atravessou os músculos e garantiram um poder sem precedentes. O verdadeiro fervor samurai. Um furor que só se observava a cada seis gerações na família. Aquela descarga de energia o permitiu correr. Desta vez sem desajeito ou desalinho. Perfeitamente, na forma de um implacável combatente, dono de um de taijutsu de técnica considerável. Algumas voltas ao redor do campo e já conseguira se acostumar. Evoluía num ritmo frenético.
— Foram duas semanas... Parece que consegui vencer o senhor, pai... — provocou como uma fuinha.
O senhorio não respondeu, apenas se deu ao trabalho de correr ao seu lado, quase como se convidasse a um duelo de velocidade. Era claro o resultado, sobretudo pelo mais jovem competir com as condições desfavoráveis que dispunha. Ainda sim, não se abateu em nenhum instante e o enfrentou a esmo, até que não restasse nenhum fôlego e apagasse de uma vez. Competiram por alguns dias até o momento em que se habituara com aquela carga adicional. Retirá-las demonstrou o seu desenvolvimento: estava aparentemente pronto.



Os dois estavam ajoelhados, um de frente ao outro. Trajavam nada senão o tradicional quimono negro e meias brancas. A frente, um pequeno suporte de madeira com uma espada de treinamento, sem qualquer fio.
— Essas katanas foram trazidas de um continente distante e eram utilizadas por mim e sua mãe enquanto treinávamos. — disse fazendo referência ao País do Ferro, já apagado pela história shinobi. — Finalmente você é digno de aprender o kenjutsu, meu garoto. Eu serei o responsável por ensiná-lo o básico. Primeiramente, lembre-se que desde a infância você já foi introduzido ao manejo desta maravilhosa lâmina. Deve bem saber do que falo... Pois o kenjutsu não está apenas no manusear do metal, mas sim em tudo que fazemos do momento em que acordamos ao instante em que nossos olhos se fecham. A escrita, as artes, a contemplação e o pensamento, tudo engloba a nobre técnica da espada. — introduziu calmamente.
Ele se levantou e trouxe a katana consigo. Apetrechou-a à cintura, do lado esquerdo. Dali em diante, iniciou o jovem ao seu perfeito manuseio. Ensinou-o sobre a maneira adequada de saque, a posição em que deveria manter a base e os golpes de principiante. Como uma mentre prodigiosa que o era, entendeu tudo com facilidade. Aliado de seu aço, executou os primeiros saques em uma base sólida. E, então, com um pouco de dificuldade, executou os primeiros cortes contra o vento. Alguns pequenos ajustes foram realizados e ao longo de cinco dias dominara o básico com perfeição.

Dali, um salto foi dado e iniciaram uma rotina de exercícios complexos, ensinando-o da essência que todos os estilos compartilhavam em sua raiz.  
— Não se engane, usar a uma lâmina é mais do que a rotação, o jeito que a manipula e os seus atributos físicos. Se trata de torná-la uma extensão de seu braço, como se ela fizesse parte do seu corpo. Treine até o ponto de se habituar ao máximo com ela. — disse. — Aqui está um fio de cabelo. — disse ao retirar um grisalho da cabeça. — Até que consiga fazer isso, não é digno de ter o seu próprio estilo. — afirmou arremessando o fio no ar.
Aquele único fio viajou e por um instante o tempo pareceu passar mais devagar. Uma calmaria absoluta reinou. As pernas de seu pai se flexionaram e a destra dele se posicionou no cabo enquanto a canhota segurava a guarda. Bastou um único saque, um movimento tão absurdo que todo o ar ao redor foi sacudido. O reflexo sobre o fio alvo revelara: ele havia sido partido em dois na totalidade de seu comprimento. Não havia diferença no diâmetro dos dois. Era um corte perfeito, somente possível de ser executado por aqueles que eram chamados de perito. Isshin deixou o salão e sabia que daquele ponto em diante era dever de Itō seguir com seu aprendizado.

Diferentemente do que se imaginava dos demais humanos que tentaria infinitamente até conseguir executar o corte, Itō sentou e meditou. Recordou-se de momentos passados, desde a sua primeira infância até aquele dia. De todas as vezes em que, quando um pequenino, segurara a espada e a balançara sem qualquer fim. De quando assistira seu pai enfrentar uma série de oponentes, um a um, sem ser derrotado em duelo algum. Analisou aqueles momentos com paciência e elevou o seu espírito até chegar ao entendimento da espada como sendo uma extensão dele próprio. Segurou-a com as duas mãos. Não a sacaria como seu pai, não faria seu estilo fazê-lo. Retirou um fio laranja de sua cabeça e o arremessou contra os ares. Ele flutuava feito uma pluma. Caía em câmera lenta. Seus braços se moveram acima de se cabeça e, na vertical, fez um único movimento de cima pra baixo. O vento soprou para frente e, de olhos novamente abertos, viu o resultado se concretizar: era um perito.

Itō; 200/200 200/200 00/03

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