Amanhã surgia obscura, com um tempo denso, nuvens de tonalidades quase avermelhadas e uma intensa chuva que escorria do céu, sem parar, como se aquele dia fosse durar para sempre. Deitada em sua cama, Enma não podia mais prolongar seu sono, não que tivesse deveres nesse horário, mas sabia que alguma coisa havia esquecido como costumava fazer, alias, nesses últimos dias, tornou-se muito mais esquecida que o normal.

— Takeo... Essa chuva que não quer parar... Takeo? Vamos acorde!

Chacoalhou o irmão de um lado para o outro que ardia em febre, como se um vulcão estivesse entrando em erupção.  O calor que recendia do seu corpo não batia com o frio que a garota sentia naquele momento, com seus tremores e temores. Procurou ao entorno um pano e o molhou com água fria, depois foi em direção a algumas ervas que havia sido receitada por um médico voluntário, poucos dias atrás e, com elas, preparou um chá o qual serviu ao seu moribundo irmão.

— Ele vai morrer.

Respondeu uma moça, de mais ou menos vinte anos, aparência extravagante e odor muito peculiar. Ela encarou a pequena shinobi de cima em baixo, com desprezo, e seus olhos, de tonalidade avermelhada, revelavam uma maldade, uma perversidade.

—Quer tentar não morrer?

Considerações:

O vazio que lhe acompanhava no dia sobreveio com mais força que o comum, olhando aquela estranha, com uma feição profunda e perdida, só poderia gargalhar de si, da situação e de como as coisas havia chegado aquele ponto, inadmissível, pensava, para alguém do seu nível.

— Não morrer!? Meu irmão está morrendo! Ajude-me ou vá embora! — gritou assustada.

A figura encarou a garota de encima embaixo, como se olhasse para alguma coisa amorfa, sem qualquer significância, porém, ao mesmo tempo, demonstrava interesse para a menina e aquela intervenção, que mais cedo parecia um sonho de uma noite de verão, tinha sido devidamente programada pela interruptora.

— Seu irmão não vai morrer, quanto a isso não se preocupe, agora, imagine não precisar passar pelo mesmo destino que passaram aqueles quem ama? Ser um ponto fora da curva e, quem sabe, lutar por uma nova forma de sua família encarar o destino de shinobi?

Enma encarou a mulher misteriosa perdida em seus próprios pensamentos, tremendo de medo.

— Não tenho tempo para isso, por favor, vá embora — respondeu.

A mulher voltou seu olhar contra a menina, que visivelmente parecia assustada, aproximou-se do rapaz, deitado e enfermo.

— Ei! Se afaste dele, por favor!

— Não se preocupe.

Dito isso uma luz esmeralda brilhou na mão da mulher, Takeo voltou a espirar.

— Ele está bem, agora venha comigo, como pagamento pelo que fiz a você.

A menina assentiu relutante e as duas prosseguiram para fora da casa.

Considerações:

As duas estavam na rua, escura e lamacenta por causa da chuva, reinando, entre elas, o mais estranho e solene silêncio de que se tem notícia. Não existia uma alma viva vagando por aquele lugar, a maioria se abrigava no interior de suas casas e a minoria buscava refúgio na casa de parentes, em outros bairros.

— Vou te mostrar uma coisa, mas não pode se assustar, tudo bem? — perguntou a mulher.

Enma a encarou, com o rosto sério e com o cabelo escorrendo pelo rosto por conta da água torrente da chuva. Os finos fios negros de seu cabelo começariam a grudar em seu rosto, incomodando-a levemente. Assentiu, querendo deixar aquele local com pressa e voltar para seu irmão, Takeo.

— Me mostra, tenho que sair daqui e voltar a ter com meu irmão.

— Esqueça ele, pelo menos por um momento...

As duas se olharam, Enma apreensiva e a mulher misteriosa, confiante. A garota assentiu novamente com a cabeça e viu sair da bolsa daquela figura misteriosa uma Kunai, cabo vermelho e com um papel enrolado ao entorno da arma com dizeres tão antigos que a ninja não podia conceber.

— Tome.

Enma segurou a Kunai, tremendo.

— O que você quer que eu faça com isso?

— Quero que me mate.

Respondeu, curta e grossa.

Considerações:

Enma não podia acreditar no que ouvia, pegou a Kunai e segurou com as duas mãos pois estava tremendo muito. Olhou para a arma e depois fitou a mulher, que esperava tranquila alguma fala da ninja que em seu nervosismo preferiu o silêncio.

"Ela é doente? Matar alguém? Se ela quer tanto morrer assim que faça sozinha..."

Lágrimas começaram a brotar de seu rosto quando ela virou a Kunai contra si mesma, querendo acabar com ele sofrimento bobo. No momento em que ia fazê-lo foi impedida pelas mãos ternas da mulher.

— Vamos garota! Não desista agora.

Usou sua força contra Enma e lhe fez perfurar seu estômago, que sangrava.

— Eu... Eu não quis... Não quis... Ta-

— Não perca seu tempo gritando. — respondeu a mulher tranquilamente.

— Como?

— Não é hora para perguntas. Vim até você pois te vi na rua e analisei seu comportamento, no geral, bem retraído, mas vi que você deseja a morte, quer conhecê-la? Bem como ter com todos de sua família que pereceram nesse jogo de ninjas, não é mesmo?

Enma ainda não conseguia falar, as palavras estavam lá presas, entaladas, dobradas e retorcidas, mas não saiam.

— Que tal eu te apresentar a morte? A proposta é séria. Servir a um deus tão poderoso que se manifesta em nossos corpos, como você viu agora, que tal?

— Eu...

Enma quase desmaiou mas juntou-se a passos largos a mulher que caminhava em direção a um beco muito escuro.

Considerações:

Continuando o percurso dentro do beco, entraram numa casa escura que até então desconhecia e sequer sabia de sua existência. A ninja ficou perplexa ao percorrer com os olhos as cercanias. Todas as casas eram retorcidas e tinham um ar de gótico. As casas estavam perfiladas em um formato que parecia lembrar uma estrela ou algum símbolo com ângulos agudos.

— Muito bem, vamos entrando.

A mulher tomou fôlego e entrou apressada a grande casa de portões vermelhos, parede ocre e janelas com a vista obstruída por uma névoa desconhecida. O ranger da porta se abrindo lhe causou calafrios mas, mesmo assim, Enma entrou, esperando encontrar ali alguma resposta sobre os eventos que aconteciam naquele dia, tão diferente do rotineiro.

— Está muito escuro — disse Enma — não tem como acender uma luz?

— Primeiro fique calma, as luzes serão acesas no momento apropriado, ou seja, quando eu quiser. Se você for o tipo de pessoa que teme a escuridão, que teme morrer, não é quem eu estou procurando, então se contenha e fique em silêncio.

Enma preferiu o silêncio, as bochechas brancas enrubesceram de vergonha e humilhação. Não entendia porque a mulher lhe tratava daquele jeito, nas alguma coisa havia mudado no momento que as duas pisaram naquela casa.

Dito isso, andaram alguns passos sendo acompanhadas pelo ranger do piso que parecia proferir os mais perversos pecados. O coração da ninja estava saltitando de medo e horror, mas guardou para si aquele medo, não era o momento de se assustar, e sabia que esse momento estava chegando, só não sabia o porquê.

Considerações:

— Vamos, venha, não se assuste garota.

O tom de voz da mulher era doce, quase maternal, o que de certa forma revelava a instabilidade emocional daquela desconhecida. Algumas velas se acenderam imediatamente a essa fala, mesmo assim, pouco mostrava sobre o ambiente que estavam.

— Que quarto é esse?

— Não se apresse, você vai ver.

Pela primeira vez Enma percebeu que a pele da mulher era tão pálida, tão pálida, que nem a neve mais branca, mais nova, poderia alcançar tamanha tonalidade alva.

— Veja Enma.

A mulher retirou de sobre a mesa o pano que cobria, revelando uma madeira de tonalidade mais clara, envelhecida e com um símbolo circular com um triângulo no centro.

— O que é isso?

— É Deus.

Simplesmente abriu um sorriso doentio e gargalhou por quase dois minutos.

— Enma, o que você verá aqui é tudo o que precisa pra se conhecer a fatalidade, a destruição e a natureza da morte! Jashin de Coração Perverso! O Deus da Morte! Aquele que concede imortalidade aos seus fiéis!

— P-

— Por quê? Simples... Honre todos aqueles que perdeu sobrevivendo a morte e a dor e trazendo a destruição a esse mundo! Sirva a Jashin e ele lhe trará a glória que seus irmãos não podem sentir! Vingue todos eles zarpando no oceano da imortalidade.

A ninja apenas encarou a mulher, que parecia cada vez mais desestabilizada.

Considerações:

O silêncio reinou por tanto tempo que foi o suficiente para a ninja perder a consciência do quanto já estavam naquela casa, sem iluminação e insalubre.

— Que bobeira você está dizendo? Imortalidade? Meus irmãos? Como conhece tudo isso sobre mim?

— Foram muitas perguntas pequena, preciso de tempo para responder e o farei mas, antes, deve concordar em ver a cerimônia para o Deus da Morte, de acordo?

Enma fitou o rosto da mulher desconfiada.

— Ao menos me diga seu nome!

— Isso não é relevante pequena, já não tenho nome a muito tempo, vivo por Jashin e por ele irei sacrificar a vida de quantos pagãos forem necessários, contudo, preciso de alguém para me substituir, e vejo você como a pessoa certa.

— Substituir?

— Sim, porém, se me permitir, gostaria de responder todas as perguntas que me fez.

No breu daquele cômodo, apenas com iluminação tênue da vela, as feições da mulher assumia uma aparência cada vez mais cadavérica, o que incomodava Enma.

— Pois bem.

E assim a mulher começou a contar sua história.


— Há muito tempo fui prometida a um dos seus irmãos, em casamento, mas ele morreu, assim se sucedeu até que me apaixonei verdadeiramente por seu outro irmão Takeo, hoje acamado. Quando vi sua nobre família se despedaçando, em frangalhos pois, admito com vergonha, era meu sonho pertencer a tão nobre casa, não pensei em mais nada e fiquei estranhamente interessada pela destruição, pelo caos.

Tomou ar e prosseguiu.

— Assim fui apresentada a Jashin, numa noite, quando me foi revelada a natureza da morte e da destruição. Assim passei grande parte daqueles meses lendo livros sobre o tema, até que encontrei relatos de um único templo Jashin conhecido perto de nossa vila. Caminhei até lá e tive outra revelação, quando enfim Jashin me concedeu a imortalidade.

Enma parecia estar sonhando, não conseguir crer naquilo que ouvia mas, no fundo, sabia que era a mais pura verdade.

— Agora, diferente da sua família, de seus pais e irmãos, eu sou imortal. Fui a procura de Takeo para que ele tivesse poder, contudo ele recusou, parece que se esqueceu do que Kumo fez com sua família. O estilo de vida ninja só pode ser superado entregando a morte todos os ímpios, assim, alcançando a imortalidade, nada pode nos deter!

— E como se alcança as bençãos de Deus?

— Matando alguém.

Considerações:

— Não corra pequena, não lhe farei mal algum, apenas veja a benção de Jashin purificando a alma de um infiel. Me siga.

Quase que forçada Enma caminhou até uma anti-sala onde havia uma enorme gaiola, a Shinobi não conseguiu distinguir nada no meio daquele breu, contudo, dada a dimensão reluzente da gaiola, visto que essa se exibia com um metal prateado intenso, já sabia que pelo menos um homem adulto cabia ali dentro.

— O que tem aí?

— Sazu Hiroshima, um nukkekin procurado que eu encontrei, agora vou matá-lo em nome de Jashin.

Dito isso arrastou o homem para contra as grades de sua prisão, bateu o rosto do nukkekin contra o metal e este acordou.

— V-você... Droga... Eu não consegui te derrotar!? E quem essa garota!

— Enma, veja, não desvie o olhar, vou te mostrar Jashin agindo sobre mim.

A menina acompanhou o ritual em silêncio, viu o sangue jorrando da pele do criminoso, o círculo de sangue vermelho com um triângulo no centro sobre o chão, a pele enegrecida da mulher misteriosa e o mais surpreendente, o golpe de Kunai que essa desferiu contra si mesma.

— V-

Antes que pudesse dizer alguma coisa, em silêncio, Enma apenas viu o homem a sua frente cair morto.

— Então, que tal esse poder? Deseja servir a morte e não cair na mesma sorte de seus irmãos? Que tal hein?

Enma fitou-a em silêncio, depois abriu a boca, lentamente disse:

— Sim.

Seus olhos pareciam mais rubros que o normal.

Considerações:

— Antes de iniciarmos o ritual é necessário que você conheça a filosofia por trás do jashinismo e os pecados que você não deve cometer, venha, vamos sair da sala do ritual.

Caminharam por um corredor por quase três minutos quando então Enma entendeu que todas as casas do quarteirão, de alguma forma, estava interligadas.

Chegaram num local mais bem iluminado, com uma janela que dava pra rua da pequena Shinobi. Parou e viu sua casa distante no vidro esfumaçado.

O cômodo apesar de antigo, era o mais bem preservado da casa, com uma cama e uma escrivaninha. Deitado sobre a cama, e só então havia percebido, um homem jazia caído, respirando com ajuda de aparelhos médicos. Possivelmente morreria nos próximos dias, ou iria agonizar de sua doença, semelhante ao que acontecia com o irmão de Enma, Takeo.

— Quem é esse?

— Ele é a oferenda.

— E quem é a oferenda?

— Isso não importa garota. Jashin há de recompensar sua fé se você destruir sem questionar.

— Humn... Tudo bem. — guardou para si a preocupação, sabia que aquele seria a oferenda que deveria entregar a Jashin. — Como eu começo?

— É muito simples, realize a oferenda utilizando-se o sangue do homem para fazer o seguinte círculo.

Movimentou seus pés, a mão e todo o corpo de maneira que Enma entendesse o traço, e por fim, a encarou.

— Depois, eu como serva de Jashin lhe apresentarei a ele, e você irá selar sua vida com o Deus da destruição!

— Quanto aos pecados? — perguntou Enma curiosa.

— Para garantir sua imortalidade, assim como eu, você deverá realizar um ritual por ano, além de não poder matar nenhuma vítima por outro meio se não pelo ritual, ou deixá-las inconsciente ao invés de entregar suas almas a Jashin.

— Eu terei que matar uma pessoa por ano? Mas eu nunca matei antes!

— Não se preocupe, Jashin lhe dará desejo. Não é momento de insegurança criança, pronta?

— Sim...

Considerações:

A mulher entregou uma Kunai a Enma, com as mesmas simbologias daquela que a ninja havia usado para lhe perfurar momentos antes.

— Levante!

O homem obedeceu e com as pernas trêmulas ficou de pé.

— Faça o círculo Enma, rápido.

A ninja se aproximou do homem e fez um corte em seu braço.

— Me desculpe — cochichou — mas quem é você?

O homem não respondeu.

— Vamos logo com isso Enma! — ordenou a mulher.

Com alguma dificuldade após recolher o sangue do alvo, um círculo vermelho com um triângulo ao seu centro surgiu de baixo dos seus pés.

— Vamos Enma!

A pele da garota se tornou preta e com alguns traços brancos simulando uma caveira.

— Ande, sinta o poder!

— E...

— Não há tempo Enma, comece!

— Na...

— Isso!

E o homem caiu morto. Enma, dentro do círculo, iria perfurar seu estômago. Sentiu a intensa dor e largou a Kunai no chão, sua respiração ofegante era o único som do ambiente. Virou para trás e viu a mulher olhando o corpo no chão, sorrindo, com lágrimas melancólicas caindo de seu rosto.

— Q- quem era aquele?

— Meu pai e um sacerdote do Deus Jashin.

— Eu...

— Tudo bem, ele preferia cair assim, pela destruição de Deus do que perecer na ordem dos fracos.

— E agora?

— Acho que você entendeu a magnitude do que está seguindo, não há mais caminho de volta, eu serei sua mentora por um tempo, mas chegará o momento que terá que andar com suas próprias pernas.

— Tudo bem... Posso saber seu nome agora?

— Mei... Azuki Mei.

Enma pareceu se lembrar de uma menina em sua casa, há muito tempo, com esse nome.

— Vá para casa e durma bem, por favor.

E assim o fez, partiu dali para sua casa onde dormiu acompanhada de terríveis pesadelos. Era a primeira vez que matava alguém, e não pode evitar chorar por um bom tempo.

Considerações: